Entenda como intimidações e ataques entre Poderes podem minar a democracia do país

Ataques reiterados que buscam deslegitimar as instituições acabam por corroer o próprio sistema democrático

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O presidente Jair Bolsonaro anda a cavalo durante manifestação em apoio ao governo em Brasília

O presidente Jair Bolsonaro anda a cavalo durante manifestação em apoio ao governo em Brasília Pedro Ladeira - 31.mai.2020/Folhapress

São Paulo e Mogi das Cruzes (SP)

Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, houve diferentes episódios de tensão entre Poderes, principalmente entre o Executivo e o Judiciário. Os ataques partiram tanto do presidente como de outros membros do governo e aliados de Bolsonaro.

O caso mais recente de intimidação ocorreu quando o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) publicou um vídeo com ataques aos ministros do STF e em defesa do AI-5 (Ato Institucional nº 5), medida que deu início ao período mais autoritário da ditadura.

Em recente entrevista à Folha, o ministro da corte Edson Fachin apontou que intimidações de fechamento de Poderes seriam um dos sintomas de um processo de corrupção da democracia no país.

Um dos episódios de tensão em 2020 ocorreu quando Bolsonaro se insurgiu contra uma possível ordem judicial do STF. "Jamais eu entregaria um telefone meu", disse o presidente à época.

Em nota, na ocasião, o ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, afirmou que eventual apreensão do celular do presidente poderia ter "consequências imprevisíveis".

A conclusão de que nosso arcabouço institucional é menos sólido do que se imaginava é majoritária entre dez representantes da política, da economia e da sociedade civil —incluindo liberais, conservadores, centristas e progressistas— ouvidos pela Folha na última semana de fevereiro.

O grupo demonstrou preocupação com o estado da nossa democracia, concordando que precisa ser defendida e reformada. Mas divergiram quanto à capacidade do país de resistir aos arroubos provocados, sobretudo, por Bolsonaro e seu entorno.

Parte afirma que as instituições têm dado mostras de robustez ao conter o presidente. Os demais, no entanto, disseram estar preocupados com a exaustão da sociedade após dois anos de tensionamento permanente. Houve quem apontou, por exemplo, que a cada vez que as instituições reagem, elas se desgastam.

O presidente já participou de manifestações que defendiam o fechamento do Congresso e do STF e que são investigadas em inquérito no Supremo. De que modo as palavras e ações contra os demais Poderes podem miná-los? Para Heloisa Fernandes Câmara, professora na UFPR e doutora em direito do Estado, quando autoridades começam a questionar a legitimidade dos demais Poderes e a fazer manifestações pelo seu fechamento ou ameaças, trata-se de uma manifestação antidemocrática, porque se coloca em xeque a própria existência da democracia e do estado de Direito, que está baseado na separação dos Poderes.

“A crítica, ela é sempre possível, mas não colocando em risco a própria existência do outro Poder. Ou não somente a existência, mas a possibilidade de [aquele Poder] decidir livremente”, completou Heloisa.

Já a cientista política Joyce Luz, que é doutoranda pela USP e professora da FESP-SP, explica que o respeito às instituições é base para a democracia, pois cada uma delas tem um papel dentro do arranjo democrático.

“É uma relação que não é só de trabalho, mas de confiança, de entender que cada Poder tem uma finalidade e que os representantes estão ali para fazer o melhor. A partir do momento em que você tem um Poder atacando o outro e não dando a devida credibilidade ao cumprimento das funções, você tem um ataque ao sistema democrático que vai tornando frouxa e cada vez menos instáveis essas relações.”

O presidente Jair Bolsonaro aponta para o STF em vídeo gravado no alto da rampa do Planalto, em Brasília, ao comentar decisão da corte de que estados e municípios têm autonomia para determinar o isolamento social em meio à pandemia do coronavírus
Em abril de 2020, o presidente Bolsonaro aponta para o STF em vídeo gravado no alto da rampa do Planalto, em Brasília, ao comentar decisão da corte de que estados e municípios têm autonomia para determinar o isolamento social em meio à pandemia do coronavírus - Reprodução

Quando uma manifestação pode ser considerada um crime de intimidação a um dos Três Poderes? No caso do deputado Daniel Silveira, que foi preso por determinação do STF, o ministro Alexandre de Moraes considerou que o deputado cometeu uma série de crimes previstos na Lei de Segurança Nacional e no Código Penal. Há quem critique a medida por recorrer a uma lei do período da ditadura.

Para o professor de direito da FGV Carlos Ari Sundfeld, responder a esta pergunta envolve analisar o contexto da manifestação e também o seu autor.

Segundo ele, para fins de aplicação da Lei de Segurança Nacional, é muito relevante, por exemplo, o fato de que quem incita contra um ministro do Supremo seja uma autoridade pública.

"Se eu incitar, como professor universitário, a relevância é muito baixa. Porque as pessoas simplesmente vão olhar e falar, ‘bom, lá vai um autoritário’. Outra coisa é que as autoridades públicas do Legislativo e do Executivo, aliadas inclusive, comecem a fazer isso sistematicamente, continuadamente."

Apesar de considerar importante as proteções à ordem democrática previstas na LSN, Sundfeld reconhece que ela traz riscos, pois tem definições muito vagas que dão margem a interpretação.

“É uma lei que não é fácil aplicar. E por que não é fácil? Porque toda lei penal é difícil de aplicar para começar. Quando envolve questões políticas, é mais difícil ainda. E os tipos, quer dizer, as figuras estão descritas na lei, são muito vagos. Então, tem risco grande de essas normas vagas serem usadas indevidamente para tentar perseguir pessoas que tenham só uma opinião contrária.”

O próprio ministro da Justiça, André Mendonça, já utilizou a LSN em diversas ocasiões para solicitar inquéritos contra jornalistas.

As instituições têm falhado diante das investidas de Bolsonaro e de seus apoiadores contra os pilares da democracia? A democracia precisa ser defendida? Para a professora da UFPR e pesquisadora Vera Karam, as instituições têm falhado na defesa da democracia.

Ela destacou dois aspectos: quando as instituições fingem que está tudo bem (ainda que não esteja) e quando, no exercício de suas funções, elas têm oportunidade de questionar ou de pedir esclarecimento e prestação de contas sobre desmandos antidemocráticos e não o fazem.

“Eu já ouvi de ministros do Supremo a seguinte frase: ‘As instituições estão funcionando normalmente’. O que é funcionar normalmente em um governo que é antidemocrático por princípio, que mina por dentro os pilares da democracia constitucional, que não tem vergonha, pudor de fazer isso? De um presidente que já cometeu duas dezenas de crimes de responsabilidade e permanece aí?”, questionou Vera.

Catarina Rochamonte, colunista da Folha, doutora em filosofia e presidente do Instituto Liberal do Nordeste, coloca em dúvida que as instituições possam dar resposta aos ataques que vêm sendo feitos à democracia, pois seus próprios integrantes cometem práticas que são controversas. Na avaliação de Rochamonte, não pode haver uma classe intocável.

“A questão é sutil, porque óbvio que a gente não pode concordar com um ataque ao Supremo no sentido da fala do Daniel Silveira, vamos dissolver e atacar. Não se trata disso, mas há muitas coisas problemáticas que precisariam ser trazidas à baila, então é necessário que haja investigação. Existe a possibilidade da CPI da Lava Toga —que está parada— justamente porque numa democracia que funcione, ninguém está acima da lei."

Já a cientista política Andréa Freitas, que é professora da Unicamp, considera que não cabe sim ou não apenas, ao responder se as instituições estão funcionando, porque isso depende de uma interpretação da finalidade de cada uma delas. Na avaliação dela, há uma reação, mas não de forma sistêmica.

"Aqui tem uma coisa muito perigosa, porque o Supremo tem uma atuação mais forte quando o Supremo está diretamente atacado, e me parece que o papel dele não é só defender o Supremo, mas a democracia. Então deveria ter uma atuação forte quando o Legislativo é atacado, por exemplo. Acho que a gente está num lugar muito complicado, que vai muito além de uma briga entre o poder A e o poder B.”

“Podemos dizer que, no mínimo, poderíamos esperar uma ação generalizada. Então, todas as pessoas que falarem contra o AI-5 serão punidas", completa.

Samuel Vida, professor de direito da UFBA, considera que a expressão “república das notas de repúdio” caracteriza bem a falta de adequação das respostas das instituições públicas e privadas às práticas reiteradas de atentado contra a ordem constitucional adotadas pelo presidente e seus seguidores.

​“Quem se deixa enfraquecer, quem se deixa sangrar, pode chegar ao estágio em que não consiga mais reagir. (...) Se isso for adiado por muito tempo, podemos chegar ao cenário em que aquela ameaça do filho do presidente de fechar o STF com um cabo e um soldado se torne factível. É preciso reação vigorosa."

Não há hoje lei que tipifique como crime especificamente a apologia da ditadura. Mas declarações em defesa do regime podem ser enquadradas como crime com base na Lei de Segurança Nacional, no artigo 287 do Código Penal e, no caso de agentes públicos como presidente e ministros, na Lei dos Crimes de Responsabilidade (lei 1.079/50).

A Lei de Segurança Nacional, em seu artigo 22, qualifica como crime "fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social", com pena de 1 a 4 anos de detenção.

Já o artigo 23 da mesma lei afirma que é crime "incitar à subversão da ordem política ou social, à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis", com pena de 1 a 4 anos de reclusão.

O Código Penal, por sua vez, criminaliza a apologia do crime. Já a Lei dos Crimes de Responsabilidade pune quem "provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis".

O que pode acontecer com Bolsonaro e aliados que participaram de manifestações antidemocráticas? Foi aberto em 2020, por solicitação da PGR (Procuradoria-Geral da República) e por determinação do ministro Alexandre de Moraes, o inquérito dos atos antidemocráticos, com objetivo de investigar a organização das manifestações que pediam fechamento da corte e do Congresso.

O presidente não está entre os investigados deste inquérito, mas a Polícia Federal já colheu, por exemplo, informações que reforçam a ligação de assessores especiais do chamado “gabinete do ódio” da Presidência com youtubers bolsonaristas suspeitos de estimular os ataques às instituições. O deputado Daniel Silveira é um dos alvos desse inquérito.

A PF apura crimes previstos na Lei de Segurança Nacional, de 1983, entre eles “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social” ou “incitar à subversão da ordem política ou social ou à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições”. As penas podem chegar a quatro anos de prisão.

Parte dos mais de 60 pedidos de impeachment que foram apresentados ao longo de 2020 contra o presidente Jair Bolsonaro apresentaram como motivo o apoio e participação do presidente nos atos. No entanto, o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, não deu andamento a nenhum deles e é improvável que isso ocorra na gestão de Arthur Lira (PP-AL) no comando da Casa.

O Judiciário está extrapolando suas competências? O que os outros Poderes podem fazer em caso de excessos? Bolsonaro já fez diversas reclamações e se insurgiu contra decisões do STF. Em um episódio, após medida da corte que atingia seus aliados, chegou a dizer publicamente “acabou, porra”.

Também vem desde o início da pandemia distorcendo uma decisão do STF para dizer que o Supremo o impediu de tomar medidas de combate ao coronavírus, quando, na verdade, o STF decidiu, com base na Constituição, que tal competência não é exclusiva do governo federal, mas também de estados e municípios.

O cientista político Leonardo Avritzer, professor da UFMG, considera que hoje no Brasil o Judiciário está hipertrofiado. Apesar dessa avaliação, ele não critica as medidas que vêm sendo tomadas pelo STF em relação à pandemia.

“A democracia não precisa de um Judiciário forte. A democracia precisa de equilíbrio de Poderes. E não é essa a situação que nós temos hoje no Brasil, pelo contrário, nós temos um Judiciário hipertrofiado que começa a fazer política pública de saúde, que determina importação de vacina", disse ele.

Mas ponderou: "Não estou nem criticando essas questões, porque, na verdade, estamos em situações limites, em todas as questões, mas evidentemente nada disso tem a ver com a missão constitucional do STF."

Já Heloisa Câmara considera que a resposta não é fácil, mas, para ela, falar em uma hipertrofia do Judiciário não descreve exatamente o fenômeno. “Vamos pensar o caso da vacinação, se tivesse um protocolo nacional, seria bem menos provável que isso fosse judicializado”, avaliou ela.

“Estamos em um momento em que se demandam respostas e que elas não foram dadas seja pelo Legislativo ou mesmo pelo Executivo."

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