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Djaimilia Pereira de Almeida escreve sobre passagem do tempo e saudade em carta fictícia

Leia o quarto texto da série da escritora portuguesa, autora de "A Visão das Plantas"

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Djaimilia Pereira de Almeida

[SOBRE O TEXTO] Esta é a quarta de uma série de cartas fictícias imaginadas por Djaimilia Pereira de Almeida. Elas serão publicadas ao longo do próximo ano aos domingos na Ilustrada Ilustríssima. São obras inspiradas pelo distanciamento provocado pela pandemia de coronavírus e o desejo de proximidade que ele despertou.

Um bilhete para dizer que chegamos ontem, Bianca. Os miúdos estão bem e estamos a salvo. Senti um alívio no aeroporto depois de passarmos a segurança, e quando chegámos cá fora. Cheirava a Toronto, a vida nova. A neve não me deixou ter medo.

Os miúdos chegaram cheios de sono e o dinheiro não deu para a conta do táxi. Fiquei a dever uns trocos ao senhor, que nos tratou bem e nos levou ao hostel.

"Caribe? México?", perguntou-me? Disse-lhe que era espanhola, por medo. No hostel, a cama é pequena para três, mas arranjamo-nos.

Hoje, ao acordar, decidi que te ia escrever e venho aqui para te encher de coragem, irmãzinha!

Ainda estamos a dormir no hostel. Aqui de onde te escrevo não sei o que vamos comer logo à noite. Mas temos um teto sobre a cabeça. Não nos falta tudo, minha irmã.

Pintura da artista Larissa de Souza
Pintura da artista Larissa de Souza - Divulgação

Claudio também escreveu umas linhas: "Tia diz à mamã que gosto da casa nova. Quando é que voltas, mãe? A tia não me comprou os lápis no aeroporto. Mãe, a tia diz que já calço o 27. Quase 30".

Noto que os miúdos se cansam muito, talvez por causa da viagem. Pedi à Antónia para escrever, mas estava a fazer birra e não quis. Ela está bem, também, muito chorosa, porque não trouxe a boneca. Bem te disse que era boa ideia trazer a boneca.

Insistiram comigo para os deixar brincar na rua, então fomos os três fazer bolas de neve e fizemos um boneco. O casaco que compraste ao Claudio parece que encolheu em duas semanas, ou o miúdo é que está cada vez mais alto.

Da janela do hostel, fico a ver a neve.

Dei conta agora que tinha começado a escrever-te há mais de três meses e não terminei. Não quis, talvez, desencorajar-te ou preocupar-te.

Entretanto empreguei-me, com a ajuda do dono do hostel. Estou numa cafetaria mexicana. Ainda não tenho papéis. Os miúdos estão bem. A cidade é bonita do que consegui ver. São todos altos e claros.

Andamos na rua, a pronúncia desta gente. Tento entender. Chego ao fim do dia com a cabeça a rebentar. Temos sido bem tratados, acho que por causa dos miúdos. Digo a toda a gente que são meus filhos. Também disse isso ao dono do hostel. Chama-se Mr. James. E são meus filhos, Bianca, sabes que sim.

A mudança de estação já se faz sentir. Está menos frio. Estou na cafetaria o dia inteiro. Os miúdos ficam no hostel, só vão para a escola no fim do mês. E tu, Bianca? Como vão as coisas?

Fica descansada, Bianca. Guardo os teus filhos com a minha vida, como te prometi. Protege-te, minha irmã.

No outro dia, conheci um senhor velhinho que passou muitos anos no México. Reconheceu a minha pronúncia e perguntou-me de onde eu era. Também a irmã da dona do hostel se ofereceu para dar ao Claudio e à menina lições de inglês. São pequenos nadas, eu sei. É desta que envio a carta.

E o Hermínio, sabes alguma coisa dele? Fico a pensar em ti aí e aflige-me que te possa procurar. Vai sair por estes dias, não é? Mas conta comigo, minha irmã, sabe que não estás sozinha no mundo. Os meninos estão bem com a sua tia. Só por cima do meu cadáver esse
homem te voltará a tocar.

Com todo o meu amor,

Natalia

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