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Miriam Chnaiderman

Movimento negro propõe transnacionalismo racial e faz da diáspora um quilombo

Todos são outros de alguém, mas brancos negam a humanidade de negros, impedindo sua constituição como sujeitos

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Miriam Chnaiderman

Psicanalista, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP e doutora em artes cênicas pela USP

[RESUMO] Autora sustenta que o movimento negro, ao afirmar o conceito de raça a partir da origem comum no continente africano, constrói uma perspectiva transnacional, que desestabiliza a dicotomia global e local e responde às críticas das lutas identitárias como narcísicas, já que o transnacionalismo negro traz à tona a universalidade humana.

"Este texto é escrito desde a morada dos que não são bem-vindos, são permanentemente estranhos, presenças inconvenientes para quem olha e vive o autoengano de não se achar também o outro de alguém."

Assim começa o texto "Geografia dos afetos", de Paulo Vicente Cruz, publicado na edição de maio da revista piauí. E, assim, prossegue nas terríveis constatações do não lugar do negro, "presenças inconvenientes".

Manifestantes protestam em Barcelona contra as mortes de migrantes e refugiados africanos nas fronteiras da Espanha - Pau Barrena - 2.jul.22/AFP

Como é possível não ser o outro de alguém? O branco que olha, ou qualquer ser que olhe e ignore uma identificação básica a todo ser humano, a pulsão sobrevivente, torna-se inumano, conforme Nathalie Zaltzman pensou, no artigo "Homo sacer, o homem matável", publicado na revista de psicanálise Percurso.

A identificação com a espécie humana é o que faz com que o ser humano, nas condições mais precárias, sobreviva para contar e para testemunhar, conforme relataram vários sobreviventes dos campos de extermínio. Querer viver para poder contar. É a partir dessa identificação primordial que o outro se constitui enquanto tal. Sempre existiremos a partir de um outro.

Quando ignoramos que somos outros de outros e que há outros que nos fazem ser outros de outros, a humanidade que nos constitui se perde. O branco que tem o autoengano de não ser um outro para um negro, passa a se objetalizar ele mesmo. Assim, objetaliza seu semelhante, como acontecia nos campos de extermínio.

Segundo o texto de Paulo Vicente Cruz, é o poderoso dominante, branco, que não estabelece essa identificação primeira com o negro e não se vê como o outro de alguém.

O que me impressionou no texto de Cruz foi uma inversão em como a psicanálise vem pensando essas questões. O foco psicanalítico tem sido pensar o negro na sua relação com uma sociedade branca. O foco é o negro, não o que o branco faz do negro. Ou, explicando melhor, é, sim, o que o branco fez do negro por séculos e séculos e que repercute em sua subjetividade.

Isildinha Nogueira, em importante livro recém publicado, "A Cor do Inconsciente", vai nos mostrando como a mãe nega o corpo negro de seu filhinho, pois seu ideal é o corpo branco. A mãe negra quer ser branca e também quer seu bebê branco.

Jurandir Freire Costa, citado por Sueli Carneiro, afirma: "Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais do ego do sujeito branco e a dor de recusar e anular a presença do corpo negro".

O negro carregaria sempre um ideal do eu atravessado pela branquitude. O que o texto de Paulo Vicente Cruz faz é buscar as raízes disso que Isildinha e alguns outros psicanalistas apontaram na constituição do negro enquanto sujeito.

O negro não seria o outro de outros, e seu outro seria o que ele não é. O outro que o constituiria negaria sua existência, fazendo com que não se constitua enquanto sujeito negro. O negro, para o branco, teria sempre um déficit de humanidade.

Todos esses fenômenos atualizam, ressignificando, a história do capitalismo que constituiu o negro e o racismo. Achille Mbembe mostra, em "A Crítica da Razão Negra", como a Europa se considerava o centro do mundo civilizado e se contrapunha ao resto, cujo símbolo maior foi a África e o negro. O conceito de raça, que surgiu do capitalismo e ganhou força, passou a servir para diagnosticar as populações longínquas , sua "degradação" e um déficit ontológico —são "menos" ser.

Com o surgimento do capitalismo, o Atlântico se tornou o lugar de onde emergiu uma "nova concatenação de mundos, o lugar de onde emergiu uma nova consciência planetária".

A transnacionalização da condição negra é um momento constitutivo da modernidade.

Anete Abramowicz, no fechamento do seminário Transnacionalismo e proposta curricular para a educação das relações étnico-raciais e da diferença na educação, afirmou:

"A racialização também é parte da história dos judeus, devido ao Holocausto, que é uma marca muito profunda na história judaica. Enquanto os judeus, por terem sido racializados, lutam ou lutavam para esvaziar esse conceito de raça, ao reivindicarem essa pátria chamada Israel, o movimento negro fazia todo o contrário. O movimento negro afirmava o conceito de raça, reivindicava o Atlântico Negro como um quinto continente e negro, e propunha a Diáspora quase que como um quilombo. Onde houvesse um negro haveria uma inflexão e a afirmação de uma vida, de um jeito negro. Uma perspectiva transnacional, um mundo sem fronteiras, um mundo que se poderá percorrer livremente e o fim de uma concepção universal do homem... Não há uma proposta mais disruptiva do que a proposta pelo pensamento negro."

O transnacionalismo negro parece dar uma resposta nítida àqueles que criticam as lutas identitárias como narcísicas. O conceito de raça passa a ser entendido como origem comum no continente africano. Racializar, para o movimento negro, é falar de uma origem no continente negro.

Tudo isso vem colocar uma forma de militância absolutamente nova: Joel Birman pensa que há "uma superação de qualquer guerra identitária com vistas a tornar possível a comunicação de universais contingentes." Mouffe e Laclau, conforme a leitura de Joel Birman, vão propor a costura de discursos particulares para forjar universais que sejam contingentes. Assim acontece no movimento negro.

Sobre a política afro-brasileira transnacional, Michael Hanchard escreve: "Distinções fáceis, entre estados-nações e populações imperialistas. É preciso entender que cultura e política não coincidem necessariamente com política partidária, nacionalista (identidade) e sindicalista classista".

Para ele, há uma falsa dicotomia entre o global e o local, que indica uma limitação em como as políticas de identidade vêm sendo pensadas. A Frente Negra Brasileira não seria só uma forma de apresentação de história nacional e regional, mas também uma faceta integral de uma comunidade multinacional, multilíngue, ideológica e culturalmente plural, não limitada por uma país territorial singular.

É nessa concepção de transnacionalismo que podemos ver de que forma a identificação sobrevivente vai se tornando presente. Em cada gesto solidário, em cada luta, é a humanidade que se faz presente.

A dicotomia entre o local e o universal caduca, pois o que está em questão é a própria humanidade. Lembro muito de como Jaco Guinsburg falava do ídiche no seu magistral trabalho "As Aventuras de uma Língua Errante": quanto mais os escritores do ídiche mergulhavam no específico do judaísmo, mais universal era seu conteúdo.

Mbembe aponta como tudo aquilo que antes era exclusivo do negro no primeiro capitalismo passou a ser senão a norma, ao menos "o lote de todas as humanidades subalternas". Trata-se de uma universalização tendencial da condição negra, aliada ao surgimento de práticas imperiais inéditas, que utilizam tanto lógicas escravagistas de captura e predação quanto lógicas coloniais de ocupação e extração.

Há uma crescente privatização do mundo, com o respectivo esquadrinhamento hierárquico sob a égide do neoliberalismo. Os trabalhadores passam a "regular sua conduta em função das normas de mercado".

Mbembe afirma: "A essa nova condição fungível e solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida e à sua generalização pelo mundo inteiro, chamamos o devir negro do mundo". Com o avanço do capitalismo, o transnacionalismo passa então a ser uma questão de todos. Há um desprendimento territorial com o qual temos muito a aprender.

O reconhecimento de que sempre somos outros de outros passa a ser da ordem de uma política em que a alteridade seja possível e instaure caminhos na contramão de uma homogeneização hipnótica que vem entorpecendo o pensamento e a paixão nos tristes tempos que vivemos.

A questão do racismo é de todxs nós. Assim como a questão LGBTQIA+ também é uma questão de todxs nós. São questões planetárias, que esparramam internacionalmente a luta pelo direito de ser fiel ao desejo próprio e a uma história que é sempre única, fundada na identificação primeira com a espécie.

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