Descrição de chapéu ataque à democracia

Orbán transforma pequena Hungria em gigante conservador

Primeiro-ministro adotou estratégia milionária para difundir política iliberal e aumentar sua influência global

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O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán Bernadett Szabo/Reuters

São Paulo

[RESUMO] Reportagem de jornalista em viagem à Hungria expõe estratégia do primeiro-ministro do país, Viktor Orbán, que investiu milhões de dólares para fortalecer institutos conservadores e atrair pesquisadores estrangeiros, buscando aumentar sua influência entre a direita global. O líder populista esteve na posse de Jair Bolsonaro e mantém relações com o ex-presidente.

Para criar um Estado conservador de sucesso, são necessários vários ingredientes. Tenha sua própria mídia. Não esqueça de ler todos os dias. Tenha fé. Faça amigos. Construa instituições. Esses são alguns dos itens da receita do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. No quarto mandato consecutivo, ele tem se esforçado para dividi-la com o mundo.

"A Hungria foi o laboratório no qual testamos o antídoto contra os progressistas", disse Orbán em maio de 2022 para uma audiência de políticos, influenciadores e jornalistas de direita, húngaros e americanos.

Depois de 48 anos de atividade nos Estados Unidos, a CPAC (Conferência de Ação Política Conservadora), o maior evento do tipo no mundo, tinha chegado à Europa pela primeira vez. Mais precisamente, em Budapeste. Em um discurso de meia hora, o primeiro-ministro listou 12 conselhos que governos conservadores deveriam seguir para ter sucesso.

Três meses depois, Orbán voltou a falar na CPAC —dessa vez, no Texas, onde foi aplaudido de pé por uma audiência de ativistas e políticos republicanos. Em determinado momento, o primeiro-ministro mencionou a estranheza de ter sua presença solicitada "pelos conservadores mais notáveis dos Estados Unidos".

Viktor Orbán em discurso na CPAC, nos Estados Unidos, em 2022 - Brian Snyder/Reuters

"Eu estava me perguntando nas últimas duas semanas o que vocês gostariam de ouvir de mim", Orbán disse, acrescentando que a Hungria estava longe de ser um poder global. "Os Estados Unidos são um poder global. Os seus líderes deveriam estar fazendo um discurso inaugural nas nossas conferências na Hungria."

Ele tinha um ponto. É realmente atípico que a política húngara tenha se tornado uma referência para conservadores em todo o mundo, dos republicanos à família Bolsonaro. Como um país pós-comunista de 10 milhões de habitantes se transformou em um modelo para a direita global? Em dezembro de 2022, fui a Budapeste para entender.

No dia 23 daquele mês, encontrei no centro da cidade Richárd Bodrogi, chefe de gabinete do diretor político de Orbán —uma espécie de conselheiro. Depois de um cigarro, um pouco de conversa fiada e uma tentativa fracassada de pronunciar seu nome em húngaro, subimos para o escritório.

"A gente sabe como ganhar as eleições e como derrotar a agenda da esquerda. Queremos construir uma espécie de hub de conhecimento político", ele disse. Para isso, o governo húngaro tem investido milhares de dólares em instituições e think tanks conservadores.

Uma delas, a MCC (Mathias Corvinus Collegium), recebeu mais de US$ 1,5 bilhão, segundo o Atlatszo, um veículo de jornalismo investigativo. Em 2022, a instituição inaugurou um braço em Bruxelas, onde fica o Parlamento Europeu. A novidade foi vista como um movimento para desafiar os valores liberais da União Europeia, organismo com o qual Orbán frequentemente entra em conflito diante de acusações de crise na democracia húngara.

Opositores, jornalistas e institutos que medem a qualidade das democracias no mundo fazem alertas. Eles afirmam que Orbán minou a independência do Judiciário, tomou conta do mercado da mídia, sufocou ONGs e universidades, aprovou leis contra minorias, como a comunidade LGBTQIA+ e os imigrantes, e redefiniu distritos eleitorais para favorecer o Fidesz, seu partido.

Graças a um sistema eleitoral bastante desproporcional, anterior à administração atual, o primeiro-ministro vem governando desde 2010 com uma maioria absoluta. Naquele ano, o Fidesz conseguiu 53% dos votos, o que se traduziu em 68% dos assentos no Parlamento. Foi o suficiente para passar a toque de caixa uma nova Constituição que enfraqueceu o sistema de freios e contrapesos que controlaria o poder de Orbán.

As instituições conservadoras financiadas pelo governo costumam convidar pesquisadores de outros países para passar um tempo na Hungria. Alguns ficam por longos períodos, estudando, e outros por apenas uma ou duas semanas, em seminários ou conferências.

Em contraponto ao que a imprensa ocidental reporta sobre o país, eles são apresentados à narrativa do governo sobre o que aconteceu desde que Orbán assumiu pela segunda vez como primeiro-ministro (em 1998, ele já havia ocupado o cargo, por apenas um mandato). O esforço frequentemente dá resultado: esses pesquisadores escrevem uma série de artigos que retratam Orbán de forma positiva e aumentam sua influência na esfera conservadora global.

Ou seja, não foi por acaso que a Hungria virou um laboratório para a direita mundial. Foi uma estratégia de soft power muito bem-pensada pelo primeiro-ministro e que envolveu milhões de dólares.

Bodrogi diz que o objetivo ao convidar os estrangeiros é exportar as técnicas e ideias conservadoras que ganharam tração no governo Orbán. "Até testá-las. Políticos de outros países podem testar nossas ideias, nosso conhecimento, na estrutura deles."

Há ainda outro motivo para o governo investir tanto nesses institutos. Para Orbán, é importante que o pensamento de direita se espalhe pela sociedade húngara. O governo quer construir uma elite intelectual que apoie líderes conservadores a longo prazo.

Fachada do Mathias Corvinus Collegium, um dos principais destinatários de verbas do governo de Viktor Orbán no setor educacional
Fachada do Mathias Corvinus Collegium, um dos principais destinatários de verbas do governo de Viktor Orbán no setor educacional - Ana Luiza Albuquerque/Folhapress

Diretor da nova filial da MCC em Bruxelas, o acadêmico Frank Furedi menciona o filósofo marxista Antonio Gramsci para explicar a importância desses institutos. "Você já ouviu falar sobre Gramsci?", ele me pergunta. Eu aceno positivamente com a cabeça. O marxista desenvolveu o conceito de hegemonia cultural, que propõe que instituições como a escola e a mídia têm um papel fundamental na disseminação da ideologia da classe dominante, garantindo seu controle sobre a sociedade.

"A sobrevivência a longo prazo do tipo de projeto que Orbán quer necessita de um grau de hegemonia intelectual na sociedade", diz Furedi.

Um dos pesquisadores estrangeiros atraídos pelo Estado húngaro é o escritor americano Rod Dreher, conservador e cristão. Ele conta que conheceu Orbán em 2019, quando viajou para Budapeste para falar em uma conferência sobre liberdade religiosa. Ao fim do evento, enquanto os palestrantes estavam almoçando, um membro do governo teria se aproximado e dito que o primeiro-ministro gostaria de conhecê-los. Eles foram colocados em um ônibus e logo encontraram Orbán.

"Achei que fôssemos apertar a mão dele, tirar uma foto e tchau, mas ele sentou com a gente por uma hora e meia e respondeu todas as nossas perguntas", afirma Dreher. "Eu não conheço nenhum líder mundial que faria isso. Certamente não um presidente americano."

Ao final da reunião, segundo o escritor, Orbán disse: "Eu espero que vocês, que são conservadores, considerem Budapeste seu lar intelectual". Dreher achou essa uma boa ideia, mas que jamais aconteceria. Naquela época, o primeiro-ministro ainda não era tão popular entre a direita americana. "Bom, está começando a acontecer", ele diz. "E eles têm colocado dinheiro nisso."

O americano avalia que o governo tem investido nos institutos porque deseja construir uma rede conservadora que permanecerá mesmo quando Orbán ou o Fidesz não estiverem no poder. "Ele sabe que não vai ser primeiro-ministro para sempre", afirma. "Ele quer construir um tipo de Estado profundo que possa sobreviver a qualquer coisa que aconteça."

Dreher, porém, duvida que as técnicas de Orbán possam ser facilmente exportadas. "Não tem como pegar as melhores políticas e simplesmente inseri-las na América. Mas, pelo menos, ele faz a gente pensar diferente. Faz a gente pensar em como seria um governo conservador que se importasse mais com a família que com Wall Street."

Ponte de embarque no aeroporto de Budapeste com os dizeres "Hungria, amigo da família"
Ponte de embarque do aeroporto de Budapeste com os dizeres "Hungria, amigo das famílias" - Ana Luiza Albuquerque/Folhapress

Desembarquei em Budapeste em uma tarde fria de dezembro. Ao sair do avião, entrei em um pequeno ônibus que me levaria ao terminal. Eram 15h, e o sol já estava se pondo no horizonte.

Quando olhei pela janela, a primeira coisa que vi foi uma propaganda peculiar em uma das pontes que conectam o avião ao aeroporto. No meio, havia uma bola laranja com pequenos bonecos desenhados em branco, dando as mãos —dois maiores e três menores. A legenda dizia, em espanhol: "Hungria, amigo das famílias".

Para tentar contornar a baixa taxa de natalidade do país, Orbán estabeleceu políticas públicas agressivas para estimular as famílias a terem mais filhos, como ao desobrigar mães com menos de 30 anos a pagar imposto de renda. Ao mesmo tempo, deixou nítido que, para o governo, o conceito de família envolve um homem, uma mulher e seus filhos. Homossexuais não podem se casar ou adotar crianças.

A ideologia fundamental do governo Orbán é o nacionalismo cristão, sustentado na tríade Deus, nação e família. Essa também foi a base ideológica da administração Bolsonaro e o lema de autocratas do passado, como o ditador português António Salazar. Mas será que o primeiro-ministro realmente acredita no que prega?

"Não, não, não, não, não", repete Bálint Magyar, pesquisador da Universidade Centro-Europeia, fundada pelo bilionário judeu George Soros e expulsa do país por Orbán. Soros foi um dos inimigos escolhidos pelo primeiro-ministro, ao lado de imigrantes e liberais, para mobilizar sua base. Oponentes e críticos afirmam que a poderosa campanha contra o filantropo resvala no antissemitismo.

Magyar diz que Orbán, que está na vida política desde a queda da União Soviética e já fez parte de um grupo liberal quando jovem, nunca foi religioso ou nacionalista. "Não é porque a sua visão mudou. Tornou-se claro para ele que o liberalismo era minoria na sociedade húngara. Então, ele foi em outra direção", afirma.

Sentado em frente ao computador, o pesquisador pega um dos livros que escreveu e abre na página 610. Ali tem uma tabela que equipara cada um desses valores —Deus, nação e família— a um grupo estigmatizado e a uma função para Orbán.

Por exemplo, a função do valor nação é excluir a oposição e permitir que o governo não preste contas da sua atuação. Os grupos estigmatizados nesse caso são os partidos de oposição, a sociedade civil e organismos internacionais.

Ou seja, como um típico populista, Orbán elege inimigos e desenvolve uma retórica de "nós contra eles". Assim ele insere a população em um estado de constante guerra psicológica e mobiliza seus eleitores a apoiá-lo.

O primeiro-ministro propõe uma ordem alternativa aos valores liberais do Ocidente. Isso inclui a democracia liberal, que prevê, além de eleições livres e justas, liberdades de imprensa e associação, igualdade perante as leis, equilíbrio entre os Poderes e proteção de grupos minoritários.

Para Orbán, esse modelo vive uma crise sem precedentes. Em um de seus discursos mais famosos, em 2014, ele disse que estava construindo na Hungria um Estado iliberal. "Esse Estado não rejeita princípios fundamentais como a liberdade, mas não faz do liberalismo a ideologia central em sua organização. Em vez disso, inclui uma abordagem diferente, nacional."

Naquela ocasião, Orbán argumentou que nem toda democracia precisa ser liberal. E mencionou países como Singapura, China, Índia, Rússia e Turquia para dizer que sistemas não ocidentais, não liberais e "talvez nem democracias" podem ainda assim ser bem-sucedidos.

Como mostra a estratégia de atrair pesquisadores estrangeiros para a Hungria, Orbán entendeu que precisava se cercar de conservadores que pensam como ele. Saindo de um museu em Budapeste, em dezembro de 2022, eu abri o livro de visitas e encontrei uma mensagem inesperada. "Começando dia 1º de janeiro, o Brasil vai sorrir de novo, pouco a pouco", dizia a nota escrita com tinta azul. "Fora, Bozo. Fora, Viktor Orbán."

Depois da queda do Muro de Berlim, cientistas políticos estavam confiantes de que a democracia liberal havia se estabelecido como o principal e melhor sistema de governo. Mas a história, diferentemente do que eles pensavam, não acabou ali.

Jair Bolsonaro, Viktor Orbán, Donald Trump, Recep Tayyip Erdoğan e Narendra Modi fazem parte de uma nova onda de líderes autoritários que têm desafiado a ideia de que democracia e liberalismo andam lado a lado. Afinidades ideológicas os aproximaram, assim como estrategistas dedicados a construir uma rede global de direita, como o ex-assessor de Trump, Steve Bannon— que se referiu a Orbán como "Trump antes de Trump".

Em janeiro de 2019, Orbán foi o único líder europeu (além do presidente de Portugal, que seguiu a tradição) a participar da cerimônia de posse de Bolsonaro. Nos anos seguintes, Hungria e Brasil estreitaram laços, com visitas frequentes de autoridades. O então chanceler Ernesto Araújo, por exemplo, se encontrou pelo menos duas vezes em 2019 com o húngaro Péter Szijjártó, ministro das Relações Exteriores.

Naquele ano, Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, também foi à Hungria, onde participou da Cúpula Demográfica de Budapeste, um evento que defende o conceito tradicional de família. Em sua fala, ela se referiu a Bolsonaro como "um incrível homem", que queria levar "o Brasil para o cenário mundial como um país pró-família, pró-vida".

"Eu não poderia deixar de aproveitar essa oportunidade para convidar todos os estados aqui representados para juntarem-se a nós na formação de um grupo de países amigos da família, para no âmbito da Organização das Nações Unidas defender e resgatar os valores que alguns setores tendem muitas vezes a ignorar", disse Damares.

O conservadorismo moral e religioso foi o principal ponto de interseção entre os dois governos. Em fevereiro de 2022, Bolsonaro também visitou a Hungria e afirmou, ao lado de Orbán: "Considero seu país o nosso pequeno grande irmão. Comungamos também da defesa da família com muita ênfase".

Em julho, foi a vez da então presidente húngara Katalin Novák visitar o Brasil. Ela escreveu no Twitter que foi convidada porque o governo brasileiro estava acompanhando de perto as políticas públicas húngaras voltadas para a família.

O ex-presidente Jair Bolsonaro ao lado do aliado, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán - Attila Kisbenedek/AFP

Naquele ano, Orbán gravou um vídeo apoiando a reeleição de Bolsonaro. Ele disse que, apesar da esquerda e do globalismo, o aliado teve coragem de colocar o Brasil em primeiro lugar, e Deus acima de tudo. E o apoio pode ter ido ainda mais longe.

Uma reportagem da Folha mostrou que o chanceler da Hungria chegou a oferecer ajuda para a reeleição de Bolsonaro durante uma reunião com Cristiane Britto, que assumiu o Ministério da Mulher depois que Damares se candidatou ao Senado. Segundo o relatório da viagem, escrito por Britto, o chanceler perguntou se tinha algo que o governo húngaro poderia fazer para cooperar.

"Faça amigos", aconselhou Orbán em sua receita para construir um Estado conservador de sucesso. "Nossos oponentes, os liberais progressistas e os neomarxistas, têm unidade ilimitada: eles defendem uns aos outros. Em contraste, nós conservadores discutimos pelos menores motivos", disse ele em seu discurso na CPAC da Hungria.

O primeiro-ministro conseguiu fazer amigos, mas eles não foram tão bem. Um a um, perderam as eleições Jair Bolsonaro, a francesa Marine Le Pen, o esloveno Janez Janša e o americano Donald Trump, que tenta voltar ao poder neste ano.

O próprio Orbán, ainda que no quarto mandato consecutivo, tem dificuldades no cenário doméstico. O primeiro-ministro teve que lidar com um pico de inflação no ano passado e ameaças de cortes no financiamento pela União Europeia.

Uma tarde após voltar de Budapeste para Nova York, onde morava quando fiz essa reportagem, fui a uma confeitaria húngara tradicional perto de casa, sempre com longas filas na porta. Pedi uma torta dobos, um doce húngaro famoso que provei durante a viagem.

A torta tem várias camadas de um bolo esponjoso alternadas com um creme de chocolate e um pedaço de caramelo no topo. Comi um pedaço e sorri: tinha gosto de Hungria. No fim das contas, algumas receitas são fáceis de copiar. Talvez a de Orbán não seja uma delas.

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