Como Luccas Neto, que ofendia crianças, virou a Xuxa da internet

Youtuber de 27 anos se tornou o maior influenciador infantil do país, após passado de 'hater'

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boneco de luccas neto com pote de nutella

Ilustração Higo Joseph

[RESUMO] Como Luccas Neto, um adulto que fazia vídeos em que chamava crianças de “burras” e “retardadas”, chegou a maior influenciador infantil do país, com 23 milhões de seguidores.

“Mão de pica.” Luccas Neto, a maior estrela infantil da internet, foi condenado pela Justiça em primeira instância porque chamou uma adolescente de 14 anos de “mão de pica” em janeiro de 2016, meses antes de começar a fazer vídeos para crianças.

Aos 27 anos, Luccas é dono de um dos canais de YouTube com maior número de visualizações do Brasil.  Tem mais de 23 milhões de assinantes, internautas que são avisados a cada vez que ele publica um novo vídeo —costuma lançar uma produção nova por dia. Faz seis semanas que encabeça a lista de livros infantojuvenis mais vendidos do Brasil.

Em breve, deve estar na Netflix, na tela dos cinemas e em todas as lojas de brinquedo, em forma de bonecos, mochilas e uma dezena de jogos. É um exemplo de sucesso de youtuber, o profissional que ganha a vida fazendo vídeos para a plataforma.

Mas, antes de ser um fenômeno infantil que só pode ser comparado em magnitude com Xuxa, Luccas Neto era o anti-youtuber. Em vídeos que postava no seu primeiro canal, chamado Hater Sincero,  chamava crianças que admiravam youtubers de “retardadas e burras” e disse à mãe da mesma adolescente que o processou: “Vai tomar no cu”.

Passados três anos do vídeo, Luccas afirma que as frases foram fruto de um momento de depressão e de desespero por atenção. “Se eu fui o responsável por causar dano moral para a menina, fico muito triste e inclusive peço desculpas”, ele diz em entrevista por telefone. E afirma ter recorrido à sentença que o condenou a pagar R$ 40 mil à família da vítima.

A Ilustríssima narra como um jovem adulto que criticava os influenciadores virtuais se tornou uma das pessoas mais poderosas da internet brasileira e, hoje, propaga a união familiar e conteúdos edificantes —com os quais ganha milhões de reais.

​A internet corre no sangue da família Neto. Felipe Neto, irmão mais velho de Luccas, foi o primeiro youtuber a conquistar 1 milhão de inscritos no Brasil, em 2010. Enquanto Felipe se mostrava para milhões em vídeos em que comentava a cultura pop para adolescentes, Luccas, quatro anos mais novo, trabalhava nos bastidores. Fazia pesquisa, dirigia e empresariava Felipe.

Os Neto vieram de Engenho Novo, bairro de classe média baixa na zona norte do Rio. Ambos começaram a trabalhar ainda adolescentes. Hoje moram em uma casa de seis quartos, uma sala de cinema e sete banheiros em um condomínio da Barra da Tijuca.

Em 2016, quando Felipe já era um titã da internet com milhões de seguidores, Luccas começou a fazer vídeos para crianças. E teve uma trajetória meteórica: em três anos de carreira, já tem mais visualizações que o irmão. Felipe ainda ganha no número de assinantes, são 32 milhões contra quase 24 milhões, mas o caçula cresce em um ritmo mais acentuado que o primogênito.

Luccas —um adulto de quase 1,80 m com cabelo descolorido coberto por um boné sempre virado para trás— ficou famoso fazendo papel de criança. Se Xuxa conquistou três gerações falando com seus “baixinhos” sem perder o tom de voz adulto ou apelar para o tatibitate, Luccas é seu oposto no estilo do diálogo. Fala com a velocidade diminuída pela metade e o volume dobrado. Sua boca se abre para articular todas as vogais. Como em um capítulo de Teletubbies, a repetição de frases iguais é a ordem dos seus vídeos.

A repetição também é a ordem no tema dos vídeos que ele produziu nos dois primeiros anos de carreira: a maioria deles tratava de consumo. Em um, visto quase 30 milhões de vezes, Luccas viaja e visita um hipermercado Walmart. “Eu amo fazer compras, ainda mais nos Estados Unidos, [em] que é tudo baratinho!”. Ele enche o carrinho de balas e doces.

Outro vídeo se chama “Comprei R$ 500 de Brinquedos nos Estados Unidos!!” —Luccas vai para Orlando, na Flórida, no máximo a cada dois meses. “Se eu for viajar para algum lugar, vou para a Disney.”

Outros títulos de vídeos dão uma ideia do conteúdo: “Piscina de Halls com Gelo (A Mais Gelada do Mundo)”, “Misturei Todos os Chicletes e Provei” e “Misturei Todas as Barras de Chocolate e Provei”. Todos são escritos em letras maiúsculas, e alguns ostentam marcas, como “O Melhor Brinquedo do Mundo de R$ 500!! (Hot Wheels Star Wars)”.

O site CriadoresID fez as contas dos vídeos que Luccas postou de 2016 a 2018, por categoria. Foram 23 a respeito de comida, como na vez em que misturou o recheio de cem biscoitos para formar um só, gigante; 19 sobre misturas alimentícias insólitas, como quando fez miojo de chocolate. Levantamento da Folha mostra ao menos cem vídeos de brinquedos.

O grande pulo de Luccas Neto em direção ao inconsciente coletivo da internet foi um mergulho em uma banheira meio cheia de Nutella. Diz ter usado 80 kg de pasta de chocolate com avelã para sujar a porcelana. Besuntado de chocolate, ele bate as mãos espalmadas e imita uma foca. Pronto. No dia da publicação, em meados de 2016, a internet não falava de outra coisa.

“O [vídeo da] banheira de Nutella teve uma influência muito pequena no meu canal”, afirma Luccas. Ele diz que não fazia esse tipo de imagem para incentivar o consumo. “Eu sempre tive um sonho de entrar em uma piscina de chocolate porque eu era apaixonado pelo filme ‘A Fantástica Fábrica de Chocolate’. A gente usava o entretenimento como entretenimento, não tinha como trabalhar a parte educacional.” 

No caso dele, um raio caiu duas vezes no mesmo lugar. Em outro vídeo, apareceu sobre uma cama de casal coberta de Nutella, contorcendo-se como se fosse uma foca. Imitar o animal marinho é uma piada tão recorrente nos seus vídeos que ele chama seus fãs de “foquinhas” e, em muitas das suas aparições, usa uma camiseta azul-clara com a estampa de uma foca em amarelo —o item custa R$ 40 na lojinha virtual dos Neto.

Com vídeos como esses, a carreira de Luccas passou por um estirão de crescimento. Em 2016, ano em que nasceu o Luccas Neto infantil, seu canal atingiu 100 mil inscritos. Em 2017, 1 milhão. Em 2018, 10 milhões. Em abril de 2019, o canal beira os 24 milhões de inscritos. Seria como se um em cada dez brasileiros estivesse interessado em ver e ouvir o que Luccas Neto tem a dizer, se não houvesse espectadores de outros países, assinaturas criadas por robôs e usuários com mais de uma conta.

Não demorou para que os vídeos de consumo e de comilança fossem criticados por pais e educadores. “Na época em que eu fazia esse tipo de coisa era sem assessoria nenhuma”, diz o youtuber. “Era uma coisa muito aberta. Saía do jeito que saía.”

Luccas afirma não atuar quando faz criancice. “Esse é meu jeito, eu sou assim. Eu amo brinquedo, eu amo fazer o que eu faço. Resolvi fazer o que eu amo fazer, mas com uma câmera ligada.” Admite, porém, que houve tino empresarial no começo do negócio. “Outras pessoas nunca iam imaginar que o YouTube infantil ia bombar, mas eu já estava vendo o movimento.” Diz ter sido chamado de maluco ao expor a ideia em uma reunião da empresa que havia fundado com o irmão.

crianças vendo luccas neto na banheira de nutella
Capa da Ilustríssima - Higo Joseph

Oito meses atrás, Luccas decidiu deletar esse passado. Apagou 96 vídeos que tinham palavrões ou conteúdos que não seguissem sua nova linha editorial —construída, diz, com uma equipe de professores e pedagogos. Dois bilhões de visualizações (ou “views”) foram excluídos.

Durante esse período de transição, parou com as propagandas. Voltou há poucas semanas, mas diz que de maneira mais responsável. “As histórias que a gente conta precisam de uma mensagem positiva. Tem de agregar alguma coisa.”

Do meio de 2018 em diante, Luccas mudou o estilo e a temática de suas produções. Em vez de abrir pacotes de brinquedos ou meter caixas de balas na boca, começou a encenar contos de fadas e esquetes cômicos. Contratou atores e diz ter criado mais de 30 personagens.

A mudança, comenta, foi motivada mais por questões familiares do que comerciais. “Comecei a escutar a minha mãe e a minha avó. Elas diziam: ‘para de falar palavrão, você tem um poder que pode ajudar as famílias’.”

No dia da epifania, chamou sua equipe —cerca de 50 pessoas, entre produtores, atores, educadores e psicólogos— e disse: “A gente está se comunicando com crianças que não sabem ler e escrever, então a gente precisa passar coisas boas para elas”. O canal se afirma adequado para crianças a partir de dois anos de idade.

“Eu quero que meu canal no YouTube seja uma plataforma para a criança navegar à vontade.” Esse é um argumento que Luccas Neto repete no show, nos vídeos e na entrevista: quer conquistar a confiança dos pais. “Hoje, a gente faz da forma correta: se tiver alguma publicidade no vídeo tem que avisar. Não pode ter uma publicidade, tem que ter uma história.”

A motivação para dar a guinada na carreira pode ser familiar, mas vem no mesmo período em que ele fundou uma nova empresa. O Neto mais jovem é sócio da Take4Content, junto com João Pedro Paes Leme e Cassiano Scarambone, ambos veteranos do mercado audiovisual, com passagem pela TV Globo. 
A mudança também vem com um novo plano de negócios: o youtuber deve virar um personagem tão comercial quanto a Turma da Mônica.

Chegou às lojas nas últimas semanas o boneco Luccas Neto. A miniatura em plástico fala 14 frases, como “Acho que fiz uma besteirinha!”, e imita uma foca. Com preço que varia de R$ 120 a R$ 150, o brinquedo sumiu das prateleiras. Dezoito lojas virtuais e físicas dizem ter esgotado seus estoques em menos de uma semana. A empresa planeja vender 1 milhão de bonecos ainda neste ano.

A ideia é transformar Luccas em uma franquia. “Para fazer uma publicidade hoje de uma marca que não é minha, penso muito. A Xuxa, para vender uma boneca, tinha que dormir com ela uma semana. É uma fórmula para se garantir e não ter problema. Todo mundo deveria fazer isso”, diz ele, que também afirma trabalhar na concepção do boneco e ter escrito os próprios livros.

Luccas vislumbra um 2019 cheio de trabalho. Conta ter negócios engatados com a Netflix e planos para um filme. A expansão não é só figurativa: ele está prestes a ocupar um estúdio de 800 m² onde serão gravados seus vídeos. “Até hoje, o que aconteceu na minha vida nunca foi de mão beijada. Nunca um empresário chegou e ofereceu algo.”

Um trânsito inesperado faz com que o carro demore 20 minutos para cruzar dois quarteirões de Icaraí, bairro no centro de Niterói, na tarde do dia 13 de abril. Esse congestionamento pode ser batizado de Luccas Neto.

São 17h45 de um sábado, e o youtuber está prestes a começar o segundo show do dia no ginásio Caio Martins. Cada sessão teve 3.500 pagantes, e os ingressos, que custavam de R$ 45 a R$ 160, já estavam esgotados havia uma semana.

A quantidade de mercadoria falsificada que ambulantes vendem na frente do estádio é outro termômetro do sucesso do evento. Camisetas como a usada pelo youtuber, com o desenho de uma foca, por R$ 30. Camisetas com o rosto dele impresso saem por R$ 40. Focas brancas de pelúcia custam de R$ 30 a R$ 200. Braceletes com luzes piscantes, R$ 15. Uma faixa de cabeça com LUCCAS NETO escrito em purpurina é vendida por R$ 10.

Às 18h, o estádio está repleto de gente. O artista entra meia hora atrasado, cantando em playback. O acompanham seus companheiros de vídeos, chamados Os Aventureiros.

Um homem vestido de tubarão entra no palco. Em uma cena inspirada nos Três Patetas, os Aventureiros fingem não o ver, e a plateia tenta alertar os heróis. Na hora de derrotar o inimigo, o apresentador diz que só vai ganhar forças se o público chamar seu nome. “Luccas! Luccas! Luccas!”, grita uma só voz, formada por milhares de crianças.

Terminado o esquete, o palco vira uma gincana. Luccas e o Aventureiro Verde tentam acertar boias infláveis em um cone. Quando erra, Luccas usa o seu bordão: “Acho que fiz uma besteirinha!”. A peça parece uma encenação ao vivo de seu material no YouTube, como se alguém tivesse deixado um vídeo tocando após o outro. Após uma hora e pouco, o show está chegando ao fim.

A voz de Luccas sai do tom infantil durante o discurso de encerramento: “Eu quero tranquilizar todos os adultos que estão aqui. Saibam que eu sei da minha responsabilidade. Hoje eu tenho uma equipe muito grande de professores, psicólogos e pedagogos.”

O dono do show interrompe a fala. Respira fundo e volta com a voz pastosa. “Eu quero que essas mulheres que estão aqui sejam um exemplo para vocês”, diz, avisando que a mãe e a avó estão na plateia. “Minha mãe já deixou de comer alguma coisa diferente para me dar um presente de Natal, uma bicicleta.”

O show acaba. Uma fila se forma na lateral do estádio e vira a esquina. São pais e mães querendo levar suas crianças para fazer uma foto com o ídolo. Depois de 20 minutos de espera, seguranças desfazem a fila e instruem as pessoas a voltarem para dentro do estádio, onde serão chamadas em levas para encontrar com o youtuber. 

“Vamos embora! Eu não vou pegar outra fila pra nada”, diz um pai, puxando uma criança por cada mão. Ele é a minoria. Quase todas as pessoas voltam a sentar na arquibancada e nas cadeiras de plástico branco.

Os pais são chamados aos poucos para uma fila formada atrás do palco, em um pátio nos fundos do ginásio. Lá ficam dois contêineres, que servem de camarim para a equipe, e há no canto uma parede com fotos de Luccas em animação e na vida real. O Luccas de carne e osso atende ali as crianças, numa cadeira de plástico branca igual às dispostas no ginásio.

Uma funcionária dá as instruções para os pais da fila: “O celular está pronto? Eu que tiro a foto”, diz a mulher uniformizada, que conduz a criança até o ídolo e clica o encontro, em menos de 30 segundos. Luccas fica até meia-noite atendendo fãs. Ao contrário de outros artistas, ele não cobra por isso.

Há um passado, porém,  que o youtuber não conseguiu deixar para trás. Antes de fazer conteúdo para crianças, Luccas passou meses entre 2015 e 2016 alimentando o canal Hater Sincero, em que usava sua voz natural para falar mal de celebridades da internet.

O vídeo em que ofendeu a adolescente do início desta reportagem foi postado em 15 de janeiro de 2016 —até o ajuizamento do processo, três meses depois, já tinha sido visto 1,5 milhão de vezes. Nas imagens, ele afirma que havia visto na internet um vídeo da jovem youtuber acariciando intimamente o namorado. Vem daí a ofensa “mão de pica”.

A sentença foi proferida em outubro de 2018, mas não veio a público porque o caso correu em sigilo. Ele foi condenado a pagar R$ 40 mil de indenização à família da jovem ofendida, mais 10% do valor da condenação para bancar os custos judiciais. O Google, empresa dona do YouTube, foi condenado a pagar R$ 1.000 por dia caso o vídeo continuasse no ar. A postagem oficial foi deletada, mas ainda é possível encontrar reproduções das cenas com as ofensas em outros cantos da internet.

A família da vítima, que não será nomeada por respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, afirmou que prefere não se manifestar. No processo, consta que a adolescente entrou em depressão.

A defesa de Luccas afirmou que o verdadeiro objetivo da garota de 14 anos a quem ele ofendeu “sempre foi o de movimentar suas redes sociais através da exposição da própria imagem, com intuito de lucrar, aumentando a quantidade de seus seguidores, sem se preocupar com a repercussão e a influência negativa que poderia gerar no comportamento dos adolescentes”.

Diz ainda que, 15 dias depois da publicação do vídeo, o pai da garota teria entrado em contato com ele. Dizem os autos: “afirmou que tinha achado engraçado o vídeo e que eles poderiam fazer um programa juntos”. O intuito das ofensas, afirma a defesa de Luccas no processo, era “tão somente demonstrar para os jovens que a atitude da autora e de seu namorado era uma conduta abjeta e condenável, não devendo ser seguida por outros jovens”.

A respeito da condenação, Luccas faz um pedido de desculpas. “Se eu fui o responsável por causar dano moral para a menina, fico muito triste e inclusive peço desculpas. Mas acho que um pai nunca poderia ter entrado em contato comigo fazendo propostas.” 

“Aquilo ali [gravar o vídeo] era sinônimo do que não fazer e do desespero de uma pessoa que tem depressão. Eu tive uma briga colossal com meu irmão e com a minha família”, diz Luccas. Ele afirma que o rompimento com a família e a falta de perspectiva de ganhar dinheiro o levaram a criar o personagem. “Era para extravasar aquilo que eu estava sentindo. Foi o famoso desespero.”

“Hater” é uma gíria da internet para nominar alguém que odeia e critica todo mundo. Daí vem o nome do antigo canal de Luccas, Hater Sincero. Antes de virar a maior estrela da internet brasileira, ele criticava o modelo de negócio com que hoje ganha milhões de reais por ano.

“Você sabe o preço para eles fazerem uma campanha para uma marca? R$ 30 mil! E você está aí e não tem dinheiro nem pra ir no McDonald’s, seu infeliz”, diz em um vídeo do começo de 2016. Passados três anos, uma ação publicitária com Luccas Neto não custa menos de R$ 100 mil, segundo agências do mercado —ele não revela seus preços.

No vídeo com as ofensas, também fala com seus seguidores mirins. “Suas crianças retardadas [e] burras. São burras, sim. Não vem choramingar dizendo que estou chamando uma criança de burra. Se você é fã de uma fedelha dessas, você é uma criança burra, sim.” Diz que a youtuber adolescente é uma “fedelha que quase não tem pentelho.” E faz uma pergunta para os pais: “Vocês realmente acham bonita a reação dos filhos de vocês quando encontram um youtuber? A criança se bate, esperneia.”

Meses depois desse episódio, a transição de Luccas Neto em um youtuber infantil estava completa. “Sim, eu sou um crianção de barba”, ele dizia, vestindo uma touca com a cara do Mickey Mouse na cabeça, em um dos primeiros vídeos de seu canal voltado a crianças.

A  pesquisadora de mídia Maria Clara Monteiro compara a relação das crianças com os youtubers à comoção no auge da beatlemania. Ela estudou os influenciadores infantis em seu doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas não se deparou com Luccas Neto no primeiro momento da pesquisa.

Estava em um evento de youtubers quando ouviu o nome do apresentador pela primeira vez. “Falando com as crianças, elas me apresentaram o Luccas Neto. Uma atrás da outra. Todas amavam.” Monteiro foi para o YouTube saber quem era o novo ídolo. “Quando eu vi o Luccas Neto, fiquei chocada. Porque era um adulto se infantilizando, uma espécie de Sérgio Mallandro. Ele tenta se passar por criança e usa da publicidade de experiência.”

A publicidade de experiência, explica, ocorre quando o apresentador consome o produto que está vendendo. “Ele abre o brinquedo, tira da caixa e brinca, faz a criança querer também.” Esse tipo de vídeo, comenta, é uma zona cinza entre a publicidade e o entretenimento. “A publicidade vem se moldando para parecer menos um comercial e mais um conteúdo. Um vídeo pode ter 30 minutos, uma hora de publicidade. Pura publicidade.”

Monteiro compara o controle dos vídeos para crianças a uma corrida da lebre contra a tartaruga. “Não tem fiscalização nenhuma. O YouTube não consegue fiscalizar todos os vídeos. Nem o Conar [conselho de autorregulação da publicidade]. Como não tem nenhum órgão, tem que passar pelo trâmite do Ministério Público, que demora um ano para avaliar o caso.” Um ano, na lógica de internet, vale por uma era, ela diz.

A discussão de publicidade em vídeos para crianças está começando a entrar nos tribunais. O Instituto Alana, ONG de defesa dos direitos da criança, propôs que o Ministério Público movesse uma ação coletiva contra o Google por conta de uma publicidade infantil velada na plataforma de vídeos YouTube. A ação foi aberta em dezembro de 2018 e corre na Vara da Infância e Juventude em São Paulo.

A peça aponta dezenas de vídeos e cita o caso de influenciadores mirins que receberam bonecas para fazer anúncios que não eram sinalizados como propaganda, ou tinham avisos que o MP considerou insuficientes. 

O Google optou por não comentar os processos. Enviou a seguinte nota sobre o YouTube: “O YouTube é uma plataforma aberta e destinada a adultos, como está observado em nossos termos de serviço. Seu uso por crianças deve sempre ser feito num contexto familiar e em companhia de um adulto responsável. Para anúncios, marcas e criadores devem seguir nossas diretrizes e estar em conformidade com as legislações locais. Em relação ao conteúdo gerado por usuários, todos devem seguir nossas diretrizes da comunidade. Quando não há violação clara à política de uso do produto, a análise final sobre a necessidade de remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário, nos termos do Marco Civil da Internet.”

A ação pede que a Justiça obrigue o Google a adotar “medidas de vigilância que impeçam o uso da plataforma YouTube como meio de burla às normativas sobre publicidade infantil”. Luccas Neto não é citado na ação, pois ela é pautada no uso de menores de idade para publicidade.

Ele, porém, já enfrentou situação semelhante. Em 2018, o Conar recomendou a suspensão de um vídeo em que os irmãos Neto divulgavam um sorteio que levaria seguidores para passar um dia na casa da dupla. O Conar afirmou que o vídeo não deixava claro que era publicidade e continha “apelos impróprios para menores de idade”. Quando a decisão saiu, a promoção já tinha acabado havia mais de seis meses.

"Acabou a era Luccas Neto aqui em casa", diz Jorge Freire, o  Nerd Pai, nome de seu site. Freire, 48, escreveu em janeiro de 2018 um texto que dizia: “Depois de uns dez vídeos, posso dizer com propriedade quem é o Luccas Neto com apenas uma palavra: inofensivo”.

Seis meses depois, mudou de ideia. Em agosto, fez um adendo ao primeiro post: “O meu Padawan [apelido retirado de “Star Wars” pelo qual ele chama o filho] não assiste mais ao Luccas Neto. O incentivo ao consumismo é forte demais e isso acaba sendo prejudicial.”

“No começo eu achei normal”, ele diz à Folha. “Mas depois meu filho começou a imitar o pior comportamento. Começou a gritar. Mas até aí tudo bem. O problema era começar a imitar o consumismo.” 

Freire conta que o filho de oito anos começou a assistir a muitos vídeos em que o apresentador faz suspense para abrir uma caixa e revelar o que tem lá dentro, ato chamado de “unboxing” no jargão do YouTube.

“Tinha ‘unboxing’ com caixas cheias de dinheiro. O vídeo da Nutella é tão besta, mas tão besta, que eu não vejo problema. É Bozo, Trapalhões, é a torta na cara adaptada para os dias de hoje. Mas essa coisa de dinheiro me pegou.” Em um vídeo, Luccas gastava R$ 300 em raspadinhas para descobrir se tinha ganho algum prêmio.

A questão na casa dos Freire, em Sorocaba (SP), foi que o filho começou a querer muito de tudo. “Ele queria muito doce, passou a enfiar muita comida na boca, queria comprar qualquer coisa que visse”, conta o pai.

Por ganhar parte do seu dinheiro no YouTube, Freire não se considera contra publicidade. A questão ali foi de dose. “O Bozo não era 100% focado em brinquedos e produto. Tinha a brincadeira, a pausa, o telefonema, o desenho, o jabazinho. Um programa desses de ‘unboxing’ é 100% de consumo.”

“Cadê os pais dessas crianças?”, pergunta Luccas Neto, olhando para a câmera, nos últimos segundos do vídeo de 2016 que originou o processo em que foi condenado.

Três anos e uma transformação completa depois, ele olha para os mesmos pais com mensagens diferentes: “O influenciador que diz que a responsabilidade de educar é só do pai e da mãe está errado. É óbvio que o pai e a mãe têm que educar. Mas se a gente tem o poder de ajudar o pai e a mãe nessa missão, o que estamos esperando?”.


Chico Felitti, jornalista, faz mestrado em escrita na Universidade Columbia, em Nova York (EUA). É autor de “Ricardo & Vânia” (Todavia).

Ilustração de Higo Joseph, artista plástico.

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