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Alcir Pécora

Livro traz aulas de Nabokov sobre "Dom Quixote" em Harvard

Notas do autor de "Lolita" para curso nos EUA têm bons achados e métodos ultrapassados

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

[RESUMO] Anotações de Vladimir Nabokov para um curso sobre "Dom Quixote" são reunidas em livro lançado recentemente no Brasil. A leitura do autor de "Lolita" a respeito do clássico romance de Miguel de Cervantes tem achados significativos, como refutar a concepção sentimental sobre a obra então em voga nas universidades americanas, e impressiona por sua análise minuciosa, mas peca por aplicar um método evolucionista datado, que repreende "Quixote", do século 17, por não ter as características do romance moderno.

"Lições sobre Dom Quixote" deve muito ao editor e bibliófilo norte-americano Fredson Bowers (1905–1991), que trabalhou o material das aulas de Vladimir Nabokov (1899-1977), até lhe dar a forma de livro.

Embora Nabokov fosse professor da Universidade Cornell, as aulas sobre o Quixote foram escritas para um curso que lecionou como professor visitante em Harvard, no ano acadêmico de 1951-52 —a um ano, mais ou menos, da finalização de sua obra-prima, "Lolita", que só seria publicada em 1955.

A ideia de que "Lolita" possa ter alguma conexão forte com "Dom Quixote" é fascinante, e bem valia alguma tese. Fico imaginando se, em Nabokov, a fantasia dos moinhos de vento tomou as formas precoces da menina de 12 anos, cujo nome —Dolores (espanhol, como o de Dulcineia, amada de Quixote) Haze ("confusão", "névoa")— se não chega a insinuar o parentesco, também não impede de especular a respeito.

Ilustração do francês Gustave Doré mostra o cavaleiro Dom Quixote contemplando sua armadura - Divulgação

O crítico Guy Davenport, que prefacia o volume, chega a propor eventuais efeitos da leitura de Cervantes sobre Nabokov, mas também não vai muito mais longe do que a associação dos nomes.

Segundo Bowers, foi Harry Levin, o titular da cadeira de humanidades em Harvard, que propôs a Nabokov tomar o "Quixote" como um "ponto de partida lógico para examinar o desenvolvimento do romance". Deve ter sido assim, pois Nabokov, em Cornell, lecionava literatura russa, francesa e inglesa dos séculos 19 e 20.

Sem saber espanhol, o escritor russo leu o clássico de Cervantes na tradução de Samuel Putnam, de 1949. E o seu repertório limitado de obras dos séculos 16 e 17 fica claro quando as comparações que propõe para "Quixote" são extraídas de Gógol, Flaubert, Tolstói, Rimbaud, Dostoievski ou Proust, referindo pela rama Lope de Vega e Shakespeare.

O "método de Nabokov" para preparar as suas aulas, ainda segundo Bowers, consistia em produzir um "extenso resumo" do livro a ser analisado, o que incluía a citação de trechos escolhidos e de comentários sobre eles, tendo como foco categorias como ação, diálogo, personagens e temas.

No caso do "Quixote", Nabokov fez uma versão preliminar datilografada das aulas, que depois foi completando à mão e rearranjando o conjunto de modo a superar o tema das "vitórias e derrotas" do herói, que estava no centro da sua leitura.

Nabokov se apresenta aos alunos sob a metáfora de um "guia que ama as palavras e tem os pés doloridos", disposto a produzir "impressões" nas "mentes abertas" de "turistas curiosos e entusiasmados". A essa imagem de guia experimentado que explica as obras do museu a visitantes de ocasião, Nabokov associa os principais pressupostos teóricos adotados por ele, a começar da recusa de buscar a "vida real" na ficção, o que ele considera um "erro fatal" de leitura.

Obras importantes seriam "espaços originais", enquanto a "vida real", suspensa entre parêntesis, refere sempre a "emoção média" do "senso comum". Assim, deixa claro o seu interesse pelo "livro em si", não por Miguel de Cervantes, suas crenças ou seu tempo, o que ele resume dizendo que a "única coisa que realmente importa" em literatura é "o êxtase misterioso da arte, o impacto da beatitude estética".

Não é difícil perceber nessas formulações um eco impressionista das ideias do new criticism, de autores como I.A. Richards, que também lecionava nos cursos de humanidades em Harvard. Em consequência, Nabokov propunha que o espaço do "Quixote" nada tinha de específico, ao contrário do que se dizia, pois, a despeito de ser situado de início no território da Mancha, Cervantes "não é agrimensor" e todo o "cenário" do livro não passa de ficção.

O "campo" tampouco teria autenticidade, sendo apenas reciclagem de material de velhos romances italianos. Quanto ao tempo da aventura, embora pareça bem definido entre 1605 e 1615, Nabokov o considera uma costura genérica. Em suma, para ele, mais justo seria ler o livro como um "conto de fadas", que por definição existiria isoladamente, sem contato com o mundo real.

Outra concepção enraizada em Nabokov, implícita já na encomenda de Levin, é a ideia de uma "forma evolutiva do romance", que teria começado como epopeia e se transformado em "prosa agradável", podendo ser "monofônica" ou, na sua forma mais avançada, "polifônica", quando passa da vida de uma personagem para outra até todas entrarem em contato.

Por aí, "Quixote" seria um "romance monofônico e meio", como ocorria com o "romance picaresco", que Nabokov entende ser "um tipo primitivo de romance", cujo herói é um velhaco, envolvido em atividades irresponsáveis em termos sociais, religiosos ou políticos, em "episódios frouxamente concatenados", com predominância do cômico, ao qual faltava uma "memória consciente" a permear "todo o livro".

É visível que Nabokov se diverte em destruir a concepção sentimental do "Quixote", predominante nas universidades americanas —embora, por outro lado, a sua interpretação pareça hoje limitada e paradoxal ao ignorar que o gênero da novela, incluindo a picaresca, funciona bem sem precisar cumprir a exigência de unidade na pluralidade do romance realista francês ou russo de 200 anos depois. Cervantes não é leitor de Tolstói ou Flaubert, e o seu livro não está obrigado a pagar uma dívida contraída depois de sua morte.

E Nabokov expande o trabalho de demolição dos lugares edificantes aos traços físicos e morais das figuras de Quixote e Sancho Pança. Para ele, apenas o primeiro se constituiria como indivíduo único, sendo o segundo apenas um "típico palhaço". Também anota o "desconforto físico" do "cavaleiro da triste figura", que sofre de uma doença renal, e cujos corpo, roupas e armas são miseráveis e sujos, possuindo ainda uma "dupla natureza": calma, galante e corajosa, mas sujeita a acessos de "raiva beligerante".

Já Sancho seria um "homem de família", "trabalhador braçal", porém "vagabundo", dono de uma "dignidade beócia". Parece, de início, o "tolo perfeito", mas depois revelaria uma inteligência que o faria um "chato perfeito", cujo humor se baseia na "tradição grosseira" da "incontinência dos intestinos".

No limite, cavaleiro e escudeiro seriam "uma só pessoa", o pícaro desconjuntado por natureza, que só funciona porque é aceito como tal pelo "leitor primitivo" da sua época. A concepção evolucionista, portanto, contamina desde a caracterização do gênero e das personagens até a do próprio leitor, como se tudo o que fosse de um período anterior ao moderno referisse um estágio infantil e tosco da sociedade.

Uma ideia bem mais tosca, aliás, do que o viés escatológico de Sancho —que nada tem de "grosseiro", pois resulta da aplicação de preceitos antigos, de matriz greco-latina, que buscam extrair pérolas da lama, ou o efeito satírico a partir da produção de "mistos", ressaltando numa única personagem, ou no confronto entre elas, a coexistência de traços elevados e baixos, em diferentes graus.

Nabokov observa que a "loucura" de Quixote e o suposto "bom senso" de Sancho são mutuamente contagiantes, gerando um intercâmbio de sonhos e desatinos, mas deixa de considerar o quanto essa mistura é funcional na produção do ridículo risível.

E contra a evidência de qualquer leitor, insiste em dizer que os dois heróis não são engraçados, pois seriam "cruéis" —o que, contudo, não são coisas excludentes em termos de poéticas dos séculos 16 e 17, que admitem o "riso com dor", a despeito do que aconselhava o decoro aristotélico.

Entretanto, a grande batalha de Nabokov é mesmo contra a crítica acadêmica, na qual ressalta haver, primeiro, uma "grande discordância" de opiniões sobre o livro, com alguns o julgando o melhor romance de todos os tempos, enquanto para outros seria apenas uma "farsa ultrapassada", no que errariam todos.

Errariam também ao empregar "grandes palavras e pouco sentido" para relacioná-lo com debates sobre o "humanismo" e a "natureza da verdade", quando Cervantes só se preocupa com a "diversão do leitor". Outro erro seria identificar pessoas reais ligadas às personagens do livro, quando são apenas "fantasias inventadas". E erram ainda mais os críticos que veem o Quixote como um sonhador que perde todas as batalhas, pois ele venceria a metade dos seus 40 confrontos com animais, viajantes, cavaleiros e máquinas.

Em suma, Nabokov se empenha em demonstrar aos estudantes que se trata de um "livro desorganizado"; no máximo, um "espantalho" entre as obras-primas. A própria personagem central é "desorganizada e fragmentária", e "vive além da narrativa" —que estaria planejada apenas para ser "um longo conto", para "distração por uma ou duas horas". A proliferação de episódios no final da primeira parte evidenciaria um "autor cansado" e desleixado.

Já na segunda parte, Cervantes teria apenas (como um "leitor médio") uma "lembrança vaga" da primeira, pois sentia "ojeriza a rever o escrito", repleto de "incongruências e enganos", composto de um "emaranhado de acontecimentos pré-fabricados", "tramas de segunda mão", "versos medíocres", "interpolações banais", "disfarces e coincidências" forçados, afora o riso ser "brutal e lúgubre", como o de uma "farsa medieval", feita de "elementos cômicos convencionais".

Todas essas restrições são exemplares, de fato, mas não do "Quixote", e sim do "método" de Nabokov, que descreve tudo o que falta à novela seiscentista para ser justamente o que ela jamais poderá ser: um romance realista moderno.

Ou seja, o que Nabokov exige da novela é fruto de uma visão anacrônica, que atribui a um período histórico o que só existe em outro. E um anacronismo agravado pela ilusão teleológica, que supõe o passado como algo que existe em função de causas que estão no futuro.

É verdade que "Dom Quixote" é todo composto de lugares convencionais, não só em relação à natureza e aos "temas" pastoris —que, aliás, diversamente do que pensa Nabokov, não são apenas temas, mas medidas de composição.

É que, para um autor do século 17, a convenção, diferentemente do que ele e tantos outros escritores de filiação romântico-iluminista dizem, não é nenhuma "camisa de força", mas sim o próprio princípio da criação poética. Caso não se baseasse em modelos antigos, a obra nem sequer seria levada a sério como prática artística. Isso porque o seu princípio de construção é o da emulação, vale dizer, a imitação não servil, competitiva, das matrizes antigas reconhecidas como excelentes.

No jogo de submissão e imposição à matriz antiga reside a graça da invenção, não no planejamento do romance de modo a resultar um conjunto unitário de ações e personagens plurais. Um objetivo desses não tem nada a ver com uma novela seiscentista: é apenas uma fórmula simplista do romance francês do século 19.

A análise de Nabokov, portanto, funciona bem contra os lugares-comuns edificantes, sentimentais e idealistas atribuídos ao "Quixote" pela crítica americana, na linha do "sonhar mais um sonho impossível", que deu margem a todo tipo de cafonice, inclusive no Brasil.

Entretanto, essa mesma crítica também é exemplo de uma perspectiva poética e histórica reducionista, na qual o presente é suposto como destino natural da literatura, e o que vem antes, no melhor dos casos, é antecipação dele, em registro mais ou menos canhestro.

Ainda, para Nabokov, os comentaristas erram quando dizem que "Quixote" critica a "moda dos livros de cavalaria", pois ele "não eliminou coisa alguma" e os "grandes romances europeus" do século 19 são ainda descendentes dos livros de cavalaria.

A menção crítica a eles seria apenas um modo "conveniente" de Cervantes sustentar o seu livro picaresco, que na verdade seria "paródia" dos romances do ciclo do Graal, com a diferença de que Quixote não encontra "cavaleiros de verdade" para lutar. Mais adequado, na visão do autor de "Lolita", seria ver "Quixote" como uma "continuação lógica" das novelas de cavalaria, obtida à custa de exageros escatológicos, à maneira da "comédia de pastelão".

Nabokov, portanto, admite a paródia, mas não a vê como crítica, e sim como continuidade. Entretanto, o mais relevante, no caso, é perceber que a imitação que Cervantes faz da novela de cavalaria é tão bem-sucedida que modifica o próprio estatuto da matriz anterior, que se torna apenas um gênero histórico do passado.

O que se passa com Nabokov é que, ocupado em criticar a leitura idealista de "Dom Quixote", jamais atina com o princípio estrutural da novela, que, por sinal, já está dado no seu título original ("O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha"): a de escrito "engenhoso", e, portanto, alegórico.

Engenho e alegoria são termos técnicos que propõem, como base da emulação, a invenção de correspondências entre objetos distintos entre si, de preferência os mais distantes e incongruentes, abrindo a partir daí um largo leque de significação que vai dos mistos cômicos à dialética do sublime.

Na sua cruzada local, Nabokov acabou constituído por ela. A fim de fazer a justa crítica à sentimentalização da novela, ressaltou os falsos defeitos que ela teria em relação ao romance moderno. Diante da vara torta do proselitismo edificante, Nabokov a entortou na direção oposta do formalismo evolucionista, o que é sempre passar ao largo do "Quixote".

Daí que Nabokov seja obrigado a gastar boa parte da sua conclusão a explicar como é que Cervantes "salvou" o seu romance bagunçado no último instante, a ponto de o colocar no pódio da história literária mundial. Por conta de entortar a boca com o cachimbo acadêmico, Nabokov se viu obrigado a fabricar uma peripécia banal de salvação do livro, devida à "genialidade de Cervantes", à "intuição do artista" que, sem saber como, conseguiu unir peças disparatadas e fornecer "impulso e unidade" à obra.

O escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977) - Patrimônio Vladimir Nabokov/Reprodução

Com "a liberdade do gênio", o "senso literário secreto", a "intuição harmonizadora do artista", deu o seu "golpe de mestre": a fusão da fantasia da cavalaria com a loucura causada pela leitura dos tais relatos. Da crítica formal do romance, Nabokov se vê obrigado a recuar ao bordão impressionista do "gênio", que tudo salva, a despeito da obra toda errada.

Com isso, enquanto "acontecimento na crítica moderna", como quer Davenport, a leitura de Nabokov é bem datada. A rigor, é só mais uma a se somar à teleologia romântico-iluminista que ignora o princípio engenhoso e alegórico da composição e pretende submeter "Quixote" a critérios extemporâneos, a que não tinha como responder.

Há aspectos na leitura de Nabokov que podem servir de "lição" a professores de literatura de hoje, a começar pelo fato de que ele opera, de fato, como um guia de "pés cansados": alguém que lê o livro em minúcia, anotando as páginas, resumindo os capítulos, contando os confrontos etc.

Há achados em vários dos seus "close readings", e Nabokov não cai na generalidade produtivista em que ler ficção é apenas aplicar "teorias" de prestígio ou diluí-la em militância.

Por outro lado, os anacronismos nos quais incorre alertam para o problema da limitação do seu método textualista e evolucionista. Sem considerar os valores poéticos que regem o texto na época de sua produção, o esforço episódico louvável que ele faz de combater o academicismo edificante acaba reforçando outra série desventurada de preconceitos associados a uma crítica presentista autoritária que simplesmente decreta a abolição da história.

Lições sobre Dom Quixote

  • Preço R$ 64,90 (302 págs.)
  • Autoria Vladimir Nabokov
  • Editora Fósforo
  • Tradução Jorio Dauster
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