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Guilherme da Silva Machado

Conceito de ficção para qualificar bolsonaristas é equivocado

Apoiadores do presidente mostram que não existem realidades paralelas nem limites à realidade

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Guilherme da Silva Machado

Professor de cinema e mídias na Universidade de Poitiers, França

[RESUMO] Discurso de que bolsonaristas vivem em um universo paralelo, de tom cinematográfico, demonstra uma concepção pobre da ficção, assim como um desconhecimento de sua interação com a política. Sendo o cinema um fator determinante na construção de realidades sociais, precisamos de novas e múltiplas ficções (e relações) para combater o neofascismo brasileiro.

Nos últimos meses, tenho ouvido falar repetidamente de "realidades paralelas" de grupos políticos no Brasil como "realidades cinematográficas". Movidas por narrativas ficcionais, figuras contrafeitas, encenações patéticas e outras mentiras audiovisuais, essas ditas pseudorrealidades mostrariam que "eles" e "nós" não vivemos no mesmo planeta, ou melhor, que "eles" vivem uma ficção.

Assim, quem vive em terra plana está alienado da "verdadeira realidade", entranhado no artifício das mitologias políticas, nos simulacros reacionários difundidos pelas imagens que pintam abusadamente o fascismo de verde e amarelo.

Imagem da série 'Hollywood', da Netflix - Reprodução

Esse discurso decorre de uma concepção pobre da ficção, da cinematográfica em particular. Se a ficção fosse o oposto da realidade, então a imissão relativamente recente do cinema na política (pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial) marcaria o ponto a partir do qual a realidade teria sido definitivamente abandonada em favor da ficção na orientação política dos cidadãos.

As imagens em movimento (amadoras ou profissionais) por meio das quais inúmeros eventos (políticos ou não) no país são atualmente vivenciados seriam indubitavelmente a causa do nosso triste distanciamento da realidade. Feliz ou infelizmente, a política nunca andou distante da ficção —bem antes da febre moderna das imagens, mulheres já haviam sido oficialmente caçadas em razão de narrativas misóginas esdrúxulas e não houve revolução que não tenha sido primeiro preparada na literatura.

Tanto o fascismo quanto o capitalismo liberal e o socialismo devem sua ancoragem na realidade às ficções que garantiram —e garantem— sua consistência neste mundo.

De maneira mais fundamental, é preciso notar que as experiências cinematográficas tornaram-se parte da experiência política (é o que, desde os anos 1930, notava Walter Benjamin). Isso requer que reconheçamos as produções cinematográficas (nas quais cabe hoje incluir toda produção audiovisual, de Hollywood ao YouTube) como constituidoras das realidades sociais.

Por realidade social, entende-se toda forma de relação de indivíduos humanos entre si e com o ambiente no qual eles evoluem, o que inclui também os agentes não humanos, animais, plantas e minerais, assim como os artifícios técnicos que compõem os ecossistemas políticos.

O cinema nada mais é que uma máquina de configuração das realidades sociais. Enquanto tal, ele dá forma a relações que podem ser reencontradas fora dele, fora das "imagens", em contextos que reconhecemos como "reais".

Assim, é fácil perceber como certas formas de relação social a que assistimos nos filmes tendem a se reproduzir em outros contextos, sejam "reais" ou "cinematográficos": a diferença entre esses termos tende a se atenuar à medida que as formas do cinema pervadem os nossos meios de interação com o mundo.

Um exemplo bastante claro dessa inseparabilidade de ficção cinematográfica e realidade é a maneira como muitos de nós vemos, imaginamos e, por vezes, contamos com as ações policiais. A atividade policial, por ser social, estabelece relações entre humanos e artifícios técnicos.

Entre essas relações, algumas delas podemos considerar desajeitadas ou desenvoltas, podem ser intoleráveis ou, ao contrário, belas, autênticas e empolgantes. Os filmes, sem dúvida, dão forma a relações (por exemplo, entre o corpo dos atiradores, as armas e o corpo das vítimas) que, no contexto do cinema, nos levam a ter certas reações emocionais.

Um caso conhecido é a perseguição automobilística, em que a montagem cinematográfica, primeiramente oscilando entre a soberba destreza do criminoso em fuga e a obstinação do condutor militar, termina com um plano geral das viaturas e dos helicópteros bloqueando o fugitivo e o obrigando a se render diante dos poderosos fuzis policiais.

Cenas como essa são comuns nos filmes de ação, mas estão se tornando frequentes também em outros contextos, como a propaganda institucional. Quem já visitou o canal da Polícia Rodoviária Federal no YouTube sabe que uma de suas estratégias fortes de comunicação para o recrutamento de jovens policiais é a imitação da estética de filmes hollywoodianos.

A roteirização e a encenação de seus vídeos tomam claramente como modelo as situações e os personagens típicos dos filmes de ação comercialmente bem-sucedidos, assim como as técnicas de composição características do gênero (close-ups, câmeras lentas, vistas aéreas, montagem rápida, música instrumental), associadas a formas do documentário (depoimentos, voz off), conferem veracidade às situações retratadas. A produção cinematográfica serve de modelo à comunicação institucional.

Mais que isso, as ficções cinematográficas da atividade policial, longe de se contraporem à realidade, atuam na sua fabricação. Um incidente ocorrido em 2020 nos arredores de Porto Alegre serve aqui de exemplo: ao localizar seu caminhão que havia sido roubado, um cidadão decide perseguir os supostos criminosos, ao mesmo tempo que grava um vídeo em que afirma, enfurecido, ter chamado a polícia e estar à espera de uma intervenção por terra e por ar.

A câmera apontada para a frente do carro em movimento deixa ver alguns metros adiante o referido caminhão em uma rodovia.

Subitamente, surgem três policiais armados que correm em direção ao caminhão, apontando seus fuzis. Cena impressionante, que os canais de televisão locais não deixariam de incluir em suas reportagens sobre esse "fait divers".

O que teria sido uma simples notícia de furto teve, assim, sua importância relevada graças às imagens amadoras capazes de reativar, diante da "realidade registrada", emoções aprendidas diante dos filmes ficcionais.

No entanto, o que chama a nossa atenção nesse vídeo amador é a reação do proprietário do veículo no momento da ação policial.

À vista dos guardas com seus fuzis, esse homem não pôde conter uma expressão visceral de deslumbre. Aos gritos, ele repete vezes sem conta ante a demonstração do poder policial "que coisa linda! que coisa linda!", expressão mais facilmente associada à visão de obras de arte que a uma ação policial.

Se um "fato" como esse pareceu digno de gravação em vídeo, isso se deve à sua aparência propriamente cinematográfica.

Na atuação desses policiais rodoviários, havia não somente a crua "realidade" de uma abordagem violenta, mas a realidade plena de afetos de um evento ao mesmo tempo factual e ficcional, emocionante e "lindo" em sua semelhança com uma cena cinematográfica.

Quando reivindicamos os "fatos" contra o bolsonarismo, os bolsonaristas nos dão uma lição de antropologia que teimamos em ignorar (sobretudo quando "eles" retorquem que somos "nós" os alienados): não existem realidades paralelas nem limites à realidade. Agentes da PRF já mostraram que até mesmo sufocar um homem no porta-malas de um carro pode parecer aceitável, senão emocionante.

Quando nos tornamos insensíveis à nossa própria destruição (seja aniquilando nossos semelhantes, seja destruindo o nosso ambiente de vida), isso não se deve ao fato de havermos abandonado a realidade. Isso se deve à dominação de formas de relação com o outro (seja ele humano ou não humano) que tornam "lindo" ou "apropriado" o que outras formas de relação poderiam revelar como "repugnante" ou "intolerável".

O desenvolvimento de novas e múltiplas formas de relações sociais é, assim, a única alternativa ao bolsonarismo. Esse desenvolvimento depende do investimento nos meios de criação, mas também do reconhecimento de que o planeta dos bolsonaristas não é diferente do nosso.

Ele é composto das mesmas formas de relação que agitam nossas vísceras diante dos filmes. Ele é tecido das mesmas práticas que definem as nossas instituições.

Em vez de paralela à realidade, a ficção cinematográfica é um campo de exercício da imaginação, a mesma imaginação com a qual fabricamos a realidade. É preciso que haja mais e não menos ficção para combater o neofascismo brasileiro.

Em uma época em que cada vez mais fatos sofrem configurações cinematográficas (nos múltiplos formatos do cinema), é urgente que haja criações que movimentem as formas cinematográficas dominantes de nossas relações sociais.

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