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Semana de 1922 foi fruto de parceria entre São Paulo e Rio, diz autor

Biógrafo de Mário de Andrade rebate tese de que o modernismo paulista teria tentado solapar a cultura carioca

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[resumo] Biógrafo de Mário de Andrade rebate a tese de que o modernismo paulista teria tentado solapar a cultura carioca depois da Semana de 22; a despeito da rivalidade entre São Paulo e Rio, diz, o movimento modernista é fruto de parceria das duas cidades.

A história é sempre feita de verdades provisórias, que podem e devem ser reinterpretadas com diferentes abordagens quando surgem novas informações sustentadas por evidências ou indícios documentais. Isso vale sobretudo para movimentos realmente transformadores, não raro perpassados por lendas e versões falaciosas.

É o caso do modernismo brasileiro. As reavaliações críticas dos últimos anos têm adotado a premissa de que foi um fenômeno paulistocêntrico. Daí decorrem outros equívocos que transformam o debate num contencioso regional, conforme demonstrado na análise de Carlos Eduardo Berriel (“Modernismo paulista tentou apagar ebulição do Rio nos anos 1920”): “O modernismo é moderno, mas nem todos os modernos são modernistas. Esse foi um fenômeno essencialmente paulista”, escreveu o professor da Unicamp na Ilustríssima de 1º de março.

Almoço de escritores integrantes da Semana de 22, no Hotel Terminus
Almoço de escritores integrantes da Semana de 22, no Hotel Terminus. da esquerda para a direita, de cima para baixo: o jornalista italiano Francesco Pettinati, Flamínio Ferreira, René Thiollier, (abaixo) Manuel Bandeira, tuberculoso, segura um improvável cachimbo, Sampaio Vidal, que participaria da fundação do Partido Democrático, Paulo Prado, Graça Aranha, Manuel Villaboim, que trabalhava na Cia. Prado Chaves, cujo presidente era Paulo Prado, (abaixo) Couto de Barros, Mário de Andrade, Cândido Mota Filho, Gofredo da Silva Teles, genro de d. Olívia Penteado, (sentados) Rubens Borba de Moraes, Luís Aranha, Tácito de Almeida e, à frente, Oswald de Andrade - Folhapress

“Existem as letras modernas em Minas, no Rio, no Nordeste etc., e existe o modernismo paulista, coisas totalmente diferentes. Essa distinção é essencial, e sua ausência é muito danosa para a compreensão da época”, argumentou ele.

Essa abordagem, a propósito de comentar “Metrópole à Beira-Mar”, livro no qual Ruy Castro apresenta a modernidade carioca dos anos 20, não contribui muito para ampliar a compreensão das singularidades do movimento, cujas limitações, ambiguidades e contradições refletiram a condição socioeconômica e o ethos de um país periférico, atrasado e isolado.

Focado na dimensão regional, Berriel proclama: “A Semana de 1922 não teria ocorrido sem a iniciativa de cariocas como Di Cavalcanti e Ronald de Carvalho. (...) Por sugestão de cariocas, a elite paulista buscou como patronos os grandes fazendeiros de café, gente que ‘não tinha grande apreço pelas artes, e muito menos por futurismos’, mas possuía interesses econômicos envolvidos”.

A primeira afirmativa é uma visão carlyleana da história. Nenhum “grande homem”, nem mesmo Mário de Andrade, foi determinante para a realização da Semana. Foi um trabalho coletivo, sintonizado com as transformações gerais em curso na parte mais avançada do planeta.

A Europa rica já havia lançado futurismo, cubismo, expressionismo, fauvismo e dadaísmo. Conseguimos a proeza de ingressar nessa linhagem, mesmo sendo um país subdesenvolvido, com 71,2% de analfabetos entre os 30,6 milhões de habitantes em 1920.

Ronald de Carvalho participou da Semana, mas não teve nenhum envolvimento na organização, exceto convidar a pintora Zina Aita, mesmo porque, diplomata, trabalhava o dia inteiro no Itamaraty, como oficial da Secretaria de Estado. Até 1922 ele gostava mais de Olavo Bilac do que de Apollinaire e tinha publicado apenas dois livros de poemas simbolistas/parnasianos.

Seu mérito maior foi ter contribuído para a adesão carioca ao movimento, convidando Mário e Oswald de Andrade para uma reunião em sua casa na noite de 20 de outubro de 1921, quando ainda nenhum deles sonhava com uma Semana de Arte Moderna. Depois de ouvir poemas inéditos que comporiam “Pauliceia Desvairada” (1922), de Mário, Ronald ficou tão entusiasmado que começou a escrever seu primeiro livro com dicção pretensamente modernista, “Epigramas Irônicos e Sentimentais”, também lançado em 1922. Tudo isso está comprovado em documentos.

Quanto ao patrocínio da Semana, o papel das elites tem sido superestimado na historiografia modernista. A ajuda financeira que alguns membros da burguesia liberal paulista deram à Semana de 22 não foi um ato excepcional, e tampouco os jovens modernistas venderam sua alma.

Mecenato e filantropia eram práticas relativamente comuns por parte de uma fração das oligarquias agrárias e urbanas em São Paulo (e no Rio) até a década de 1930, para suprir a virtual ausência de políticas públicas.

Um exemplo, entre muitos: o Conservatório Dramático e Musical (onde Mário de Andrade estudou e lecionou) teve seu prédio comprado com verba de doações particulares e da renda de eventos culturais beneficentes. Ademais, o dinheiro dos dez doadores da Semana foi irrisório, o equivalente hoje a cerca de R$ 11 mil. Portanto, foi um movimento essencialmente de classe média, sem vínculo orgânico com as oligarquias. Tanto que todas as revistas do movimento tiveram vida curta por falta de dinheiro.

Berriel também reafirma a lenda (ou teoria da conspiração) de que os artistas e escritores paulistas modernos teriam lançado o movimento em conluio com as elites políticas e econômicas do estado, para solapar a cultura carioca e assim conquistar para São Paulo a hegemonia nesse setor.

Como parte dessa conspiração, nas palavras de Berriel, “após a Semana de Arte Moderna de 1922, difundiu-se amplamente a ideia de que a cultura da então capital federal fora sepultada; estaria superada, esclerosada, tresandando ao parnasianismo e ao academicismo arcaico”.

“A Semana de 22 e o modernismo constituíram”, comenta em outro trecho, “um movimento de amplo espectro ideológico, cuja luta principal era a transferência da hegemonia política, cultural e econômica para São Paulo”.

A primeira afirmação é uma hipérbole inverossímil, talvez originária da então nascente rivalidade bairrista (atualmente bem menos) entre as duas principais cidades do país. Vale notar que, por variados motivos, a maioria dos movimentos de renovação artística do século 20 não germinou nas capitais culturais de seus países.

O futurismo italiano nasceu em Bolonha, não em Roma. Os principais grupos do expressionismo plástico alemão, Die Brucke e Der Blaue Reiter, surgiram respectivamente em Dresden e Munique, não em Berlim. O dadaísmo nasceu em Zurique, não em Basileia. O rock nasceu na pequenina Memphis, não em Nova York, o rock inglês nasceu na provinciana Liverpool, não em Londres, e o modernismo não nasceu na Cidade Maravilhosa, mas na provinciana São Paulo.

Contudo, apesar de artistas e escritores modernos cariocas não terem sido os primeiros a articular em 1922 um movimento de agitação estética, por razões conjunturais (entre elas as festas do centenário da Independência e a conturbada campanha presidencial), uma verdade nunca lembrada é que a mobilização aconteceu simultaneamente em São Paulo e no Rio.

Foi uma parceria paulistano-carioca. Representantes do Rio participaram de todos os eventos da Semana, que só resultou num movimento consequente e histórico porque os corifeus modernistas nas duas cidades se tornaram ativistas culturais, difundindo seu ideário de forma sistemática e organizada em palestras, saraus, artigos, livros e viagens de aliciamento pelo Brasil.

Mesmo com opositores “passadistas” na imprensa, a campanha foi bem-sucedida graças à permanente cooperação, embora nem sempre harmoniosa, dos grupos paulista e carioca, e deles com discípulos em outras capitais.

No Rio o ambiente cultural sem dúvida ganhou maior densidade com as atividades modernistas de Graça Aranha (mais como animador), Prudente de Moraes Neto, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Di Cavalcanti, Aníbal Machado, Ronald de Carvalho, Villa-Lobos, Álvaro e Eugênia Moreyra (que fazia declamações em teatros do Rio e de São Paulo), os jornalistas Renato Almeida, Paulo Silveira e Américo Facó, as cantoras líricas Elsie Houston e Germana Bittencourt, tudo com apoio dos críticos Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima), Agripino Grieco e outros.

As principais revistas do movimento, Klaxon, de São Paulo, e Estética, do Rio, tiveram colaboradores das duas cidades e de outras partes do país. O jornal carioca A Noite publicou a seção Mês Modernista entre dezembro de 1925 e janeiro de 1926, com textos de paulistas, cariocas e mineiros. A Antropofagia de Oswald de Andrade teve no Rio uma terceira dentição (que não consta da historiografia do modernismo), a qual localizei na revista carioca O Q A e que merece um estudo.

Além disso, quando Mário de Andrade morou no Rio por dois anos e meio (entre 1938 e 1941), coordenou a Comissão do Folclore da Sociedade dos Amigos do Rio de Janeiro, entidade privada com a função de proteger o patrimônio histórico-artístico e melhorar a qualidade da vida urbana da população. Uma das tarefas da comissão foi inventariar manifestações culturais populares cariocas.

À medida que se aproxima o centenário da Semana de Arte Moderna, tão relevante quanto passar a limpo a sua história e o seu vasto legado é lembrar que desde então existe uma defasagem entre a cultura brasileira e o país como um todo. A cultura se modernizou, mas ainda temos um Estado parnasiano.


Jason Tércio, escritor, é autor de oito livros, entre eles a biografia de Mário de Andrade, “Em Busca da Alma Brasileira” (Estação Brasil, 2019).

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