Descrição de chapéu Governo Lula

Como Lula, em 664 dias, recuperou direitos políticos e voltou ao Planalto

Vinte anos depois de sua 1ª vitória, petista enfrentou disputa truculenta, marcada por fake news, redes sociais e violência

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Catia Seabra

Repórter especial da Folha, ganhou os prêmios Esso de jornalismo (2011), CNH e os internacionais IPYS (2012) e SIP (2014)

[RESUMO] Em 664 dias, Lula recuperou seus direitos políticos, arranjou um vice, enfrentou a campanha mais turbulenta de sua vida, armou ampla aliança eleitoral, casou-se, passou por cirurgia e volta agora ao Planalto, duas décadas depois de sua primeira vitória.

Manhã de segunda-feira, 3 de outubro. Na primeira reunião política do segundo turno eleitoral, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prevê uma vitória apertada contra o presidente Jair Bolsonaro (PL).

"Vamos ganhar por uma pequena margem, como se fosse comendo aquela gordurinha da picanha", brinca o petista, na tentativa de aplacar a ansiedade no núcleo da campanha.

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Lula em carreata da campanha na região metropolitana de Belo Horizonte - Marlene Bergamo - 22.out.22/Folhapress

Concorrendo pela sexta vez à Presidência da República, Lula repetia ali o tom motivacional da noite anterior, quando políticos, artistas e familiares acompanhavam, apreensivos diante de um telão, a divulgação do resultado das urnas.

Lula terminou o primeiro turno com 48,43% dos votos válidos, ante 43,20% de Bolsonaro. O petista precisaria de mais 1,8 milhão de votos para liquidar a fatura já no dia 2 de outubro.

Frustrada a pretensão de vitória no primeiro turno, o petista circulou entre os convidados acomodados em um auditório improvisado em hotel do centro de São Paulo. As pulseiras, distribuídas pela coordenação da campanha para controle de acesso ao candidato, eram reluzentes naquela noite, denunciando um desejo da comemoração que não aconteceu.

Antes de seguir para um breve discurso sobre um carro de som na avenida Paulista, Lula os tranquilizou. "Nós ganhamos [o primeiro turno]. Vamos vencer."

Um amigo lembra-se de ter ouvido essas palavras 20 anos antes, quando Lula obteve 46,44% dos votos, indo ao segundo turno contra o tucano José Serra (23,2%). Também naquela noite, 6 de outubro 2002, Lula se esforçou para acalmar aliados mais angustiados. Era sua quarta disputa presidencial, a primeira que venceu.

As semelhanças com 2002 não vão muito além. Para amigos, Lula percorreu uma trajetória bem mais acidentada em 2022 do que há duas décadas. Diante da truculência bolsonarista nas redes e nas ruas, ele chegou a classificar como "um luxo" a histórica troca de "caneladas" com os tucanos.

A tensão esteve presente dentro e fora do QG da coligação Brasil da Esperança. Antes relutante, Lula foi convencido a usar colete à prova de balas em atividades públicas, enquanto os apoiadores eram submetidos à rigorosa inspeção na entrada de atos políticos, incluindo uso de detectores de metais.

Momentos difíceis afligiram o próprio núcleo da campanha. Um deles na semana do feriado de 12 de outubro, quando pesquisas apontavam uma redução da vantagem sobre Bolsonaro após a veiculação de propaganda mais agressiva, como a que associava Bolsonaro ao canibalismo.

Coordenadores da campanha travaram duro debate sobre a eficácia dessas peças publicitárias, lançadas como um contra-ataque à campanha bolsonarista. Por fim, prevaleceu a tese de que Lula deveria retornar à linha propositiva.

A revelação dos planos do ministro da Economia, Paulo Guedes, de desvincular salário mínimo e aposentadoria da inflação em um segundo mandato de Bolsonaro também ajudou a reconduzir o debate ao campo das propostas.

Aos 77 anos, Lula também teve que se moldar às novas ferramentas _ inexistentes 20 anos atrás. Sob influência do deputado federal André Janones (Avante), aderiu às lives, modelo ao qual tanto resistia.

Em abril de 2022, o petista também experimentou a amplitude das redes sociais. Durante um debate com ex-integrantes do Parlamento Europeu, ambientado em uma sala da Fundação Perseu Abramo e promovido pela alemã Friedrich Ebert, defendeu a discussão do aborto como questão de saúde pública.

Transmitida ao vivo, a cena viralizou. Foi munição dos bolsonaristas na campanha ao ponto de ele ter que se declarar publicamente contra o aborto no Flow Podcast. Outra derrapada que invadiu as redes bolsonaristas: sabatinado pelo apresentador Ratinho, Lula se referiu a Bolsonaro como "ignorante" e associou esse termo ao "capiau do interior de São Paulo".

Refratário à exploração da religião em campanhas eleitorais, Lula se rendeu à pressão para elaborar uma carta endereçada aos evangélicos —o documento, contudo, só foi divulgado 11 dias antes das eleições.

Também avesso a visitas a templos religiosos durante disputas eleitorais, Lula acabou convencido a se reunir com representantes da Igreja Católica em resposta à difusão de fake news associando-o ao satanismo.

Ex-presidente do Instituto Lula e um dos coordenadores da campanha, Paulo Okamotto justifica as decisões em temas religiosos. "Já faziam fake news contra nós nos templos, mas com as redes isso foi multiplicado por cem", afirmou.

O novo modo petista de fazer campanha também decorreu de maior concentração de poder Lula sobre o PT. Para não contrariá-lo, processos internos foram atropelados, como o que, tradicionalmente, debateria a indicação do ex-tucano Geraldo Alckmin (PSB) para a vice da chapa.

Em 2002, o empresário José Alencar, vice de Lula, foi vaiado durante convenção nacional do PT e chegou a ter seu nome, preliminarmente, rejeitado em meio a uma acalorada discussão partidária. Em 2022, houve apenas uma reunião virtual para aprovação de Alckmin, apesar dos apelos petistas para que fosse presencial.

Há 20 anos, Lula dividia o poder interno com outros fundadores do PT. Chamado de comandante, o ex-ministro José Dirceu exercia forte liderança. Hoje, está alijado do centro decisório.

Na campanha de 2002, as diretrizes eram definidas por um grupo, apelidado de Otan, que incluía Luiz Gushiken, Antonio Palocci e Aloizio Mercadante, além de Dirceu. Na disputa deste ano, era Lula quem dava as cartas.

Na primeira eleição do petista, o marqueteiro Duda Mendonça não ditou apenas a comunicação da campanha. Mas também a repaginação do candidato, do corte do cabelo ao terno, passando pelo tom de voz do candidato.

Vinte anos depois, o publicitário Sidônio Palmeira repartiu essa tarefa com o deputado Rui Falcão e o prefeito de Araraquara, Edinho Silva. De abordagem mais sutil, ambientou o estúdio de gravações com a bibliografia de Lula na cadeia, além de duas fotos do petista: uma ao lado do Papa Francisco e outro ao lado de Janja, sua mulher. .

Nem sempre, contudo, Lula seguiu as recomendações do trio. Um exemplo foi a preparação para o primeiro debate presidencial, em 28 de agosto, promovido em parceria por Folha, UOL, TV Bandeirantes e TV Cultura.

Dizendo que tiraria de letra o confronto, Lula determinou que o treinamento ocorresse na sua própria casa, em meio à celebração do aniversário de sua mulher, a socióloga Rosângela da Silva, a Janja. A performance de Lula naquele debate foi criticada até mesmo por aliados.

Janja, por sua vez, tem exercido protagonismo, especialmente na área da cultura, papel bem diverso do desempenhado pela ex-primeira-dama Marisa Letícia, morta em 2017, que se dedicava a afazeres domésticos.

Ativa também nas redes sociais, Janja foi acomodada em uma sala ao lado da ocupada pelo marido no gabinete da transição, em Brasília. Ganhou, entre petistas, o apelido de Eva Perón brasileira. Uma de suas tarefas é a organização da festa da posse.

As memórias do cárcere também influenciaram no desenho dessa versão Lula de 2022. Tanto na montagem da equipe de campanha como na composição ministerial, ele privilegiou colaboradores que permaneceram ao seu lado nos 580 dias de prisão em Curitiba. Segundo relatos, até cedeu aos apelos lacrimosos de amigos que buscaram assento na Esplanada dos Ministérios.

Lula levou reminiscências para a campanha. Carcereiro na Superintendência da Polícia Federal do Paraná, o agente Paulo Rocha Júnior, o Paulão, atuou na segurança do candidato. O advogado Luiz Carlos Rocha, o Rochinha, que o visitava diariamente na prisão, acompanhou Lula nas viagens ao longo da campanha. Um aliado afirma que os manter por perto é uma forma de não esquecer o passado.

Solto em 8 de novembro de 2019, Lula duvidava da chance de concorrer à Presidência. Em fevereiro de 2021, chegou a sugerir que o ex-prefeito Fernando Haddad, agora seu futuro ministro da Fazenda, se lançasse candidato ao Palácio do Planalto.

"O presidente Lula não tinha recuperado os direitos políticos e estava me pedindo para colocar o bloco na rua. Eu disse: ‘Do mesmo jeito que o senhor achava que seria candidato em 2018 e eu achava que o senhor não seria, acho que vai ser candidato em 2022’", contou Haddad durante reunião com empresários.

Na tarde de 8 de março de 2021, porém, Lula recuperou seus direitos políticos após o ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), anular todas as decisões proferidas contra ele.

Desde então, 664 dias separam essa decisão da volta ao Planalto. Nesse período, Lula conquistou um vice, conduziu a costura de uma ampla aliança eleitoral, concedeu entrevistas a rádios do interior, viajou ao exterior, casou-se, foi emboscado por bolsonaristas, participou de lives, foi sabatinado, fez comícios, enfrentou Padre Kelmon, pulou freneticamente sobre carros de som, passou por cirurgia...

Na ausência de articuladores credenciados para a negociação com o Congresso, Lula teve ainda que se dedicar pessoalmente à imbricada montagem de seu ministério, incluindo nele o exigente centrão. O desenho final foi anunciado a apenas três dias da posse. Mas a escalação da equipe consumiu até a véspera do Réveillon.

A um amigo, Lula confidenciou: "Estou exaurido".

"Mas animado", acrescentou.

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