Talvez este seja o fim do Estado moderno, diz professor de Cambridge

Crédito: Reprodução/Vídeo
David Runciman, diretor do Departamento de Política e Relações Internacionais de Cambridge

CHRISTIAN SCHWARTZ
ilustração LUÍSA ZIMMER RITTER

RESUMO Estrela da Universidade de Cambridge, o professor David Runciman sustenta que as atuais gerações talvez assistam ao fim da história do Estado moderno. Em entrevista à Folha, ele também fala sobre aquecimento global e explica por que considera o fundador do Facebook um perigo maior para a democracia do que Trump.

Num momento de perplexidade geral entre os especialistas que se dedicam à análise política, o professor e ensaísta britânico David Runciman, 50, não fugiu à polêmica em conferência recente ao intitulá-la "Nobody knows anything" (ninguém sabe nada).

O que poderia ser visto como arrogância —não só constatar, mas tentar explicar a ignorância... dos outros— pouco combina com Runciman, que não hesita em confessar a própria perplexidade. Ainda assim, o diretor do Departamento de Política e Relações Internacionais da prestigiosa Universidade de Cambridge é atualmente uma das vozes mais ouvidas sobre o caos político destes últimos anos.

Em seu podcast semanal, "Talking Politics" (falando de política), destila análises refinadas com a colaboração de colegas da universidade e entrevista gente do calibre de Thomas Piketty, Mary Beard, John Gray e alguns dos políticos mais proeminentes do Reino Unido.

Como professor em Cambridge, lota salas e anfiteatros para suas aulas e palestras, além de auditórios fora da cidade ou do país como conferencista. Um desavisado talvez o tomasse por um homem de previsões certeiras.

Crédito: Luísa Zimmer Ritter
Pintura de Luísa Zimmer Ritter

No nível do anedótico, essa reputação ganhou ares quase míticos quando, no ano passado, casa lotada como sempre, irrompeu na plateia o físico Stephen Hawking, sua cadeira de rodas conduzida pelas enfermeiras.

Runciman, impávido, seguiu adiante com a palestra sobre extremismos na política, perdoando o atraso ao ilustre espectador de última hora —ali em rara aparição pública.

Durante as aulas, seus alunos, a maioria dos quais calouros em Cambridge, teimam em aplaudi-lo ao final das exposições, até que o professor os convença, lá pela quarta ou quinta sessão, a pararem de constrangê-lo com aquilo.

O que parece cativar as variadas audiências de Runciman é, antes de algum poder de previsão que ele mesmo nunca se atribuiu, a invejável clareza de raciocínio: impressiona vê-lo falar de improviso, esbanjando erudição sem complicar uma frase sequer.

Conforme faz questão de enfatizar, sua especialidade é a história das ideias, não a ciência política —outra forma de dizer que prefere manter distância de coisas como modelagem de cenários e futurologia político-eleitoral.

No conjunto, seus escritos tentam responder com rigor histórico à questão crucial da capacidade de sobrevivência da democracia moderna, ou, mais propriamente, do Estado moderno.

Seu livro mais recente, "The Confidence Trap" (a armadilha da confiança), lançado em 2013 e agora revisado para incluir um posfácio tratando da eleição de Donald Trump nos EUA, faz a retrospectiva das crises pelas quais passou essa entidade central nas democracias do século 20.

Embora recorra a um time de filósofos que, a partir de Thomas Hobbes (1588-1679) e ao longo do século 19 em particular, conceberam a democracia como a conhecemos (a versão ateniense, por exemplo, seria um bicho de outra espécie), o que Runciman oferece de mais original é uma reflexão sobre a política pós-1989.

FIM DA HISTÓRIA

É particularmente valiosa sua contribuição ao debate sobre a tese do "fim da história", do nipo-americano Francis Fukuyama, de Stanford (EUA), que tentou elaborar a posição aparentemente hegemônica da dobradinha democracia liberal/economia de mercado, uma vez enterrado o experimento comunista no início dos anos 1990.

De lá para cá, a proposição e seu autor foram massacrados; Runciman, porém, acha que alguma coisa ali estava certa, ainda que Fukuyama possa ter mirado no que viu e acertado no que não viu. (Um debate entre os dois pensadores sobre essa questão pode ser visto no vídeo abaixo).

O professor costuma iniciar seu curso de política em Cambridge com uma assertiva categórica: "Estados são o conceito político mais bem-sucedido da história da espécie humana". Em seguida, contraria expectativas: "Mas talvez [nossa época] seja o fim da história do Estado moderno".

Não porque haja a ameaça iminente de uma reversão totalitária à la década de 1930, prossegue Runciman, mas porque normalizamos o contínuo teste de estresse a que Estados têm sido submetidos nos últimos cem anos.

A "armadilha" a que se refere "The Confidence Trap" é uma confiança exagerada e imprudente das democracias de que serão capazes, sempre, de sobreviver aos próprio erros. O problema é que, confortáveis em seu triunfo (senão definitivo, como sugeriu Fukuyama, certamente duradouro), abraçam a possibilidade cada vez maior de um derradeiro deslize que não saberão como corrigir.

"É essa a [verdadeira] ameaça que, mais pesada do que nunca, paira sobre nossas cabeças", escreve Runciman, cujo novo livro, "How Democracy Ends" (como termina a democracia), síntese dessas reflexões, sai em maio.

Só agrava a questão o fato de que, contra o senso comum, não aprendemos nada de revelador a cada crise do Estado democrático. Para Runciman, apenas renovamos nossa complacência quanto a sua supostamente inesgotável capacidade de resistir até às mais exigentes demandas de seus cidadãos.

Ocorre que tais demandas podem se tornar extremamente agressivas à própria democracia ou contraditórias com seus princípios originais (basta pensar no efeito deletério da radicalização das esquerdas identitárias sobre o princípio fundamental da igualdade perante o Estado), quando não simplesmente irracionais (Trump chegou ao poder e o exerce segundo demandas democráticas, ao menos por enquanto).

Runciman, porém, fiel a seu método, aborda esses eventos recentíssimos —sobre cujos desdobramentos, previsivelmente, "ninguém sabe nada"— com a devida fleuma: "A chegada de Trump à Casa Branca não representa o momento revelador. É simplesmente mais uma distração dos desafios subjacentes a um mundo interconectado em rede e aos poucos ficando mais e mais quente".

O professor poderia estar se referindo à polarização que aquece debates (não só políticos) por toda a parte, mas falava de um dos temas a que se tem dedicado com mais originalidade: política e mudança climática. Foi por onde começamos a entrevista a seguir.

Folha - Como passamos de um ceticismo em certa medida saudável quanto à mudança climática a um cinismo seriamente danoso ao debate desta que o senhor considera a questão política definidora do nosso tempo?

David Runciman - Quando as pessoas se perguntam até que ponto a evidência [científica] é confiável, e essa é sempre uma questão em aberto no caso da mudança climática, isso é ceticismo. Nada é certo em ciência. Quando suspeitam das motivações daqueles que detêm a evidência, quando pressupõem que, por alguma razão, são provas arranjadas, isso é cinismo.

São atitudes bastante diferentes entre si. A diferença surgiu quando a questão do clima passou a ser associada a certas posições políticas, particularmente nos Estados Unidos, onde começou a ser vista como argumento em favor de maior intervenção governamental.

Foi aí que os cientistas acabaram envolvidos na briga, pela sugestão de que seu interesse no tema também tivesse a ver com dinheiro –mais verba para pesquisa. Nesse momento, [a discussão] deixou de ser sobre ciência e passou a ser sobre quem era pago por quem.

A partir daí, como o debate sobre a mudança climática caiu no círculo vicioso da pós-verdade?

Um cético é alguém suficientemente preocupado com a verdade a ponto de querer duvidar dela. Ele quer saber se pode ou não confiar [no que lhe é apresentado como verdadeiro]. A política da pós-verdade implica não se importar mais com a verdade: só o que queremos saber é como nos sentimos a respeito de uma determinada coisa.

O ceticismo é uma força positiva, porque precisamos duvidar do que nos é dito, não apenas pelo bem da ciência, mas também pelo bem da democracia. Uma vez que deixamos de nos preocupar suficientemente com a verdade a ponto de duvidar, ficamos à mercê de quem grita mais alto ou cria mais confusão, o que é ruim tanto para a ciência quanto para a democracia.

Na sua opinião, o que os cientistas deveriam fazer diante da escolha entre, como o senhor mesmo coloca, "deixar que os fatos falem por si mesmos ou tentar ganhar dos cínicos jogando o jogo deles"?

Deixar que os fatos falem por si mesmos não funciona porque não se resolvem questões políticas contando apenas com os melhores fatos. É preciso ter os melhores argumentos e as pessoas certas para defendê-los. Está mais do que provado que só se vence o sectarismo quando quem tenta fazer a pessoa mudar de ideia é alguém do mesmo lado dela. Ou seja, em grande medida, a questão é saber se e quando os republicanos nos Estados Unidos e outros cínicos quanto à mudança climática começarão a mudar de posicionamento.

Não ajuda muito que tantos cientistas –na verdade, tantas pessoas que trabalham em universidades– defendam uma visão progressista, porque isso só reforça a ideia de que a elite com formação superior é um clube fechado. Nessa questão, tudo vai depender de [como vão se comportar] republicanos e conservadores, cientistas republicanos e conservadores inclusive.

Em artigo no jornal "The Guardian", o senhor ponderou que, "embora haja consenso de que o aquecimento global é um fato e de que sua causa é a atividade humana, a extensão última dos riscos é bastante incerta, assim como as consequências de longo prazo". Como lidar, nesse caso, com o clássico dilema entre gastar no presente (em medidas de mitigação), o que pode se revelar um desperdício, ou apostar que as coisas se resolverão no futuro?

Essa é uma questão política muito difícil, um problema de longo prazo. Mas, no momento, nem existe uma discussão a respeito, por estarmos muito preocupados com a política do presente.

Minha sensação é a de que não podemos simplesmente confiar em mercado e inovação para resolver o problema, até pelo que sabemos da importância do gasto governamental por trás dessas mesmas forças. Provavelmente será necessário gastar agora para garantir nossa adaptação futura às consequências da mudança climática, ainda que parte desse dinheiro acabe sendo mal gasto ou desperdiçado, como sempre acontece com o investimento público.

De certa forma, a questão maior é como levar os governos a agir sem que para isso precisem ser motivados pela ameaça imediata de uma guerra ou de um desastre econômico, as duas razões que tradicionalmente impulsionam gastos governamentais em grande escala. Se esperarmos até que a mudança climática provoque guerras e desastres, teremos esperado demais.

Que efeitos a substituição do ceticismo pelo cinismo tem tido sobre a política real? Sobre resultados eleitorais, por exemplo?

Tem tornado as pessoas mais desconfiadas umas das outras, e o resultado disso é que a política se torna cada vez mais divisora e sectária. A ascensão de correntes políticas populistas em diferentes lugares é parte do pacote. O populismo se alimenta do cinismo porque afirma que alguém, em algum lugar, está roubando a democracia do povo. Alguma dose de cinismo é inevitável num regime político democrático, pois há políticos corruptos e desonestos. O perigo é o cinismo virar a explicação padrão para tudo [em política].

No posfácio à edição revisada de seu livro "The Confidence Trap", o sr. afirma acreditar que "a história do progresso democrático pela via da adaptação [...] está chegando ao fim". Em palestra recente, o sr. também disse que a democracia possivelmente fracassará bem diante dos nossos olhos. Em que a atual crise difere do permanente estado de crise a que a democracia sobreviveu até agora (e na verdade é uma de suas características definidoras)?

Algumas crises, como a da mudança climática, operam no timing errado: quando disparam o gatilho da mudança política necessária, pode ser tarde demais. E outras crises operam numa escala errada: sabemos o que é preciso para impedir que o sistema financeiro global entre em colapso –o que ficou demonstrado em 2007-08–, mas não o que fazer para reformar esse mesmo sistema, como se vê hoje. De modo que, se somos capazes de evitar o desastre, não chegamos a dar conta de suas causas subjacentes. A adaptação é superficial.

Meu medo é que continuemos a mexer aqui e ali, achando que estamos mudando alguma coisa, quando os verdadeiros desafios, incluindo aqueles propostos pelos efeitos transformadores da tecnologia digital, cada vez mais saem do nosso controle.

Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, é, segundo o senhor, um perigo maior para a democracia do que Trump. Por quê?

Com Trump, a ameaça é visível, e de todo modo não acho que seja uma ameaça tão grande assim. A democracia americana vai sobreviver a Trump na Presidência.

Com Zuckerberg, é mais complicado ter uma visão clara, pois ele é um cara decente, que não tem intenção de fazer mal à democracia, e o Facebook tem muitos aspectos democráticos (é a maior rede social do mundo). Mas Zuckerberg também detém formas de poder que são vastas e inéditas. Ele administra uma organização notável pelo mistério que a envolve.

É bem difícil saber o que o Facebook está fazendo, o que significa que o perigo fica mais facilmente oculto. Simplesmente não sabemos que impacto o Facebook vem tendo em eleições, notícias, partidos etc. Sabemos o que Trump está fazendo. É por isso que o risco é maior com o Facebook e Zuckerberg –o perigo aí é a nossa ignorância.

O senhor usa o conceito da cauda longa para explicar a política nesta nossa época de dominância das mídias sociais. Como funciona?

Caudas longas são formadas por um monte de microfenômenos e por alguns macrofenômenos: ao mesmo tempo que há uma ampla dispersão de poder e influência, também há um movimento agregador que cria uns poucos sucessos de massa. Então tem o livro que todo mundo está lendo, a rede social que todo mundo usa, o político de quem todo mundo ouviu falar.

Trump é um político do tipo cauda longa: o ser humano mais famoso (em termos de reconhecimento pelo nome) da história [ou seja, trata-se de fenômeno macro]; ao mesmo tempo, todo mundo tem uma opinião sobre ele [portanto, milhões de fenômenos micro].

O que acaba perdendo espaço nessa história é o centro: o evento de médio impacto, o político de influência média, o jornal mediano, talvez o próprio centro político. É o que parece estar ocorrendo.

O sr. não concorda com a principal analogia que se tem usado para explicar o que está acontecendo nesta nossa época e o que virá a seguir: a analogia com os anos 1930. Por que não é uma boa comparação?

Basicamente porque, embora no Ocidente tenhamos algumas das mesmas instituições políticas (nos Estados Unidos, são instituições ainda mais antigas), temos sociedades completamente diferentes. Somos muitos mais ricos, mais velhos, mais conectados.

Se estamos caminhando para um fracasso político, ele não será como nos anos 1930, quando as democracias eram em sua maioria jovens, pobres e relativamente fáceis de serem tomadas de assalto. Hoje, nossas sociedades são afluentes, sociedades de aposentados, ainda que também estejamos politicamente divididos e com níveis de desigualdade cada vez maiores.

No passado, democracias entravam em colapso pela violência e viravam ditaduras porque isso era uma opção. Não penso que seja uma opção para nós; temos muito a perder. O que não significa que eu ache que a política atual esteja funcionando. Só que o mais provável é que a gente continue a insistir nela mesmo quando já não funciona mais, em vez de deixá-la se transformar em algo diferente.

Há algum precedente histórico para o que estamos vivendo?

De certo modo, não, pelas razões que mencionei: não sabemos que cara tem o fracasso político em sociedades ricas e envelhecidas. O exemplo contemporâneo mais parecido que temos é o do Japão nas últimas três décadas. Se nosso destino é esse, há outros muito piores.

Mas, caso se queira insistir em alguma analogia, eu diria que a década em que vivemos está mais para os anos 1890 do que para os anos 1930. A década de 1890 marcou a última grande era caracterizada por populismo, teoria da conspiração, mudança tecnológica e estagnação econômica. Não terminou em ditadura. Produziu, na década seguinte, reforma política e social, inclusive o nascimento da moderna social-democracia.

Essa é a boa notícia. A má notícia é que aquela década também produziu, mais adiante, uma guerra mundial. Em política, não há uma história com boa notícia que não traga consigo seu lado ruim.

Entre a hipocrisia e as boas intenções (temas de dois de seus livros), qual o senhor diria que é o discurso dominante na política atual?

A hipocrisia é o discurso dominante, em parte por causa da internet. As novas tecnologias da informação, porque mantêm registro de tudo, tornam muito fácil mostrar a incoerência entre o que as pessoas dizem e fazem. Eu a chamo de "vasta máquina geradora de hipocrisia".

Também já escrevi sobre o fato de que as pessoas parecem ter mais aversão a hipócritas do que a mentirosos.

A eleição de Trump é prova disso: ele mente, mas é o que parece, ou seja, o mesmo sujeito asqueroso do começo ao fim. Não é do tipo que mantém em privado ou em segredo uma parte sua, ou que trata eleitores como crianças a quem não se pode dizer como as coisas realmente funcionam. Se há uma criança na história, é ele mesmo.

Acho melhor ser governado por adultos hipócritas do que por crianças mentirosas, mas, infelizmente, não tem sido essa a visão preponderante nas democracias contemporâneas.

CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e na Universidade Cambridge, é jornalista e tradutor.

LUÍSA ZIMMER RITTER, 30, é pintora.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.