Em carta fictícia, Djaimilia Pereira de Almeida escreve sobre o distanciamento e o desejo de proximidade

Leia o primeiro texto da série da escritora portuguesa autora de "A Visão das Plantas"

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Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora portuguesa nascida em Angola. Autora, entre outros livros, de ‘A Visão das Plantas’ e ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, vencedor do Prêmio Oceanos 2019

[SOBRE O TEXTO] Esta é a primeira de uma série de cartas fictícias imaginadas por Djaimilia Pereira de Almeida. Elas serão publicadas ao longo do próximo ano aos domingos na Ilustrada Ilustríssima. São obras inspiradas pelo distanciamento provocado pela pandemia de coronavírus e o desejo de proximidade que ele despertou.

Sou pai, mãe e amiga

Mariam,

Tenho saudades da nossa amizade. Tantas memórias, amiga. A Debra contou que estás na limpeza de escritório. Meninas que éramos naquele tempo.

Lembro ainda de irmos brincar com os camaleões e de tu a penteares o meu cabelo e o da Imelda.

Ilustração de Rosana Paulino, artista visual e doutora pela Universidade de São Paulo, para texto de Djaimilia Pereira de Almeida
Ilustração - Rosana Paulino

Então, casei, marido batia, deixei marido. Agora sou mulher independente. Faço minha governação a vender bonecas na rua. Eu mesma coso as bonecas. Tenho ainda máquina de costura da saudosa tia Elsa. Tem boneca com tranças, boneca de vestido, boneca com cabelo curto, boneca senhora. Alimento meus filhos e ainda minhas sobrinhas. Coso vestidos para as meninas aqui de casa. Minha filha mais velha já me deu neto, prima. Tua amiga está avozinha. Dá para acreditar?

Como é Portugal, amiga? Tem muita amiga que conta da vida da limpeza. Duro, né? Levantar cedo, apanhar autocarro à chuva, dinheiro não chega ao fim do mês, mais isso de ficar a limpar sujeira dos outros. Me vêm memórias das nossas brincadeirinhas de criança. Bem pequeninas mas muito marotas, lembra amiga? Daquele quintal de meu avô não dava para sonhar com a dureza da vida.

Todo o dia para me alegrar saio de casa sem vergonha com as minhas trouxas de panos. Penteio bem o meu cabelo. Amarro bem o meu pano. Vou lá longe até fim da rua e armo minha banca. Ponho bonecas, tem também carteiras de senhora, coletes e lenços para o cabelo. Muitas vezes ninguém compra. Mas estou ali com orgulho a rezar a Deus para me dar sustento para governar nossa casa. E, mesmo nos dias em que não vendi nada, me sinto cheia, inteira, a arrumar a banca e a pôr a trouxa nas costas. Mulher que já apanhou de homem, que já foi desprezada, tem de sentir orgulho, amiga.

Volto a casa de cabeça erguida. Quem me vê passar pensa isso é mulher forte, mulher capaz. Dali vou a pé até casa. Caminho longo. Miúdas cozinharam, me sento, oramos. Comemos juntos. Ponho criançada para dormir. Sou pai e mãe, amiga.

Já me falaram de viajar até Lisboa. Mas ir aí fazer o quê, prima?

Passar fome e frio nessa terra que não é minha? Eu sei de onde sou. Sei qual é o meu lugar. Sou pai e mãe desses miúdos. Mulher com muito orgulho, tua amiga já não é aquela magricela que subia nas árvores lá no quintal de meu falecido avô.

A Zinha disse que vai te entregar a minha carta. Ela me contou que tens passado um mau bocado. Sei como é isso de documentos e tribunal, meu irmão sofreu o mesmo na Holanda. A gente ouve tanta história, dá muita pena. Só não deixa que te tirem teus filhos, por isso estou a escrever.

Se precisares de um teto, estou aqui, amiga, pensa nisso. Sempre há lugar para mais um. Posso te ensinar a costura ou, se calhar, tu tratas das contas e fazemos empresa de costura e arranjos. Passamos a ser duas empresárias, que nem naquele tempo quando brincávamos de mulheres mais velhas. Só me custa imaginar que a minha amiga está nesse caminho de dor e humilhação. Ninguém roubou tua terra nem a minha amizade. Nossa união vem de trás. Pensa nisso, Mariam. Pensa com calma. Vida rouba nosso dinheiro, nossos documentos, mas ninguém roubou tua dignidade. Estamos juntas,

Irene


Ilustração de Rosana Paulino, artista visual e doutora pela Universidade de São Paulo.

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