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Roberto Andrés

Depois de trauma de 2013, PT volta a se deparar com passe livre no transporte

Novo governo Lula precisa romper apego a carro próprio e avançar no direito à mobilidade dos mais pobres

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Roberto Andrés

Doutor em arquitetura e urbanismo pela USP, professor da UFMG e diretor da Rede Nossas Cidades

[RESUMO] Nas cidades brasileiras, desiguais e fragmentadas, o preço da passagem e a precariedade do transporte público serviram historicamente para isolar os pobres nas periferias e impedir seu exercício da democracia. O passe livre em centenas de cidades durante o segundo turno, que selou a terceira vitória de Lula à Presidência, simboliza uma reconciliação com a pauta inicial de Junho de 2013 e pode ser o primeiro passo de uma inflexão em políticas de governos do PT que não priorizaram a mobilidade urbana.

No segundo turno das eleições deste ano, o transporte esteve na ribalta. Em uma disputa acirrada, os dois candidatos à Presidência focaram esforços nas abstenções: a campanha de Lula (PT) buscou reduzi-las, e a de Bolsonaro (PL), ampliá-las. O voto dos mais pobres, que têm maior preferência pelo petista, estava no centro da equação —e os mais pobres, em sua maioria, se deslocam de ônibus, metrô, trem ou a pé.

A partir de uma decisão do STF que permitiu a gratuidade do transporte nas eleições, diversas cidades passaram a adotar a política. A campanha do atual presidente tentou derrubar a medida. Se a barreira financeira filtrasse o direito à cidadania, seu adversário teria menos votos. Começou então a batalha dos ônibus. Uma grande mobilização, organizada por mais de 70 entidades, passou a reivindicar "passe livre pela democracia".

Movimentação no terminal Capelinha, na zona sul de São Paulo, durante o segundo turno das eleições - Karime Xavier - 30.out.22/Folhapress

O resultado foi expressivo. Todas as capitais adotaram a política, além de centenas de outras cidades e oito estados. Criou-se uma onda irreversível, em que até aliados do presidente, como os governadores Rodrigo Garcia (PSDB, São Paulo) e Romeu Zema (Novo, Minas Gerais), tiveram de oferecer a gratuidade. Para milhares de pessoas que antes teriam que escolher entre almoçar ou pagar o transporte, o direito ao voto pôde ser exercido de forma igualitária.

Em contraposição, o autoritarismo bolsonarista se valeu de ações ilegais para cercear o acesso dos mais pobres às urnas. A PRF (Polícia Rodoviária Federal), aparelhada pelo presidente, achou por bem realizar inúmeras blitze no dia do pleito, um procedimento atípico e marcado pela inspeção vagarosa em regiões onde Bolsonaro tem baixa votação.

Apesar do esforço golpista, quem venceu a batalha dos ônibus foi a democracia. Pela primeira vez no país, a taxa de abstenção no segundo turno foi menor que no primeiro (em outros pleitos desde 2002, ela foi de 1 a 3,4 pontos percentuais maior).

Lula, vitorioso em uma eleição apertada, se reconciliou com o Passe Livre, pauta inicial das revoltas de 2013, que acabaram por derivar na quebra de hegemonia dos governos petistas.

Rebeliões contra aumentos tarifários e más condições do transporte no Brasil vão fundo na linha da história. A primeira delas ocorreu em 1880, no Rio de Janeiro, motivada pelo aumento na passagem dos bondes. A Revolta do Vintém pegou a classe política, a sociedade e a imprensa de surpresa e abalou o governo. Foram três dias de quebra-quebra, barricadas, tiro, porrada e bomba na capital do Império.

Desde então, centenas de revoltas similares ocorreram no país, intercaladas por períodos de calmaria. De tempos em tempos, a insatisfação acumulada com a má qualidade de um serviço cotidiano essencial eclodia em fúria súbita. Como após os motins os problemas estruturais não eram resolvidos, a insatisfação voltava a se acumular até explodir de novo a partir de alguma fagulha.

Durante a derrocada da ditadura e a redemocratização, estavam em alta os quebra-quebras de ônibus e trens. A criação do vale-transporte, em 1987, produziu um período de calmaria. A chegada de Lula à Presidência, por sua vez, coincidiu com o regresso das revoltas. Em Salvador, um aumento de 20 centavos na tarifa levou a uma rebelião furiosa, que paralisou a cidade por vários dias. A Revolta do Buzu foi a primeira de um ciclo que chegou ao ápice em 2013.

Em cidades espraiadas e fragmentadas como as brasileiras, a carência de transporte sempre serviu para isolar os pobres. Jogada nas periferias longínquas e precárias, a base da sociedade vem sendo sistematicamente impedida de se deslocar, por falta de linhas ou pelo preço proibitivo das passagens. O geógrafo Milton Santos usou o termo "exílio na periferia" para caracterizar essa situação.

O insulamento dos pobres é em parte desleixo, em parte projeto. Isso fica evidente na reação das elites aos esforços de democratização da mobilidade urbana.

Quando, em 1984, o governo de Leonel Brizola criou linhas de ônibus que ligavam regiões periféricas do Rio de Janeiro às praias da zona sul, a elite local ficou em pânico. Rapidamente, começaram as operações policiais para barrar o acesso que as novas linhas destravaram.

Em 2010, quando a construção de uma estação de metrô foi anunciada em Higienópolis, em São Paulo, moradores fizeram forte oposição à medida, que acreditavam que traria "gente diferenciada" ao bairro de alta renda.

Lula conheceu de perto a realidade do exílio na periferia. Sua família foi mais uma entre milhões jogadas em bairros precários e carentes da infraestrutura mais básica. Sem dinheiro para pagar a passagem, ele conta ter caminhado por horas a fio por regiões ermas para se apresentar à porta das fábricas em busca de emprego. A falta de transporte também o impedia de ter acesso ao lazer, à cultura e outros elementos da vida cotidiana.

Por diversas razões, os governos petistas não priorizaram o transporte público. O núcleo duro do PT, formado no sindicalismo do ABC Paulista, teve na indústria automotiva um elemento central de seu projeto de desenvolvimento. Estimavam o setor devido à sua capacidade de ofertar empregos bem-remunerados, que refletiam na força dos sindicatos, e enxergavam o automóvel como ferramenta de emancipação dos mais pobres.

"Nunca houve um presidente como Lula para a indústria automobilística", afirmou um jornalista especializado no setor. Os incentivos dados às montadoras, iniciados nas décadas anteriores, ganharam escala em seu governo, e a produção de carros foi às alturas.

O período foi marcado também pelo crescimento e espraiamento das cidades. Contribuíram para isso políticas como o Minha Casa Minha Vida, que incentivava a construção de imóveis nas franjas urbanas.

O boom de veículos, somado ao espraiamento urbano, pesou sobre o transporte público. Com as ruas congestionadas e os trajetos mais longos, cresceu o tempo das viagens, o que aumentou os custos e afastou passageiros, que compravam motos e carros a prestações. Custos mais altos e receitas menores eram compensados por aumentos tarifários, que afastavam ainda mais usuários e ampliavam a insatisfação.

As políticas que poderiam ter remediado a situação não foram implementadas. A principal delas diz respeito ao financiamento do transporte. Nos países de referência, parte expressiva da receita dos sistemas vem de fontes indiretas: fundos públicos, taxas ou impostos. Isso é fundamental para manter o transporte atrativo e evitar a evasão. Propostas nessa linha foram apresentadas aos governos Lula e Dilma por entidades e pela Frente Nacional de Prefeitos, mas não tiveram encaminhamento.

A resposta do governo ao problema teve duas frentes. A primeira foi normativa: em 2007, Lula enviou ao Congresso o projeto da Lei Nacional da Mobilidade Urbana. O novo marco, promulgado cinco anos depois, avançava na abordagem conceitual e criava um ambiente regulatório mais propício para o financiamento público. Mas, para produzir efeitos, a lei precisaria ser tomada como o primeiro de uma série de passos – que nunca chegaram a ser dados.

A segunda resposta foi um conjunto de obras, inseridas no PAC da Mobilidade e nas intervenções ligadas aos megaeventos eventos, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. As avaliações dessas obras, entretanto, apontam pouca efetividade na melhoria do transporte. Primeiro, pela lentidão em sua execução; segundo, pela concentração em poucas cidades e em territórios específicos delas; por fim, pelo viés rodoviarista de muitos dos projetos, que tende a produzir o aumento da demanda por veículos particulares.

Todo esse estado de coisas levou à crescente insatisfação dos usuários do transporte. Rebeliões como a de Salvador, em 2003, se replicaram nos anos seguintes. A maior parte das capitais assistiu a alguma manifestação no período. Nas periferias, os ônibus eram rotineiramente depredados. Tudo isso ficou ofuscado em um período de otimismo, mas veio à tona abruptamente em 2013.

A mobilidade urbana segue um dos maiores desafios no próximo ciclo progressista. O automóvel não é uma solução universalizável: a base da sociedade brasileira não tem como arcar com os altos custos de um carro e, se todos pudessem ter um, ninguém se moveria um centímetro. Além disso, o boom da frota em circulação prejudica principalmente os mais pobres, que têm seus trajetos de transporte público impactados e são mais afetados pela poluição do ar e por acidentes.

Houve certo consenso sobre a importância do passe livre no dia das eleições, mas uma democracia plena vai muito além do voto. É preciso se mover pelas cidades para participar de encontros, audiências públicas, manifestações e todo tipo de atividade política. O mesmo vale para tudo aquilo que compõe o substrato dos direitos sociais: acesso à educação, à saúde, aos serviços públicos, ao lazer.

A ascensão social e a igualdade de oportunidades, princípios fundantes do projeto lulista, demandam a universalização do direito à mobilidade. Será preciso encontrar soluções de financiamento e regulação do setor, na linha do Sistema Único de Mobilidade proposto por dezenas de entidades.

O custo de não fazê-lo pode ser, além de impedir a melhoria das condições de vida dos mais pobres, assistir à emergência súbita de novos ciclos de revoltas, motins, sururus e quebra-quebras.

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