Descrição de chapéu Coronavírus

Veja proposta para decidir acesso de pacientes a UTI durante a pandemia

Para professores de ética, critérios devem buscar salvar o maior número possível de vidas humanas

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Alcino Eduardo Bonella Darlei Dall’Agnol Marco Antônio Azevedo Marcelo de Araujo

[RESUMO] Autores defendem a instituição de diretrizes especiais de destinação de leitos de UTI a pacientes durante a pandemia do novo coronavírus e propõe critérios de priorização com base no princípio de tentar salvar o maior número possível de vidas humanas.

Em um cenário de extrema escassez de recursos hospitalares para o elevado volume de pacientes na pandemia por Covid-19, quais devem ser as diretrizes para a alocação de leitos e ventiladores em UTI? Gravidade da situação do paciente? Ordem de chegada? Maiores chances de recuperação da doença? Sorteio? Profissionais da saúde na linha de frente devem ter prioridade? Como lidar com a escolha entre pacientes com a mesma situação clínica?

Apresentamos aqui uma perspectiva para contribuir com a deliberação eticamente bem informada em torno do problema. Ela considera documentos do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), princípios e argumentos das teorias éticas comumente consideradas, propostas de diretrizes e protocolos de grupos especializados e de países afetados.

Pensamos que a perspectiva ética fundamental para um cenário de extrema escassez é a da maximização equitativa dos benefícios do tratamento intensivo, ou seja, tentar salvar a maior quantidade possível de vidas humanas. Uma calamidade hospitalar, ao colocar em risco a vida de um grande número de pessoas em um curto espaço de tempo, e diante de recursos extremamente escassos torna a situação um problema agudo de saúde pública.

Em tal situação, como ocorre em circunstâncias de catástrofes naturais devastadoras, a prioridade deve ser dada ao salvamento do maior número possível de pessoas. Assim, o que deve ser determinante é a maior probabilidade de recuperação do paciente que precisa da UTI, e não a maior gravidade do estado do paciente ou a ordem de chegada. Os pacientes com maior chance de se recuperar da doença tendem a passar menos tempo na UTI, têm maior chance de serem salvos e propiciam, se atendidos prioritariamente, o salvamento de um número maior de outras pessoas.

Para que a maximização seja equitativa, porém, outro princípio fundamental de uma perspectiva ética tem de ser observado: é fundamental que a alocação de recursos seja propiciada de forma imparcial a todos os pacientes. Todas as demandas devem receber a devida consideração para que nenhum paciente seja deixado completamente de lado, sem que a sua demanda seja comparada à de outras pessoas que também necessitam de UTI. Ocorre, todavia, que haverá muito mais mortes sem uma priorização adequada.

Com uma ordem adequada de atendimento prioritário, sem exclusões a priori de nenhum paciente, será a própria calamidade e a disponibilidade de recursos que determinarão, de fato, quem recebe o tratamento. Pensamos que é possível organizar diretrizes de triagem e alocação equitativas, que integram os princípios da maximização e de imparcialidade.

Em primeiro lugar, é necessário que as autoridades competentes estabeleçam o protocolo e declarem a vigência do período de calamidade durante o qual o protocolo deverá ser observado, deixando claro que as diretrizes se aplicarão: (1) ao momento excepcional pelo qual estamos passando e não à rotina normal de hospitais e prontos-socorros, (2) em todos os locais da União em que vigorar a excepcionalidade da situação e (3) direcionadas igualmente a todos os pacientes que precisam de UTI, não apenas aos pacientes diagnosticados com Covid-19.

Estar acometido de Covid-19 não deve, por si só, conferir a nenhum paciente nem maior nem menor prioridade sobre os demais. Estes, todavia, devem ser alocados pelas mesmas diretrizes especiais. É importante notar que essa medida não é incoerente com a decisão que determina que hospitais de campanha devam ser utilizados apenas para o tratamento de pacientes com Covid-19. Isso permite a alocação de recursos escassos nos locais mais adequados.

Em segundo lugar, devem ser criadas equipes médicas de triagem, separadas das equipes de cuidado intensivo, estabelecidas em cada instituição com UTI, para a admissão de pacientes críticos, segundo critérios especiais. Tal diretriz visa mitigar o dilema médico de selecionar pacientes prioritários e diminuir a tensão entre o cuidado intensivo do paciente individual (ética clínica) e a atenção aos outros pacientes esperando pelo tratamento, para salvar o maior número de pessoas (ética da saúde pública).

Caberá à equipe de triagem, formada por profissionais especializados e experientes, classificar os pacientes em três grupos de prioridade, de acordo com a maior chance de recuperação. Os grupos incluirão todos os pacientes que necessitam de UTI e terão as cores tradicionais para atendimento emergencial:

  • Grupo A: prioridade máxima —alta recuperação prevista (cor vermelha)
  • Grupo B: prioridade média —média recuperação prevista (cor laranja)
  • Grupo C: prioridade baixa —baixa recuperação prevista (cor amarela)

Pensamos que é melhor, se possível, que a triagem utilize escores clínicos quantitativos de avaliação. A utilização de escores se justifica pela preocupação em mitigar o viés de seleção e aumentar a proteção, tanto aos pacientes quanto aos profissionais, dos riscos de avaliações excessivamente subjetivas.

Os escores conferirão maior objetividade às decisões, sobretudo em situações em que os profissionais precisam justificar as suas decisões para pacientes e familiares. Escores clínicos especialmente relacionados a quadros infecciosos, como o Sofa (Avaliação Sequencial de Falhas de Órgãos), permitem que as prioridades sejam expressas objetivamente.

O Sofa permite a atribuição de escores, que variam entre 0 e 4, aos sistemas cardiovascular, respiratório, hepático, hematológico, neurológico e renal, dependendo do grau de comprometimento de cada um desses sistemas. Os escores são somados para proporcionar um valor total, e quanto maior o valor, pior o prognóstico do paciente. O Sofa é um bom indicador de prognóstico quando usado sequencialmente nas primeiras 48h da internação.

Pacientes com escore inicial menor que 6 possuem prognóstico melhor (com uma taxa de mortalidade usualmente menor que 20%); os com escores iniciais entre 7 e 11 têm prognóstico intermediário; e pacientes com escore inicial a partir de 12 têm prognóstico pior, possuindo uma alta taxa de mortalidade, acima de 80%. Pacientes com aumento do Sofa a partir do valor inicial (seja ele qual for) têm uma mortalidade de 50%.

Com base no Sofa, os pacientes podem ser classificados pelo escore em um dos três grupos de prioridade:

  • Grupo A: pessoas com escore inicial menor que 6 ou significativamente decrescente nas primeiras 48h, candidatos a alta prioridade, assim como (a) profissionais de saúde em UTI
  • Grupo B: pessoas com escore inicial entre 6 a 11 ou escore crescente nas primeiras 48h, candidatos a prioridade média
  • Grupo C: pessoas com escore inicial maior que 12, assim como (b) pacientes sem indicação de cuidados intensivos, candidatos a baixa prioridade

Com os escores totais do Sofa —observadas, porém, as situações (a) e (b) citadas—, obtemos uma classificação de pacientes em ordem de atendimento prioritário, do menor escore para o maior. O mesmo ocorreria nos outros grupos. Observe-se que essa avaliação não deixa de dar igual consideração a todos os pacientes: todos estão elegíveis para a admissão na UTI e os critérios de classificação são imparciais.

Nível de prioridade Escore Sofa Classificação dos pacientes
Alta Profissionais de UTI e escore maior que 6 A1, A2, A3 etc.
Média Escore de 6 a 11 B1, B2, B3 etc.
Baixa Escore maior que 12 e pacientes indicados a cuidados paliativos C1, C2, C3 etc.

À medida que os recursos se tornem menos escassos, mais pacientes podem ser atendidos, mas ainda em consonância com as prioridades estabelecidas. Destaque-se também que, para salvar mais vidas, os pacientes eventualmente mais graves, mas com pior prognóstico de recuperação, têm um nível de prioridade menor do que pacientes em estado menos grave, mas com maiores chances de recuperação.

Existem ainda outros sistemas de escores que podem ser utilizados (qSofa, mSofa, Apache etc.). Alguns especialistas sugerem uma combinação de escores diferentes para se obter pontuação final —por exemplo, combinando escores de gravidade, de morbidade e de reversibilidade do quadro. Mas é preciso lembrar que qualquer combinação de escores e pontuação final deve ser ajustada ao objetivo de selecionar a maior chance de recuperação. Ela deve ser também ser razoavelmente realista para que possa ser aplicada com rapidez pela equipe de triagem.

Sugerimos duas situações especiais que devem classificar pacientes independentemente do escore do Sofa. A primeira (a) visa dar prioridade aos profissionais de saúde que atuaram na linha de frente das UTIs e devem ficar à frente de todos. As razões são: salvar tais profissionais, que foram e poderão ser fundamentais para o cuidado intensivo aos doentes e para manter o moral das equipes (valor instrumental), é necessário para salvarmos mais vidas, além de ser uma forma de cumprir um dever moral de reciprocidade.

A segunda (b) visa classificar as pessoas cuja condição, do ponto de vista clínico, não recomenda cuidados intensivos, como, por exemplo, pacientes em condição de terminalidade, com doenças incuráveis em estágio avançado ou em situações graves e irreversíveis, candidatos a outros tipos de cuidados, fora da UTI. Pacientes, por exemplo, de cuidados paliativos, que devem estar disponíveis.

Porém, se tais pacientes ou suas famílias insistirem no tratamento intensivo, e este pode muito bem ser o caso, eles devem ser equitativamente incluídos, mas, neste caso, com menor prioridade. Daí serem imediatamente alocadas no grupo C. Tal critério é consistente com a diretriz do CFM (prioridade 5, a última, para admissão em UTI) em situações ordinárias, fora de calamidades.

Mas o que fazer se houver empate nos escores, no interior de um mesmo grupo? Gostaríamos de propor dois critérios suplementares para desempate. Em primeiro lugar, na eventualidade de escores de mesmo valor, o desempate deve levar em conta a ideia de ciclos de vida do paciente. Pensamos aceitável que recebam prioridade, para desempate, pessoas com até 40 anos de idade (ciclo inicial), em seguida, pessoas entre 41 e 75 (ciclo intermediário) e, finalmente, pessoas acima dessa idade (ciclo final).

Esse critério permite, a um só tempo, realizar os objetivos de salvar mais vidas, uma vez que a idade mais elevada, em geral, se relaciona com pior prognóstico em UTI, especialmente na Covid-19, e de proteger contra a maior perda de anos de vida agregados, um dos objetivos da assistência em saúde. Além disso, o critério de ciclos de vida expressa imparcialidade no trato com pacientes que ainda não passaram pelos ciclos esperados numa vida humana completa e sofrem perdas maiores em termos de anos por viver.

A morte prematura é um malefício maior do que a morte no ciclo de vida final, tanto para os indivíduos afetados quanto para a sociedade como um todo. É preciso observar, porém, que não se trata de mobilizar a idade pura e simplesmente, como quando alguém com 54 anos é preferido a alguém com 57, mas de ciclos de vida distribuídos em três grupos amplos. Dentro deles não há escores.

Finalmente, persistindo empate, randomização é a forma mais justa de alocação, pois garante chances iguais estritas e impessoais para cada paciente, além de propiciar celeridade para a triagem.

Os critérios de ciclos de vida e sorteio são apenas para a situação de empate entre pacientes com o mesmo escore clínico e formam um conjunto com o critério da maior chance de recuperação, que é prévio e determinante dos grupos, ou seja, são critérios adicionais que não estão sugeridos isoladamente.

Não tratamos aqui da delicada questão relativa à suspensão do suporte intensivo, se o paciente admitido piorar significativamente e/ou passar a usar mais tempo dos recursos do que o previsto por um limiar razoável. Uma diretriz ética parece ser que a equipe de triagem pondere diariamente também sobre a possibilidade da suspensão do tratamento, com diretrizes similares às da triagem inicial.

Independentemente de como lidar com essa questão, é preciso destacar a necessidade de haver equipes para outros cuidados adequados aos pacientes fora de UTI, especialmente de cuidados paliativos. É também muito importante a existência de uma comissão de avaliação e monitoração permanente das diretrizes e da sua aplicação.

Ressaltamos, para terminar, a necessidade de estabelecimento oficial, por parte das autoridades competentes, do período de vigência da calamidade hospitalar e das diretrizes e/ou protocolos especiais de triagem e cuidado. Tais diretrizes devem ser transparentes, públicas, válidas em todo o território nacional e aplicadas a todos os pacientes críticos que necessitem de UTI.


Alcino Eduardo Bonella é professor titular de ética da UFU (Universidade Federal de Uberlândia).

Darlei Dall’Agnol é professor titular de ética da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Marco Antônio Azevedo é professor de ética da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) e médico emergencista do Hospital de Pronto Socorro, em Porto Alegre.

Marcelo de Araujo é professor de ética da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e de filosofia do direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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