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Pedro Estevam Serrano

Inquérito de Moraes é legítimo, mas STF erra ao fundamentar prisões

Corte deveria estabelecer limites precisos entre liberdade de expressão e convocação de ações criminosas

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Pedro Estevam Serrano

Doutor em direito do Estado com pós-doutoramento nas Universidades de Lisboa, Católica de Paris e Paris Nanterre, é professor de direito constitucional da PUC-SP

[RESUMO] Bastião da defesa da democracia, STF tem dificuldades em estabelecer fronteiras nítidas entre a garantia da liberdade de expressão, que deve permitir críticas ácidas e extremistas, e a repressão a ações violentas, que mobilizam discursos de ódio para convocar ataques às instituições democráticas.

O STF (Supremo Tribunal Federal) é um órgão jurisdicional do Estado que amalgama funções de tribunal constitucional e de suprema corte, além de concentrar competências extravagantes relativas ao contencioso penal e ao federalismo.

O plexo de atribuições não inclui, em regra, o exercício de atribuições reservadas aos órgãos de persecução penal, aos quais compete, ordinária e privativamente, instaurar e realizar investigações para fins de apuração de infrações penais e de sua autoria.

Entretanto, estando sob "contempt of court", legitima-se a autodefesa pelo tribunal, conforme pontuou Lenio Streck, para que ele próprio responda aos ataques e às omissões dos órgãos comuns de persecução penal (Polícia Federal e Ministério Público Federal).

Além disso, a competência de persecução penal não é matéria que guarde inediticidade. O regimento interno do STF, já na sua redação original de 1980, previu a atribuição da sua presidência para, nos termos ali especificados, instaurar inquérito destinado a apurar infração à lei penal.

Em situações extraordinárias, em que não haja outro mecanismo de defesa da corte senão por ela própria, a atuação investigatória legitima-se. É umbilical a relação entre a ameaça ao órgão curador e à própria Constituição. Na feliz expressão de Eduardo Garcia de Enterria, a Constituição atribui ao tribunal constitucional suas possibilidades e futuro. Nesse sentido, a ameaça ao funcionamento da corte afeta o próprio sistema de garantias de direitos.

Por essas razões, não há que se falar em violação ao sistema acusatório a instauração ex officio de inquéritos para investigar fake news e atos atentatórios à democracia e ao Estado democrático de Direito no âmbito do STF.

Para além de aspectos da processualística processual penal que nos levam, nos termos a seguir demonstrados, a questionar determinadas decisões do Tribunal, ele claudica em estabelecer os limites dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e de manifestação do pensamento.

O enquadramento da prisão do deputado federal Daniel Silveira como em flagrante delito foi equivocado. Ainda que a conduta devesse ser investigada, não cabe falar, na veiculação de vídeo em redes sociais, de infração permanente. Também é preciso questionar o enquadramento na Lei de Segurança Nacional, entulho autoritário apetrechado de conceitos jurídicos indeterminados, cujo uso indiscriminado ensejou a necessidade de revisão legislativa.

A prisão preventiva do ex-deputado federal Roberto Jefferson foi, no plano processual penal, carente de fundamentação adequada, ainda que, no mérito, se justificasse. Contundentes manifestações em redes sociais e entrevistas romperam a fronteira da liberdade individual ao pregar, de forma sistemática e reiterada, a violência e o ódio, em detrimento de instituições públicas e do processo eleitoral brasileiro.

Por fim, a busca e a apreensão em face do cantor Sérgio Reis, solicitada pela Polícia Federal, foi adequada. A inexistência de clareza na conduta faz pairar dúvidas se tratar de mera opinião, inclusive ao estilo de mera retórico ou efetiva articulação convocatória de ato violento.

Entre acertos e desacertos, a principal questão que se coloca é que o STF deveria ter exercido sua função pacificadora por meio de uma fundamentação decisória mais precisa. Urge definir os limites da legítima convivência entre distintas visões razoáveis e concorrentes de mundo, no âmbito das quais pode-se, inclusive, admitir consensos sobrepostos, de acordo com a expressão cunhada por John Rawls.

Entretanto, entre o lícito e o ilícito remanesce uma zona cinzenta que, tendo em vista os desafios contemporâneos da democracia brasileira, impõe ao STF um produto discursivo à altura.

A exigência não decorre do mero dever de fundamentação das decisões judiciais, mas de uma relevante contribuição para o debate e a estabilização sociais. É de incumbência dos tribunais constitucionais zelar pela função integrativa da Constituição, consoante expressão de Peter Häberle, e que, à luz da problemática ora posta, requer maior performance e clareza argumentativas.

A manifestação do pensamento e a liberdade de expressão são direitos fundamentais indissociavelmente ligados à cidadania, bem como à participação na vida da pólis. Esses direitos costumam ser denominados de primeira geração, os quais compreendem os direitos civis e políticos das chamadas liberdades clássicas, negativas ou formais. Entretanto, conceitos e classificações da clássica dogmática jurídica são incapazes de atender aos reclames e aos desafios atualmente enfrentados.

Uma democracia ampla e plural deve, como regra geral, conviver com discursos extremistas, sob pena de transformar-se em “ditadura de centro”. Entretanto, é preciso estabelecer um crivo entre o que é permitido e o que não é.

Cass R. Sunstein asseverou que a proteção de dissidentes não apenas os protege individualmente, mas também tutela as inúmeras pessoas que se beneficiam da coragem ou da temeridade daqueles que discordam. Por essas razões, a sociedade beneficia-se da divulgação e do dissenso.

Além disso, as decisões do Estado, incluídas aquelas proferidas pelo STF, podem e devem ser criticadas. Até mesmo a crítica ácida e desarrazoada é legítima. Não se deve proteger apenas opiniões sensatas e veiculadas de forma educada. Deve ser protegida constitucionalmente a opinião veiculada de forma ácida e mais intensa ou mesmo extremista ou desequilibrada.

Entretanto, não se pode confundir o discurso de opinião, mesmo que extremista, com aquele ato que convoca ou incita ações violentas concretas. É ultrapassada a fronteira o momento em que a violência deixa de ser mera abstração, transformando-se em conduta específica. A proteção constitucional não incide quando, rompendo-se com a situação de opinião, chega-se ao estágio de convocação, bem como de incitação a ações violentas.

​Discursos de ódio convocadores de ações violentas devem ser rechaçados. Eles podem se constituir em convocações à ação violenta quando, mesmo aparentando ser de mera opinião, concitam à ação violenta por meio do patamar de ódio que a mensagem transmite.

De acordo com a doutrina norte-americana das "fighting words", não está abrigada pela proteção constitucional a beligerância constituidora de estopim de ação, acarretando claro e iminente perigo que foge ao âmbito da refutação ou persuasão no plano meramente discursivo.

Vivenciamos, atualmente, uma situação paradoxal. De um lado, o STF tem sido, inegavelmente, o poder da República garantidor da democracia. Ainda que no interior da Corte existiam divisões decorrentes da exacerbação do poder punitivo do Estado, hoje ela é a instituição do Estado que mais atua em favor da democracia.

Entretanto, o bastião de defesa da democracia está claudicando na fundamentação das suas decisões ao deixar de oferecer uma fronteira nítida entre o que é a opinião lícita, tolerada pela democracia, daquilo que se mascara de opinião para se convocar a violência, bem como daquela conduta que, travestida do exercício de liberdade, é um ato convocatório para a violência e, portanto, preparatório dela.

O que diferencia a opinião do crime é o elemento da violência, em especial com o uso da arma de fogo ou a ameaça da sua utilização. Quando um grupo de pessoas se reúne para combinar a prática de um determinado crime, ele não pode usar o direito de reunião para justificar a prática de condutas juridicamente reprováveis. O direito de reunião não protege o crime. O direito de opinião e de livre expressão também não.

A democracia exige critérios claros de convivência. É preciso que o momento de crise leve, por parte do STF, a produtos discursivos mais adequados às exigências e desafios atuais. A postura técnico-jurídica na definição dos limites dessas fronteiras não só fortaleceria a democracia brasileira, as garantias, os direitos e a Constituição, mas também evitaria a transformação de ministros em justiceiros e traria as medidas de defesa da democracia para um plano mais institucional e impessoal.

O ambiente de justificação e explicação da razão pública que se extrai da Constituição destina-se não só sancionar ou dissuadir condutas específicas e particularmente intoleráveis, mas também de colocar-se como poderosa ferramenta de conservação e alargamento do consenso constitucional. É o que se espera do STF.

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