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Bruno P. W. Reis

Lula 3 dependerá mais que nunca de inserção internacional e elevação da renda

Integração regional mais sólida e novo ciclo de crescimento serão essenciais para presidente eleito concluir seu mandato e preservar ordem democrática

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Bruno P. W. Reis

Professor do departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

[RESUMO] Diante de um cenário externo turbulento e de forte clivagem no plano doméstico, sucesso do governo Lula e manutenção da ordem democrática no Brasil dependerão de boa inserção diplomática externa, com forte integração regional, e da perspectiva de retomada de elevação sustentada da renda

Não é todo dia que se lê notícia como a publicada pelo Washington Post em 23 de novembro, que nos informa que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL), presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara, tem mantido contato com o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump em Mar-a-Lago, resort de luxo na Flórida, para —não há outra palavra— conspirar contra o funcionamento das instituições brasileiras.

Inusitada que seja, porém, a notícia não chegou como surpresa: desde os primeiros dias de novembro o comentarista Tucker Carlson já havia dado à Fox News a primazia do alinhamento de um grande veículo de mídia aos manifestantes nas estradas e nos quartéis brasileiros, endossando a plausibilidade das alegações falsas levantadas por círculos bolsonaristas contra a vitória de Lula.

Eleitores de Lula durante discurso da vitória do petista, na avenida Paulista - Zanone Fraissat -30.out.22/Folhapress

Ver colunista da Fox News assumir a linha de frente da contestação a Lula no plano global é o tipo de evento que faz cair muitas fichas. Assim como a população dos Estados Unidos teve de se habituar a ouvir indefinidamente que Barack Obama é muçulmano e não nasceu no país, que a eleição de Joe Biden foi roubada etc., saibamos desde já que vamos ouvir ladainha parecida ao longo de todo o próximo governo de Lula.

Os destinos de um país nunca se definem inteiramente dentro de suas fronteiras. Em nosso caso, porém, caberá nos perguntarmos até que ponto toda a deterioração política da última década, desde 2013 até hoje, não encontrará suas raízes mais profundas nesse jogo que a Fox ajuda a vocalizar, dada a homologia formal com várias crises pelo mundo afora no mesmo período: movimentos locais com dinheiro e simpatia externa; violência tópica inusitada em manifestações até ali usualmente pacíficas; uso estratégico das redes com promoção de novos atores online e por aí vai.

Nesse cenário, Bolsonaro nem será necessariamente o principal inimigo da democracia a ser batido no Brasil, mas talvez apenas o cavalo em que inimigos bem mais relevantes terão resolvido circunstancialmente apostar.

E nem se trata necessariamente de governos externos, mas de interesses privados que, grosso modo, tendem a contrapor-se à institucionalidade multilateral global, reunida em torno do sistema ONU, com alianças governamentais mais ou menos flutuantes ao sabor do pêndulo eleitoral de cada país.

Lula é um popstar do multilateralismo, talvez sem rival com carisma pessoal comparável, ainda que fale em nome de um país relativamente periférico, de peso econômico mediano, como o Brasil.

Mesmo quando desafia o sistema a mudar, Lula o faz de dentro, interpelando-o a novas políticas, talvez, mas sempre dentro da linguagem e dos meios institucionais vigentes no sistema internacional.

Ilustração recente pode ser encontrada no jogral entre Lula e António Guterres, secretário-geral da ONU, na defesa do repasse de US$ 100 bilhões de dólares a países pobres, firmado em 2015 na COP de Paris para a redução de emissões de poluentes.

A agenda ambiental é moeda de troca incontornável, e Lula parece ciente de que sua estabilização interna dependerá, talvez mais que nunca, de boa inserção diplomática externa.

Ele precisa jogar dentro da institucionalidade multilateral, reforçando sua posição com alianças transversais Sul-Sul que evitem deixar o Brasil inteiramente dependente dos humores dos países centrais, eles próprios relativamente instáveis neste momento. Nada que precise ser muito diferente da fórmula Lula-Amorim dos anos 2000 —salvo, talvez, um pouco mais de foco quanto a prioridades.

Enquanto durar o mandato de Joe Biden, Lula deverá ter no governo dos Estados Unidos um aliado natural. Mas não pode se dar ao luxo de contar com isso para além de 2024 —se é que poderá mesmo contar até lá.

Uma reativação da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), reafirmando suas prioridades originais de cooperação nas áreas de defesa e infraestrutura, agora talvez legitimadas mais plenamente por metas ambientais, poderá servir tanto para fortalecer a dinâmica econômica regional quanto para aumentar a gravitação geopolítica específica do Brasil, como beneficiário estratégico natural dessa cooperação, qualquer que seja a orientação programática do governo de plantão.

A integração regional é um caminho natural, ainda insuficientemente explorado, para um novo ciclo de expansão da economia brasileira e sul-americana. O país precisa intensificar seus compromissos internacionais, até para lastrear em termos econômicos e diplomáticos sua ordem constitucional doméstica.

Isso, contudo, não precisa se dar por atrelamento subordinado a uma potência que tem deixado claro, há um século, que suas prioridades residem em outras partes do globo. Há muito por fazer na articulação Sul-Sul, mais ainda na integração regional com a vizinhança sul-americana, em um momento em que o Brasil precisa cacifar-se junto à institucionalidade multilateral do sistema ONU.

No plano doméstico, dado o anti-institucionalismo predatório do governo que já vai tarde, Lula hoje lidera uma coalizão que tem seu traço mais saliente na defesa da ordem constitucional democrática.

A clivagem política que daqui se projeta para o Brasil, portanto, opõe uma coalizão de centroesquerda, institucionalmente conservadora, hoje liderada por Lula, a uma coalizão de direita institucionalmente iconoclasta, por enquanto ainda liderada pelo extremista Jair Bolsonaro.

Essa é uma característica peculiar ao autoritarismo de inclinação fascistoide: ele embrulha sua agenda regressista e intolerante em uma retórica revolucionária, de rechaço às instituições vigentes —de onde resulta sua peculiar brutalidade, seu culto à violência e às armas.

A ordem constitucional de 1988 e, com ela, nossa democracia foram salvas em outubro por vários dos estratos sociais mais vulneráveis, situados próximos à base da pirâmide social: a população de renda mais baixa, os negros, as mulheres, as populações indígenas remanescentes.

Mas não nos iludamos. Isso não se deu por apego intrínseco dessas camadas da população ao status quo institucional, e sim pela memória muito concreta de ganhos tangíveis e políticas de proteção obtidos na primeira passagem de Lula pela Presidência.

Em um país como o Brasil, o apego da população à manutenção da ordem institucional será caracteristicamente baixo, e só se manterá enquanto durar uma expectativa plausível de ganhos de bem-estar.

O governo Lula está, portanto, obrigado a entregar melhorias de bem-estar para a população, ou dificilmente completará seu mandato, pelo menos em condições de influir na própria sucessão. E a tarefa, se nunca foi fácil, ainda será dificultada pela política de terra arrasada e a predação do estado levadas a cabo pelo antecessor.

Reconheça-se que os resultados obtidos na primeira passagem de Lula pela Presidência sugerem que há espaço para conquistas sociais concomitantes à melhoria da situação fiscal do estado. Todavia, o efeito requer habilidade e prudência no manejo da política econômica, já que as conquistas sociais dependerão da sustentabilidade a longo prazo das políticas adotadas.

Críticos céticos sempre pontuam que as conquistas sociais do governo Lula foram beneficiadas por um ciclo favorável no preço das commodities que exportamos. É justo reconhecer, porém, que nem tudo foi tão tranquilo na conjuntura internacional daquele tempo, e houve também considerável proatividade fiscal, sobretudo nos primeiros anos, com Palocci na Fazenda.

Para ganhar oxigênio nesse front, seria oportuno, agora, indicar a superação de certo voluntarismo negacionista no plano fiscal que passou com o tempo a integrar o discurso governista do PT, sobretudo no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.

Para o sucesso da política econômica, muito mais que superávits permanentes, é importante que se sinalize a sustentabilidade fiscal de médio prazo pela qual governos logram rolar suas dívidas em prazos mais longos e juros declinantes.

E não há razão pela qual governos de esquerda tenham de rejeitar agendas proativas no plano fiscal, até porque não foi a esquerda quem construiu o estado brasileiro —e há muitas transferências, isenções fiscais e muitos subsídios que concentram renda e sustentam privilégios no país.

De 1993 a 2013, o Brasil viveu os 20 anos mais pacíficos, estáveis e construtivos de sua história política. O período propiciou ganhos importantes em vários planos, até mesmo na projeção diplomática do país. Mas testemunhou também um processo peculiarmente intenso de desindustrialização precoce, que tem pesado sobre os esforços de expansão da renda per capita nas últimas décadas.

Quase 30 anos depois do Real, ainda não aprendemos um caminho não inflacionário para uma indústria nacional, mas alguma reindustrialização provavelmente será necessária para que possamos sustentar ganhos de bem-estar por intermédio de um aumento na produtividade do trabalho.

Para tanto, talvez uma intensificação da integração regional em infraestrutura e defesa, com os olhos no meio ambiente, possa produzir dividendos tangíveis para o país, tanto no lastreamento internacional da institucionalidade democrática quanto na constituição de base geopolítica para um novo ciclo de crescimento.

Elevação da tração internacional do Brasil ancorada em integração regional crescente, com criação de espaço (até fiscal) para crescimento econômico regional, lastreando perspectivas de retomada de uma elevação sustentável da renda per capita. Coordenar e articular politicamente as várias frentes implicadas sempre será desafiador.

Embora pareça possível em tese, tudo isso só será viável se o "Partido da Constituição" que venceu (apertado) em outubro permanecer coeso, num governo de frente ampla, com efetiva concertação e sincera abertura ao compromisso entre os atores que saíram juntos em defesa da democracia que herdamos de 1985. Ou não haverá lastro doméstico para resistir à guerra de fricção conduzida pela Fox News.

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