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Coronavírus

Como na Itália, falta de UTI nos fará escolher entre quem vive e quem morre

É dever da sociedade estabelecer critérios transparentes durante pandemia de coronavírus, dizem especialistas

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Daniel Wei Liang Wang Marcos de Lucca-Silveira

[RESUMO] Explosão do número de pacientes com sintomas graves de Covid-19 torna urgente o debate da distribuição de vagas em UTIs em períodos de catástrofe, de modo a dar legitimidade às complexas decisões sobre quais doentes vão ter prioridade.

Na saúde, há sempre mais necessidades que recursos. Por isso, muitos pacientes não recebem todos os cuidados de que precisam. Um recurso frequentemente racionado são vagas em UTIs (Unidades de Terapia Intensiva).

Pesquisas em diversos países, inclusive no Brasil, mostram que é comum que profissionais de UTIs façam triagem de pacientes em situações em que o número de pessoas necessitadas de terapia intensiva é maior que o de vagas disponíveis.

Essas escolhas normalmente são apresentadas como julgamentos clínicos sobre a pertinência de cuidados intensivos para um paciente. A escassez, contudo, afeta esses julgamentos.

De acordo com diversos estudos, a falta de vagas de UTI gera três consequências: os pacientes admitidos tendem a estar em condição mais grave, menos pessoas são admitidas para monitoramento e pacientes recebem alta mais rapidamente. Ou seja, a insuficiência de vagas muda os critérios de admissão (que se tornam mais rigorosos) e de alta de pacientes (que passam a ser mais maleáveis).

O racionamento de vagas de UTI tende a ser uma ação implícita —raramente se admite que o tratamento ideal não foi dado por falta de vaga. Contudo, ele se torna evidente em crises como a atual, causada pelo novo coronavírus.

Na Itália, as UTIs já não absorvem toda a demanda, e médicos precisam escolher quem receberá os cuidados e quem morrerá. Essa será a realidade no Brasil, caso o ritmo de contágio se mantenha.

É urgente, portanto, discutir os critérios de alocação em situações de desastre, com gigantesca demanda por vagas. Um desastre é um evento que afeta seriamente o funcionamento de uma sociedade e causa danos aos quais ela não consegue responder com recursos próprios.

Desastres forçam mudanças no atendimento à saúde e na alocação de recursos materiais e humanos. O que pode ser oferecido a cada um é condicionado pelo necessário para salvar o maior número de vidas.

Normas para acesso à UTI evitam alocação de leitos baseada apenas em ordem de chegada ou urgência, nem sempre os critérios mais relevantes para orientar as decisões. Também limitam os vieses indesejáveis, como o favorecimento a pessoas de determinada classe social ou raça.

Sobretudo quando há receio de iminente desastre, é melhor que critérios sejam acordados antes que o pior aconteça, quando a urgência da situação impedirá reflexão detida sobre o assunto.

No Brasil, já existem diretrizes para a distribuição de vagas de UTI. A principal referência é uma resolução (2156/16) do Conselho Federal de Medicina. Ela estabelece como critério a “necessidade de suporte para as disfunções orgânicas e monitoração intensiva”.

Prioriza-se o atendimento levando em conta a necessidade de intervenção de suporte à vida, a probabilidade de recuperação e a ausência de limitação de suporte terapêutico.

A limitação citada neste último ponto refere-se à decisão de limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, em fase terminal, de enfermidade grave e incurável.

A resolução do conselho federal estabelece os seguintes níveis de priorização:

1) Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico; 2) pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico; 3) pacientes que carecem de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica; 4) pacientes que precisam de monitorização intensiva, pela elevada probabilidade de intervenção imediata, mas com limitação de intervenção terapêutica; 5) pacientes com doença em fase terminal, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação.

Em situações de tragédia, torna-se ainda mais importante atender aos critérios, para que pacientes com prioridade 2, 3, 4 e 5 não ocupem o espaço que deveria estar disponível aos de prioridade 1.

Situações excepcionais também forçam modificações. A depender do aumento da demanda, pode não ser possível atender nem mesmo todos os pacientes de prioridade 1. Será preciso fazer distinções mais detalhadas entre graus de necessidade e de probabilidade de recuperação para escolher entre aqueles em cada nível de prioridade (por exemplo, por meio da criação de níveis intermediários 1.1, 1.2, 1.3).

Em situação de desastre, o tempo esperado de internação de um paciente na UTI é um critério importante. A preferência deve ser dada àqueles para quem se prevê uma alta mais rápida. Isso permite maior rotatividade na UTI e, consequentemente, aumenta o número de pessoas que podem se beneficiar.

Expectativa e qualidade de vida do paciente após a UTI também podem ser consideradas. Esses são pontos controversos, mas frequentemente usados pelos profissionais de saúde responsáveis pela triagem de pacientes.

Também são considerados na alocação de outros recursos, como em decisões sobre incorporação de medicamentos. Se concordarmos que uma pessoa de 30 anos com expectativa de vida normal pós-UTI deve ter preferência em relação a outra de 80 com Alzheimer avançado, então tempo e qualidade de vida podem determinar escolhas fundamentais.

Em momentos de tragédia, além de questões relacionadas diretamente à saúde do paciente, também devem ser levados em conta benefícios sociais indiretos? Por exemplo, a quem dar preferência: a uma mãe com filhos pequenos, a uma médica intensivista ou a uma cientista estudando uma vacina contra o coronavírus?

Embora possa ser atrativo, é melhor evitar considerar benefícios sociais nesses casos. É difícil mensurar a contribuição social de uma pessoa. Como comparar um padre que traz conforto espiritual com um gari que impede que o lixo acumulado cause outro problema de saúde pública? Critérios sociais são uma porta aberta ao preconceito.

Uma exceção talvez caiba aos profissionais de saúde. Isso se justifica pela sua escassez em momentos de tragédia, pela demora em treinar substitutos e pela possibilidade de retorno ao trabalho para salvar mais vidas. Talvez haja outras exceções, mas devem ser abertas com cautela, transparência e forte justificativa.

A resolução do Conselho Federal de Medicina determina que pacientes receberão alta quando tiverem quadro clínico controlado e estabilizado ou quando for esgotado o arsenal terapêutico para seu caso.

Todavia, em situações de tragédia, a demanda pode aumentar rapidamente. De uma situação em que havia vagas para pacientes com grau de prioridade 2 pode-se chegar, em poucos dias, a uma em que falta vaga para quem está em grau 1.

Assim, hospitais se veem na obrigação de dar alta prematura. Como mencionado, isso não é incomum no cotidiano de UTIs. No entanto, em situações de tragédia, poderá ocorrer em escala muito maior e muito mais precocemente.

Tirar um paciente da UTI para colocar outro é, por certo, controverso. Alguns defendem ser maior o dever ético do profissional para com um paciente já internado, com quem já assumiu um compromisso de cuidado, do que em relação a outro ainda não internado.

Outros acreditam que todo paciente deva ser igualmente considerado e que não há diferença moral entre negar e retirar um tratamento. Se o objetivo é primordialmente maximizar resultados, então essa segunda corrente é aceitável em situações de excepcionalidade.

O racionamento de vagas de UTI, por óbvio, será menor se a oferta for ampliada. É fato, porém, que são limitados os recursos materiais e humanos para aumento em grande escala em um curto período. Não bastasse isso, ampliar o número de leitos de UTI em resposta à Covid-19 compete com outras necessidades em saúde.

Embora a pandemia domine a atenção do sistema de saúde neste momento, não é o único motivo pelo qual pacientes precisam de UTI. Os critérios de internação devem ser os mesmos independentemente da doença, embora deva haver controle para evitar contágio na própria UTI.

Pacientes em cuidado paliativo ou de média intensidade, que não precisam ou não tiveram a oportunidade de receber cuidado intensivo, não podem ser esquecidos. Negar acesso a um recurso devido à escassez é diferente de abandonar o cidadão.

As atenções primária e secundária também precisam ser capazes de cuidar daqueles em situação menos grave para que não venham a necessitar de UTI, sem esquecer as medidas de prevenção, a melhor resposta para a pandemia.

Por fim, é preciso equilibrar o combate à Covid-19 com a atenção a outros problemas de saúde, que podem acabar negligenciados. Em alguns países atingidos pelo surto de ebola, por exemplo, houve um grande aumento do número de mortes por tuberculose, Aids e malária.

Os critérios para a distribuição de vagas em UTIs podem ser aplicados no interior de cada hospital, para escolher entre os pacientes que se apresentam para usar os recursos lá disponíveis.

No quadro atual, contudo, há vantagens em centralizar essas decisões para alocar todos as vagas disponíveis entre todos os pacientes elegíveis em uma certa região.

A distribuição centralizada por um comitê gestor para gerir oferta e demanda de UTI pode evitar uma situação de sobrecarga em alguns hospitais e ociosidade em outros. Também facilita a aplicação consistente dos critérios e diminui a desigualdade no impacto da pandemia em relação a diferentes classes sociais. Esse é um risco em um país em que, mesmo com o SUS, grande parte dos leitos de UTI está no sistema privado.

A centralização da distribuição de vagas pode ocorrer de forma voluntária ou compulsória. A Constituição estabelece que, no caso de iminente perigo público, as autoridades competentes poderão usar de propriedade particular. A lei 13.979/2020 também prevê requisição de bens e serviços.

Decisões relativas a vagas em UTIs, ainda que ética e legalmente justificadas, serão traumáticas para todos, mas particularmente para os profissionais que farão a triagem de pacientes. É dever da sociedade compartilhar o ônus dessas escolhas, estabelecendo, com total transparência, os critérios para determinações de vida ou morte.

Aqui se faz um primeiro esforço nesse sentido, mas estamos longe de dar uma resposta definitiva. Os critérios de urgência, gravidade e prognóstico podem ser estabelecidos apenas pelos profissionais médicos.

Esse tema é também eticamente complexo e haverá discordância sobre os princípios aqui sugeridos. É preciso, portanto, uma deliberação inclusiva e ampla que traga legitimidade para as normas e aumente a probabilidade de que sejam respeitadas.

Por fim, as diretrizes excepcionais precisam estar formalizadas em norma do Ministério da Saúde ou do Conselho Federal de Medicina. Isso contribuirá para a consistência na sua aplicação e protegerá profissionais de responsabilização legal. Momentos como este testarão o senso de justiça e a solidariedade de uma sociedade.


Daniel Wei Liang Wang, doutor em direito pela London School of Economics and Political Science, é professor da FGV São Paulo e membro do comitê de bioética do Hospital Sírio Libanês.

Marcos de Lucca-Silveira, doutor em ciência política pela USP, é professor da FGV São Paulo e membro do comitê de ética em pesquisa do Hospital Infantil Sabará/FJLES.

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