Exposição mostra como canções moldaram língua portuguesa

"Essa Nossa Canção", em cartaz em São Paulo, discute relações entre canto e fala

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Mostra no Museu da Língua Portuguesa reflete sobre o impacto do cancioneiro brasileiro na dinâmica mutante da língua, reafirmando o papel essencial da palavra cantada, dos mais variados gêneros e regiões, na expressão de experiências coletivas e individuais do país.

Bom dia, comunidade. Como vai você? Olá, como vai? Eu vou indo, e você, tudo bem? Eu preciso saber da sua vida. Vou mandar um salve para a comunidade. Salve, simpatia. Meu povo pede licença. Abri a porta. Vou abrir a porta, mais uma vez pode entrar. Podes entrar sem bater. Coisa mais bonita é você. A tua presença é a coisa mais bonita em toda a natureza. Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí. Vamos chamar o vento.

Exposição 'Essa Nossa Canção' chega ao Museu da Língua Portuguesa
Exposição 'Essa Nossa Canção', no Museu da Língua Portuguesa, mostra as conexões entre a língua falada no Brasil e o fenômeno da canção popular brasileira - Divulgação

Na mostra "Essa Nossa Canção", no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, a colcha de vozes de cantores estimula a memória dos visitantes, cada verso entoado inspira a lembrança de experiências coletivas ou individuais associadas a canções populares. Nesse primeiro ambiente, um casulo fechado por cortinas, 14 caixas de som acústicas produzem o efeito de conversa entre 54 músicas.

O produtor Alê Siqueira recorreu a softwares para isolar o canto do acompanhamento instrumental e costurar um diálogo cotidiano com o fraseado de cantores famosos. "É uma peça musical composta pelo Alê a partir de um repertório do Hermano Vianna. É como se você caísse dentro da memória da canção, um objeto interno de cada pessoa, porque ressoa nos repertórios da memória afetiva", diz o músico e ensaísta José Miguel Wisnik, consultor especial da exposição.

Ao seu lado, um dos visitantes ouve de olhos cerrados, em looping, a colagem musical de 5 minutos e 56 segundos. Algumas pessoas se emocionam às lágrimas. Wisnik compara a sala imersiva à "capela útero" do poema "Fábula de um Arquiteto", de João Cabral de Melo Neto.

"O poema contém uma certa ironia a Le Corbusier que, depois de muito construir o aberto, fez Ronchamp, a ‘capela útero com confortos de matriz, outra vez feto’. Depois de ver o projeto da arquitetura da exposição, achei que essa referência se aplicava à Sala 1, que buscava uma situação algo uterina para poder abrigar o som", afirma Wisnik.

Reaberto em 2021, depois de ser destruído seis anos antes por um incêndio, o Museu da Língua Portuguesa discute agora as relações entre canto e fala, fenômeno relevante em um país de presença canônica dos cancionistas.

Os curadores Hermano Vianna e Carlos Nader enfrentaram o dilema de representar um objeto fugidio e imaterial, porém expressivo na construção das prosódias brasileiras e dos jogos malandros da fala. A cineasta Isa Grinspum Ferraz assina a curadoria especial de "Essa Nossa Canção", um passo adiante na reflexão do museu sobre a dinâmica mutante da língua.

"O mais complexo desafio do processo de criação foi o de encontrar uma maneira clara de expor realmente a relação entre canção e língua, justificando sua realização no Museu da Língua Portuguesa. A ‘palavra cantada’ deveria ser a estrela absoluta do que era necessário ‘mostrar’", conta o antropólogo Hermano Vianna. "Mas como ‘exibir’ algo tão imaterial?"

O documentarista Carlos Nader logo pensou no "minimalismo técnico e tecnológico" da bossa nova, essencializadora da essência da canção. "Em vez de cair na tentação fácil de ancorar a exposição em alegorias materiais, historicistas, ou figurações que de algum modo representassem canções, a gente sentiu que tinha que ir fundo nessa própria ideia da imaterialidade, desmaterializar ainda mais. Eu brincava sempre que a exposição tinha que ser ‘bossa nova’ e, com isso, eu não estava me referindo literalmente ao movimento musical encarnado no João Gilberto, mas ao gesto artístico essencializador", diz Nader.

A mostra se divide em três núcleos, ou talvez quatro, se incluirmos o elevador em que o visitante ouve célebres vocalizes, do "ilariê" aos "aê-aê-aês" dos trios elétricos, que insinuam movimentos de corpo no gestual da voz (outra intervenção sonora de Alê Siqueira). Em seguida, chega-se à já descrita "capela útero", o ambiente imersivo de "Palavras Cantadas".

Mais à frente, na segunda sala, dez canções brasileiras são relidas por intérpretes contemporâneos, com inflexões diversas entre si, em vídeos dirigidos por Daniel Augusto. A récita envolve Carlinhos Brown, Tom Zé, Xênia França, Teresa Cristina, Juçara Marçal, Wisnik, Luiz Tatit, Johnny Hooker, o sertanejo Felipe Araújo e seu pai, João Reis. Dez slammers reconstroem a "Construção", de Chico Buarque, e dez fãs dos Racionais MC’s cantam "Diário de um Detento".

"Língua", de Caetano Veloso, gravada em termos de eternidade pelo compositor com Elza Soares, consegue renovar-se nas intervenções da atriz indígena Zahy Tentehar. A língua de sua etnia roça com a de Luís de Camões nas "confusões de prosódias". Ouvi-la entoar a frase pessoana "minha pátria é minha língua", citada por Caetano, complexifica a diversidade linguística da Lusamérica.

No terceiro núcleo, partido em dois espaços, a mostra envereda pelas apropriações de obras populares. Os visitantes podem assistir ao documentário "As Canções" (2011), de Eduardo Coutinho, e a outro dirigido por Quito Ribeiro e Sérgio Mekler, que articulam, sem hierarquias de gosto, músicas brasileiras cantadas por anônimos, no YouTube. É impossível não perceber o vínculo espiritual das canções com a decoração das casas, as roupas e os novos elementos tecnológicos.

"A ideia era ter diversidade radical de gêneros musicais, regiões do país e pessoas cantando. A ideia também era sugerir atenção redobrada para imagens e sons que geralmente vemos/escutamos de forma ‘descartável’, em telas precárias e sons de celular. Era para virar filme mesmo. Como diz o texto da exposição: uma nova Aquarela do Brasil. Do Brasil digitalizado", afirma Hermano Vianna, autor de estudos sobre o samba e o funk carioca.

"Há tempos o algoritmo do YouTube tem sido camarada comigo. Isso não acontece na Amazon e arredores. Só no YouTube: o ‘veja também’ sempre fisga minha atenção e proporciona excelentes surpresas, de coisas com muito poucas visualizações", acrescenta Vianna.

"Foi assim que descobri a maravilha que é ‘Nunca’ cantada por Elizete Souza acompanhada pelo violão e assobio de seu primo Elízio de Búzios. A interpretação é deslumbrante. Mandei imediatamente o link para todo mundo que participava de nossas reuniões de criação e foi encantamento geral."

Sem que isso seja evidenciado pela curadoria, a música inspiradora do nome da mostra remete a um caso clássico de apropriação. No registro de "Baby" por Gal Costa, no álbum "Tropicália", de 1968, o arranjo do maestro Rogério Duprat cita "Nossa Canção", de Luiz Ayrão, na altura do verso "aquela canção do Roberto". De tão marcante a leitura do rei Roberto Carlos, as palavras de outro compositor ficaram como suas.

De modo indireto, a mostra organiza uma resposta às ponderações de Chico Buarque, em 2004, em entrevista à Folha, sobre um provável esgotamento formal da canção tal como se desenvolveu no século 20. Assim, no repertório assimilado pelos curadores, o rap representa um horizonte renovador. No café do museu, passada a visita, Wisnik reconhece a força de slam contida na buarquiana "Construção".

"Há canções em que a letra se sustenta independente da melodia com a qual ela vem associada. Porque ela é poesia, poderia estar impressa num livro. Além disso, ela ganha a oralidade das novas formas de uma garotada que pegou o gosto de dizer textos fortes de poesia assim na cara", ele diz.

Wisnik dialoga com o pensamento do letrista e ensaísta Luiz Tatit, autor de livros sobre o canto e fala no Brasil, como "Semiótica da Canção", "O Cancionista" e "O Século da Canção", este último mais próximo das questões da mostra.

"A teoria do Luiz Tatit sobre a relação entre texto e música é original na bibliografia mundial. Ou seja, ela formula questões dificílimas sobre como se juntam palavra, melodia e ritmo. É inalienável na língua. Só que isso passa como sendo aquele tão óbvio que não é tratado: o fato de que a língua só pode se expressar se melodizando na entoação. E a canção, segundo Luiz Tatit, faz isso por excelência", explica Wisnik.

"Estou com Tatit. O rap é canção. Ritmo e poesia são canção. Entoação é canção. Não precisa ter melodia com harmonia. Esse elemento pode ser minimizado em função da proferição. Quando ela é ritmada, não é um discurso. Se os Racionais dissessem tudo isso como um discurso militante, não teria força. Você tem a força que tem porque é canção. Então, a canção aqui está no sentido amplo. Tudo isso é canção enquanto palavra entoada, cantarolada, cantada. O encontro de palavra com música, pela entoação, é ‘essa nossa canção’. Isso tem uma força muito poderosa no Brasil."

Em "O Século da Canção", Luiz Tatit reconhece que "a composição popular pode ser definida como um processo de depuração e fixação estética da fala cotidiana". O percurso inverso, "da canção para a fala", pode ser "um mergulho na instabilidade". Tatit expõe a dificuldade de execução técnica de canções "na tangente da linguagem coloquial".

"O Vento", de Dorival Caymmi, a "canção-guia" da mostra, evidencia as tensões da fala brasileira, com o acréscimo do assobio libertador. No museu, as canções revistas englobam acentos rurais e ultraurbanos, como "Tristeza do Jeca", de Angelino de Oliveira, "Conceição", de Jair Amorim e Dunga, "Garota de Ipanema", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola.

"Essa nossa opção pela canção nua, desvestida de acompanhamento sonoro e de pirotecnias imagéticas, alegóricas, quer deixar bem evidente que ninguém precisa defender uma tese de doutorado sobre o rap ou o repente para entender que não existe como traçar uma fronteira definida entre falar e cantar", diz Carlos Nader. "Fala é canto. Canto é fala. Cantofalamos o tempo todo."

Essa Nossa Canção 

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