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Livro é criticado por apontar erros sobre história da humanidade

'O Despertar de Tudo', do antropólogo David Graeber e do arqueólogo David Wengrow, atraiu legião de fãs e de críticos

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Imagem de nebulosa planetária captada pelo telescópio espacial James Webb, da Nasa Nasa, ESA, CSA, STScI, Webb ERO Production Team via Reuters

Fernanda Mena

Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha

[RESUMO] Clássico instantâneo, "O Despertar de Tudo" capturou o imaginário público ao refutar teorias consagradas e propor um novo olhar sobre a trajetória da humanidade, o que acarretou, com igual intensidade, uma leva de reações críticas. Pesquisadores de variadas disciplinas dizem que os autores do livro desprezaram evidências para elaborar argumentos orientados por suas convicções políticas.

"Em algum ponto, é preciso tirar os brinquedos das crianças", escreveram o antropólogo David Graeber (1961-2020) e o arqueólogo David Wengrow em seu clássico instantâneo, "O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade" (Companhia das Letras), livro que faz jus ao título ao propor um novo olhar sobre a trajetória humana tal qual nos foi apresentada.

A frase encerra uma nota de rodapé em que os autores ironizam interpretações consagradas sobre a pré-história, o advento do Estado e a ideia de civilização, popularizadas em best-sellers de Yuval Noah Harari, Francis Fukuyama, Jared Diamond e Steven Pinker, todos citados pela dupla.

Dois homens com camisa e calça de pé
O arqueólogo britânico David Wengrow (esq.) e o antropólogo americano David Graeber, autores de 'O Despertar de Tudo' - Kalpesh Lathigra/Divulgação

A nota de rodapé começa assim: "Se um traço de impaciência pode ser detectado em nossa apresentação, a razão é a seguinte: muitos autores contemporâneos parecem ter prazer em se imaginar como equivalentes modernos dos grandes filósofos sociais do Iluminismo, homens como Hobbes e Rousseau, externalizando o mesmo grande diálogo, mas com um elenco mais acurado de personagens".

Graeber e Wengrow argumentam que, hoje, há evidências científicas suficientes apontando que os humanos caçadores-coletores não eram primitivos como pensávamos nem suas ações eram pautadas por instintos brutais e egoístas, como imaginou Thomas Hobbes em "O Leviatã" (1651), nem por igualdade e inocência, como idealizou Jean Jacques Rousseau em "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens" (1754). Essas noções, defendem os autores, não passam de mitos.

Pinker se encarregou de passar um recibo, pelo Twitter, do incômodo gerado pelo novo livro e pela desconstrução das premissas usadas por ele e outros autores contemporâneos de sucesso. Escreveu: "David Wengrow e o problema de reescrever a história humana. Ele e o falecido coautor Graeber, com motivação política, usam de forma simplista eu, Harari e Diamond como contrastes, embora nossos livros simplesmente relatem o óbvio".

O óbvio, no caso, são textos canônicos do pensamento político ocidental demolidos por "O Despertar de Tudo", que assim abriu uma nova trincheira no campo de batalhas das ideias sobre a evolução da humanidade —e parece ter pego sua audiência de surpresa.

"Uma refutação completa e elegante das teorias evolucionárias da história", escreveu o historiador Robin Kelley, professor da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), para quem os autores "não apenas desmascaram os mitos, mas fornecem uma emocionante história intelectual de como eles surgiram, por que eles persistem e o que tudo isso significa para o futuro justo que esperamos criar".

O linguista Noam Chomsky declarou que o trabalho reposiciona "a natureza das capacidades humanas" e suas "dívidas com as culturas e intelectuais esquecidos das sociedades indígenas".

O historiador holandês Rutger Bregman, que avaliou a obra como fascinante e inovadora, lacrou: "Um livro que vai gerar debate nos próximos anos".

Acertou em cheio. Com o peso de suas 700 páginas, "O Despertar de Tudo" capturou o imaginário público, incendiou o debate, polarizou posições e, rapidamente, transformou-se também em alvo.

Pesquisadores e acadêmicos da filosofia, da arqueologia, da biologia, da história e da antropologia, entre outros, se dedicaram a esquadrinhar dados e informações da vasta pesquisa apresentada por Graeber e Wengrow em um debate animado.

Os autores foram acusados de escolher exemplos a dedo para sustentar uma visão utópica e ideologicamente enviesada de que as sociedades não precisam ser tão desiguais nem divididas entre governantes e governados.

David A. Bell, professor de história da Universidade de Princeton, nos EUA, escreveu que o lançamento de "O Despertar de Tudo" nos EUA, no final de 2021, foi "um chamado às armas inspirador e desafiador, e para mim, como estudioso do Iluminismo, preocupante".

Ele criticou o entendimento de Graeber e Wengrow do Iluminismo francês, a começar por informações triviais como a trajetória de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), retratado no livro como um jovem e ambicioso filósofo que teria passado a vida sendo atendido por criados.

Bell afirma que Rousseau viveu na pobreza, foi ele mesmo servo de aristocratas e já tinha 42 anos quando escreveu a obra analisada pela dupla de autores, "O Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens" (1754). "Erros desse tipo não inspiram confiança", argumenta.

A crítica do historiador, no entanto, se concentra na leitura que o antropólogo e o arqueólogo fazem da literatura produzida a partir dos relatos do século 17 de missionários e colonizadores sobre os povos indígenas das Américas.

Graeber e Wengrow atribuem os ideais de liberdade e de igualdade do pensamento iluminista do século 18 a uma reação de filósofos europeus a críticas indígenas que emergiram a partir dessa literatura e colocaram em xeque os valores e as estruturas sociais da Europa imperialista.

Para Bell, é correto afirmar que essa literatura desempenhou um papel na gênese do pensamento iluminista, mas é preciso considerar que outros fatores também tiveram seu papel, da revolução científica ao surgimento da imprensa.

"Defender que a 'crítica indígena' importava mais que tudo requer olhar para o Iluminismo em toda a sua complexidade e mensurar diferentes elementos uns contra os outros. Isso, Graeber e Wengrow não conseguem fazer", escreve.

O historiador refuta ainda a abordagem dos autores sobre um texto-chave do livro, "Diálogos Curiosos entre o Autor e um Selvagem de Bom Senso que Viajou", publicado em 1703 pelo aristocrata francês barão de Lahontan a partir das conversas reais que teve com um chefe dos huron-wendat chamado Kandiaronk. Segundo Bell, "O Despertar de Tudo" confunde ficção com realidade.

À Folha, Wengrow disse que o livro de Lahotan "não é uma transcrição literal, ele inventa coisas, certamente, mas é, sem dúvida, um produto desse encontro colonial que se torna muito influente nos círculos intelectuais europeus".

Ele afirmou ainda que Lahotan foi amigo do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), que comentou em carta que Kandiaronk era uma pessoa de verdade, chefe da nação huron-wendat, e que chegou a viajar para a França, mas que valorizou sua civilização acima da europeia.

O biólogo e evolucionista americano de origem russa Peter Turchin, que criou um campo de estudos chamado cliodinâmica (que usa modelos matemáticos e dados para mapear a evolução cultural), foi outro que puxou um coro de críticas a Graeber e Wengrow.

Turchin refuta o tom que os autores destilam contra seus oponentes, que ele define como caricatural, mas faz algumas concessões a "O Despertar de Tudo". Ele diz concordar com o argumento geral da dupla de que "não houve transição acentuada na evolução social humana com a adoção da agricultura".

Por outro lado, Turchin se opõe frontalmente à tese levantada pelos autores a partir de exemplos em série de que sociedades mais complexas não necessariamente recorreram à hierarquia e ao Estado como formas de organização social.

"Na verdade, não há absolutamente nenhuma evidência de que qualquer sociedade humana em grande escala possa ser organizada de outra forma que não seja hierarquicamente. Não somos formigas!", discorda Turchin, para quem "movimentos sociais organizados com base no princípio do anarcopopulista invariavelmente fracassam".

Como exemplo, ele cita o movimento Occupy Wall Street, no qual David Graber desempenhou papel importante, entre eles o de cunhar o slogan "Nós somos os 99%". "Onde estão os 'ocupantes' hoje? O que eles conseguiram? Nada", provoca.

A crítica mais fervorosa que emergiu em torno do sucesso de "O Despertar de Tudo" vem do fato de Graeber ser um anarquista e intelectual público ligado a movimentos sociais anticapitalismo.

É o caso do professor de filosofia da Universidade de Nova York Kwame Anthony Appiah, cuja resenha do livro, publicada no New York Review of Books, acusa a dupla de autores de elaborar argumentos ideologicamente orientados e em desacordo com as evidências e os estudos citados para amparar suas interpretações.

Para ele, a dupla usa estratégias retóricas e argumentos falaciosos para convencer os leitores de sua perspectiva e explora a ausência de evidências de poder centralizado em determinadas descobertas arqueológicas como prova de que sociedades complexas existiram sem ele. "Não encontraremos nosso futuro em nosso passado", escreveu Appiah.

Wengrow escreveu uma réplica à resenha de Appiah no NYRB defendendo o trabalho que fez com Graeber. "Mitos não são apenas sobre o nosso passado. Eles trabalham no presente para circunscrever nossa compreensão das possibilidades humanas", respondeu Wengrow. "Em 'O Despertar de Tudo', mostramos que as narrativas convencionais da ampla extensão da história humana são um desses mitos, inculcando um profundo senso de pessimismo sobre as perspectivas de mudança em nossas sociedades."

O filósofo publicou uma tréplica, em que rebate Wengrow pontualmente e conclui: "O argumento de Graeber e Wengrow contra o determinismo histórico —contra a noção sedutora de que o que aconteceu tinha que ter acontecido— é imensamente valioso", avalia. "Recebemos uma proposta intrigante sobre a natureza do Estado. E isso é apenas para começar uma longa lista de fascínios. Esse 'caleidoscópio de possibilidades sociais' emerge vibrantemente dessas páginas."

O Despertar de Tudo: uma Nova História da Humanidade

  • Preço R$ 119,90 (696 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autor David Graeber e David Wengrow
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradutores Claudio Marcondes e Denise Bottmann
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