Encontro de poeta perseguida por Stálin e ensaísta britânico é recriado em peça; leia trecho inédito

Texto de Amir Labaki apresenta impactos da relação na vida de Anna Akhmátova e Isaiah Berlin

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Amir Labaki

Crítico de cinema, dramaturgo e fundador e diretor do festival É Tudo Verdade; autor de ‘1961 – A Crise da Renúncia e a Solução Parlamentarista’ (ed. Brasiliense)

[SOBRE O TEXTO] Este trecho faz parte da peça “Anna & Isaiah”, que reconstitui o encontro, na então Leningrado (São Petersburgo) de novembro de 1945, da poeta russa Anna Akhmátova (1889-1966) e do ensaísta naturalizado britânico Isaiah Berlin (1909-1997). Acusada de colaborar com espiões, Akhmátova caiu em desgraça, por ordem de Stálin, e a sua família foi perseguida. Retomando a carreira acadêmica no Reino Unido, Berlin, por sua vez, se reconciliou com a cultura russa da sua infância. A leitura da peça estreia nesta segunda (21) às 19h no ciclo Teatro na Mário e ficará disponível por um mês no YouTube da Biblioteca Mário de Andrade.

*

Noite de 13 de novembro de 1945. Aos 36 anos, o então diplomata e ensaísta britânico Isaiah Berlin visita pela primeira vez a poeta Anna Akhmátova, 56, em seu apartamento no Fontânni Dom, em Leningrado.

(...)

Isaiah Que poeta magnífico é Pasternak! Quando vocês se conheceram?

Anna Ah, não tão cedo. Já tínhamos mais de 30 anos. Acho que em 1922. Sempre nos amamos e adoramos. É como se vivêssemos num deserto, solitários. Sabermos um que o outro está vivo e trabalhando é uma fonte de infinito conforto mútuo. Toda a admiração de incontáveis homens e mulheres nos dá prazer e orgulho, mas ainda assim é como se estivéssemos no exílio. Não me entenda mal. A ideia de emigrar nos é odiosa. Jamais me mudarei. Aconteça o que acontecer, venha o horror que vier, estou pronta para morrer em meu país.

Isaiah Vocês se encontram regularmente?

Anna Pasternak só me procura quando está meio deprimido. Ele então vem, perturbado e exausto, e conversamos, até que sua mulher venha para levá-lo de volta para casa. Já perdi a conta das vezes em que ele me pediu em casamento! (Risos) E você, Isaiah, já se casou?

Isaiah Não, Anna, ainda não parece ter chegado a minha hora.

Anna Por quê?

Isaiah Talvez não seja o caso de perguntar a mim...

Anna A quem então?

Isaiah É... Hmmm... Não saberia dizer. Talvez seja este o problema (risos).

Anna Isaiah, sou uma mulher experiente. Você não vai me convencer de que o amor desapareceu em seu mundo, entre Londres, Washington e Nova York.

Um desenho em branco e preto de uma figura humana com muitos olhos na cabeça
Ilustração - Marcelo Bio Poletto

Isaiah Bem, Anna, como a natureza não me foi, digamos, generosa, minhas aventuras, da universidade à diplomacia, têm se concentrado na batalha das ideias e nos relatos de opinião. Nada, ehr, muito sedutor, enfim.

Anna Um anjo da academia? Que tentador!

Isaiah Ahn, bem, longe disso, nem anjo, nem Don Juan. Para ser-lhe sincero, conheci já em Washington uma dama aristocrática que não me é indiferente. Passamos bons momentos, nos divertimos juntos, mas eu talvez não seja sua chávena de chá, se é que me entende.

Anna A ver, Isaiah, a ver. Você sabe, Kólya me propôs casamento por tantas vezes! Por fim, até eu acreditava que era meu destino ser sua mulher. Quando casamos, o encanto como se dissipou, mas fomos brindados com Liev. Depois dele, tive outros amores, mas nada perdurou. Acabei-me sentindo tão impura —e lá estava Vladímir Shileiko. Ele era um linguista, tradutor, muito rígido. Achei que casar com ele fosse ser uma faxina. Como ir para um convento —sabendo que você vai perder sua liberdade.

Isaiah Voilà!

Anna Casamos em 1918 e durou o que tinha de durar. Vladímir era tão possessivo! Foi um triste equívoco. Arthur Lourié me amparou, mas a tentação do exílio foi para ele mais forte. Então veio Púnin. Nos conhecíamos desde os tempos do Cão Vadio. Foi um amor difícil, sempre tudo tão instável... Quem diria, foi meu casamento que mais durou, 15 anos, entre idas e vindas.

Isaiah Uma verdadeira Donna Anna de Mozart, portanto (Com a cigarrilha, rege no ar o começo da ária de “Don Giovanni”, que toca incidentalmente na trilha. Ambos sorriem).

Isaiah Parece que durante um tempo todo mundo se encontrava no Cão Vadio!

Anna Você o perdeu por pouco, Isaiah. Até o começo da Primeira Guerra, São Petersburgo é que era uma festa. O Cão Vadio funcionou só uns três anos, de 1912 a 1915, mas tudo passava por lá. Podíamos ver numa noite uma nova dança de Tamara Karsávina, encontrar Maiakóvski declamando e ouvir um concerto contemporâneo com músicas de Scriabin e Debussy. Foi lá também que conheci Blók, em 1913. Saloméa (Andronikova) vivia lá! Ela era tão linda, charmosa, inteligente, detectava à distância os poetastros de segunda classe.

Isaiah Foi nessa época que você começou a publicar?

Anna Meu primeiro livro, “Noite”, saiu em 1912 e foi bem recebido pela crítica. Em 1910 a crise do simbolismo já se tornara aparente, com aqueles mistérios simulados... Os jovens poetas não queriam mais saber daquilo. Alguns abraçaram o futurismo, principalmente em Moscou: Khlébnikov, Maiakóvski. Eu e meus colegas da Oficina dos Poetas, como Mandelstam, criamos o acmeísmo.

(Silêncio) Como tudo mudou... Estou muito sozinha. Não tenho mais ninguém aqui. Para mim a cidade ficou vazia. Leningrado depois dos 900 dias do cerco alemão virou um vasto cemitério. O túmulo de meus amigos.

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