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Fabio Assunção

Política brutal na cracolândia pune usuário e perpetua dependência, diz Fabio Assunção

Questão das drogas requer ação permanente de Estado, não de governos temporários

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Fabio Assunção

Ator, é também produtor e diretor teatral

[RESUMO] O ator Fabio Assunção, há dois anos abstêmio, critica as políticas públicas de São Paulo em relação às drogas e repudia a situação de abandono dos usuários na cracolândia.

Uma gestão míope não enxerga o todo e pune o usuário de drogas sem propor à sociedade um debate adequado. Respeito e garantia de direitos humanos não podem ser vistos como incentivo ao uso abusivo de drogas e álcool.

Crueldade e opressão são frutos de uma gestão desfocada e nada edificam. A desumanidade na cracolândia interessa a que setor? A quem os gestores servem, afinal? A questão das drogas, e tudo o que ela envolve, requer uma política permanente de Estado, não de governos temporários.

João Doria, publicitário, ingressou na vida pública como secretário de Turismo na gestão do então prefeito Mário Covas, nos anos 1980. Depois de presidir a Embratur no governo Sarney, só retornou aos cargos públicos três décadas depois, como prefeito eleito de São Paulo. Entre outros programas, criou em 2017 o Redenção, programa municipal em relação às drogas, regulamentado somente em 2019..

Nesses dois anos foi desnutrindo até enterrar o DBA (De Braços Abertos), da gestão Fernando Haddad, programa de garantia de direitos reconhecido, premiado e adotado internacionalmente.

Arthur (Fábio Assunção)  em 'Totalmente Demais'
Fábio Assunção em filmagens de "Totalmente Demais" - Renato Rocha Miranda/Globo

A marca de Doria foi a higienização da cidade, cobrindo grafites de alguns artistas emblemáticos, varrendo os "drogados" da cracolândia, no centro de São Paulo. Em uma das desastradas ações desse "projeto de limpeza da cidade", uma escavadeira da prefeitura deu início à demolição de uma pensão com moradores ainda dentro do imóvel.

Doria abandonou a prefeitura, com pouco mais de um ano de mandato, para se candidatar a governador de São Paulo, assim como agora abandona esse cargo público, com responsabilidades assumidas, para ser candidato à Presidência do Brasil. Redenção é ainda o programa em curso.

Na prefeitura tivemos, então, Bruno Covas, sucedido por Ricardo Nunes, que se posicionou contrário ao debate sobre sexualidade e gênero na educação. Sem um debate esclarecido e aberto, esse tema gera violência, intolerância, constrangimento, humilhações e mortes.

Compondo esse quadro, Alexis Vargas, doutor e mestre em direito constitucional e gestor público, ocupa a Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos da cidade de São Paulo, fazendo a interlocução entre a orientação do governo do Estado e as ações do município no campo da política de drogas.

Aqui, devo destacar, há uma incongruência entre as falas do secretário, em entrevista ao Jornal Gente, da rádio Bandeirantes, edição de 30 de março, com as imagens que podem ser vistas na internet. O secretário afirma que o programa vigente tem como primeiro de quatro grandes eixos "ampliar o tratamento e oferecer assistência para os usuários".

Nas imagens, contudo, vemos grandes grupos de pessoas que usam drogas sentadas no chão, durante a noite, cercadas pela polícia, sob a mira de armas, bombas, com tiros sendo disparados, observadas por drones e helicópteros. Indivíduos sentados são retirados do grupo e detidos brutalmente. As cenas são opressoras e desumanas, pessoas sendo tratadas sem nenhum tipo de cuidado.

A política vigente tem como fundamento oferecer aos contribuintes a liberdade de ocupar os espaços públicos em segurança, longe dessas pessoas "sujas" e "perigosas", com as quais os gestores não sabem o que fazer. O foco é dispersá-las com a ajuda da polícia, iluminação excessiva e câmeras de vigilância.

Os dependentes dispersaram-se para a praça Princesa Isabel e a rua do Triunfo, formando novo aglomerado. São 30 anos, salvo poucas gestões, em que presenciamos esse efeito balão: aperta-se de um lado e o ar corre para o outro. Como resolver "essa gente"?

Com mandatos de quatro anos e precisando divulgar resultados rápidos, há uma constante tentativa de empurrar a sujeira para debaixo do tapete e bradar: "Pronto. Conseguimos! Esse povo não existe mais. Vamos às próximas eleições!".

Em pesquisa feita pelo Datafolha, publicada em 13 de abril, 48% dos paulistanos não acreditam que a operação na cracolândia levará o usuário a buscar tratamento; 82% concordam que a operação fará com que o usuário busque o crack em outras regiões da cidade; 77% acreditam que o uso de drogas é um problema de saúde pública; e 58% discordam da frase "pessoas boas não se envolvem com drogas como o crack".

No universo de cada usuário de drogas existe toda uma história de vida. Esse estado de abandono decorre de inúmeros contextos possíveis. Cada um teve uma vivência que, diferente talvez da sua, leitor, gerou difíceis questões de saúde emocional e mental. Ser varrido sem que a estrutura social seja transformada é um desperdício inadequado.

Os valores coletivos precisam ser descobertos, antes de qualquer ação inócua, com observação atenta, empatia, cabeça aberta ao debate franco e muito conhecimento. O gestor precisa abrir espaço aos médicos humanitários.

No cativeiro da dependência, não se consegue, em uma mágica, distanciamento do consumo. Portanto, não há espaço para o reequilíbrio químico minimamente necessário para se fazer com lucidez outras escolhas. Nas ruas ainda há o risco de contágio de vetores endêmicos, um problema enorme para a saúde do indivíduo, já fragilizada.

Dissipar os usuários é dificultar a ação multidisciplinar de profissionais de saúde, a observação do fluxo, a atuação de ONGs e assistentes sociais, a aproximação de familiares. Dissipar é apenas atender uma população que quer segurança, mas que continuará não a encontrando em qualquer outro ponto da cidade.

Querem tirar da frente os que adoeceram nessa sociedade que só valoriza o capital e desconsideram implementar um sistema novo na educação para a formação dos seres. A independência só pode ser alcançada com a liberdade de pensamento e escolha.

Há dois anos exatos, escolhi minha liberdade. Coloquei um ponto final no meu processo de uso de substâncias, álcool inclusive. Celebro hoje, discreto, neste artigo, pois há muito chão pela frente e sei que não há vitória sem um dia a dia de forte conexão comigo mesmo.

E não julgo a sua escolha em consumir o que quer. Escolhi minha paz, excluí tumultos. Deixei de carregar dores que não eram minhas. Fortaleço a cada dia minha decisão e colho os frutos dela.

Escrevo aos que ainda vislumbram algum sentido em seguir em frente. Aos que, incansáveis, não desistem de si. Aos que anseiam romper essas correntes arrastadas que, de pesadas, parecem longas, mas não são.

Solidarizo-me com pais, filhos, maridos e esposas, pois sei que o processo é doloroso quando amamos pessoas que sofrem. Que minhas palavras te levem a transformar algo aí dentro. Sei que tenho meus privilégios e tive ajuda de pessoas que talvez você pense não ter. Mas afirmo aqui com propriedade que, apesar do jugo externo, nossa vontade é a mão firme que determina o início de uma nova forma de existência.

É um basta que tem que sair dos seus pulmões, mesmo que não haja agora ninguém para te escutar. Você é a fonte —e a partir dela terá tudo que de fato é seu, legitimamente. Não sinta culpa.

O ser humano é dotado de dúvidas, incertezas, fragilidades e são essas as coisas que nos fazem andar. Somos também potência. Ninguém te define. Apresente-se.

Aos gestores, saibam que seus mandatos passam e de nada serve passar um pano rapidamente. Implementem programas que priorizem o ser humano, políticas públicas focadas nas pessoas, na diminuição da desigualdade social e na real reinserção psicossocial.

Sejam mais generosos e empáticos com os cidadãos. Não contribuam para a manutenção dos estigmas. Cheguem junto e aprendam a lidar com gente. Os contribuintes irão pagar cada vez mais impostos e continuarão vivendo em uma estrutura que produz doenças de todas as ordens. Não vamos nos iludir.

A mudança está no espírito de fraternidade coletiva. É urgente resgatar a dignidade e a autoestima do Brasil. As cidades estão tomadas pelo ódio, pelo medo, pela exclusão, pela falta. Não prometam tantas coisas, façam o mais simples. Reservem pelo menos um espaço para propagar algo humano. Sim, por aqueles lá, da rua.

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