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Alexis Vargas

Dispersar cracolândia é crucial para tratamento de usuários de drogas

Em resposta a texto de Fábio Assunção, secretário defende ação da Prefeitura de São Paulo

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Alexis Vargas

Advogado e doutor em direito constitucional, é secretário-executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura de São Paulo

[RESUMO] Em resposta a texto de Fabio Assunção sobre políticas públicas na cracolândia, autor afirma que a grande concentração de usuários e traficantes em pontos específicos da cidade dificulta a execução de ações do Estado e deixa dependentes sob o jugo do crime organizado. Dispersões recentes promovidas pela prefeitura, afirma, contribuíram para tratamento humanitário.

O artigo do ator, produtor e diretor Fabio Assunção publicado pela Ilustríssima emociona pela trajetória de superação narrada. Por ser figura pública e carismática, seu drama pessoal com as drogas é conhecido e a sua comemoração de dois anos de liberdade ganha ares coletivos, fazendo-nos celebrar junto com ele.

A par dos seus já conhecidos posicionamentos político-partidários, expressos de forma bastante clara no referido texto, seu artigo traz informações e opiniões que abrem espaço para um debate importantíssimo para nossa cidade: é melhor mantermos a cracolândia concentrada em um espaço ou devemos buscar a sua dispersão?

Imagem aérea da praça Princesa Isabel, onde usuários de drogas se concentraram depois de ação da prefeitura de São Paulo no local do antigo fluxo da cracolândia.
Imagem aérea da praça Princesa Isabel, onde usuários de drogas se concentraram depois de ação da prefeitura de São Paulo no local do antigo fluxo da cracolândia. - Danilo Verpa/Folhapress

Deixar as pessoas em situação de uso abusivo de drogas circunscritas a um território específico da cidade, de acordo com o ator, facilita a ação dos profissionais de saúde, a observação do fluxo e a atuação de ONGs.

Considerando a ampla disponibilidade de drogas e o número de usuários, pode parecer melhor que isso ocorra em uma região degradada e de baixa circulação de munícipes. A concentração dos usuários faz crer que o problema seja limitado a uma área específica, que não interage com as demais partes da metrópole.

De outra banda, vale dizer, a concentração de pessoas tem uma dinâmica própria, que já foi objeto de estudo de grandes pensadores, começando com Gustave Le Bon e sua "Psicologia das Multidões", em 1895. A massa tem um contágio emocional, que reduz a responsabilidade individual e cria uma sinergia tamanha que parece o surgimento de um novo ente: a multidão, que assume identidade própria, conduzida por seu líder.

Segundo Freud, quando a pessoa se torna membro de uma multidão, seu núcleo moral da consciência é enfraquecido. No caso dos adictos, esse fenômeno assume maior relevância. Primeiramente, porque o uso da droga também é um rebaixador de consciência, ampliando ainda mais os efeitos do poder da multidão e dos seus líderes.

E, ainda mais relevante, porque o uso abusivo de drogas leva à dependência química e, consequentemente, também a uma dependência financeira e social em relação a esse grupo de convívio, consumo coletivo e comércio.

Pesquisa da Unifesp realizada na cracolândia descreve o conceito "segurança entre pares" como o segundo maior motivo para a frequência naquele local. Isso em razão de o consumo de drogas não ser permitido e, portanto, aceito pela sociedade em geral, de modo que as pessoas não o fazem com plena liberdade, em qualquer ambiente, seja em virtude da repulsa e estigmatização social, seja pelo temor à lei. Assim, encontrar um lugar, a céu aberto, no qual o consumo é livre e praticado juntamente com seus pares apresenta um magnetismo muito forte.

O líder dessa multidão renegada e segregada é o crime organizado. É ele quem fornece a graça, organiza o espaço e blinda o grupo do mundo externo e seus eventuais inimigos. Comanda não apenas o fornecimento e o consumo das drogas, mas também toda a sorte de crimes associados no território –roubos, furtos, estupros, homicídios, prostituição infantil, latrocínios e até esquartejamentos.

Ao contrário da opinião do ator, a dispersão contribui muito no tratamento humanitário prestado pela Prefeitura de São Paulo a essas pessoas que estão, hoje, submetidas ao vício e ao jugo do crime organizado. Os números falam por si.

De janeiro a março (quando ocorreu uma primeira onda de dispersão, com a desocupação da conhecida "praça do Cachimbo"), o atendimento no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) localizado na Luz, especializado em uso abusivo de álcool e drogas, aumentou 20%. As abordagens das equipes de assistência social cresceram 50% nesse mesmo curto período.

O mais relevante: o encaminhamento de usuários para atendimento no Siat 2 (Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica) aumentou sete vezes. Conforme dados da equipe de Consultório na Rua, da Secretaria Municipal da Saúde, em janeiro, 27 pessoas foram encaminhadas ao serviço e, em março, foi registrado um salto de atendimento para 202 usuários abusivos de álcool e outras drogas.

A experiência de São Paulo e de várias outras cidades do mundo, como Frankfurt, Viena, Lisboa, Nova York e Bogotá, demonstram que a grande concentração de usuários e traficantes dificulta a execução de todas as políticas públicas necessárias para responder à questão —saúde, assistência social, segurança, zeladoria e planejamento urbano.

Por isso, todas essas cidades usaram técnicas de dispersão: o primeiro passo para dar efetividade ao tratamento dos usuários é reduzir o tráfico e dispersar a concentração.

A defesa da concentração dos usuários, ao contrário do que possa soar, é um discurso que revela a vontade latente de perpetuação da miséria e exploração de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade e fortemente acometidas por questões de saúde mental.

Queremos ou não conviver com a cracolândia?

Essa multidão atua como um vórtex que atrai pessoas de toda a cidade, que vão para lá seduzidas pela ilusão do consumo livre e seguro. Por isso, são tão frequentes cenas de pais, mães, irmãos e filhos à beira do fluxo em busca de seus familiares. Essas histórias aparecem documentadas no filme "Cracolândia", do cineasta Edu Felistoque, lançado neste ano.

A cracolândia não é um problema circunscrito a uma área abandonada da cidade. É uma escara aberta que atinge não somente os usuários, mas consome energias, recursos e vidas de todos os paulistanos.

Esse problema antigo deve ser encarado com toda a sua complexidade. Só uma política pública integrada, coordenada, coerente e persistente pode assegurar que, nos próximos anos, celebremos não apenas superações individuais, como a de Fabio, mas a consolidação de um modelo de cuidado em saúde, proteção social e segurança urbana para todos os paulistanos.

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