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Marcos Ramos

Mercantilização influencia samba-enredo e elitiza escolas

Adoção de estratégias empresariais contribui para transformar Carnaval em festa popular sem povo

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Marcos Ramos

Professor visitante da Universidade Nacional da Colômbia. Autor de "Balaio de Gato" e "Anatomia da Elipse"

[RESUMO] Escolas de samba, criadas como refúgio de comunidades afro-diaspóricas, se tornaram peça central da mercantilização do Carnaval. O processo atual de escolha de sambas-enredo por agremiações, em que concorrentes podem investir mais de R$ 100 mil, ofusca o papel do compositor, impulsiona o domínio de investidores e leva à gentrificação da cultura popular.

Diante da destituição do nome e do corpo, das rupturas afetivas, da desterritorialização, da proibição religiosa, linguística e cultural causadas pelo colonialismo e pela escravidão, as comunidades afro-diaspóricas reinventaram um mundo. O Carnaval de avenida e as escolas de samba são alguns de seus exemplos mais brilhantes e impactantes.

Uma pessoa que tenha mais de 40 anos seguramente recorda que os discos de samba-enredo eram uma constante nas salas de famílias brasileiras até os anos 1990. Era comum, nesse contexto, a familiaridade com compositores como Silas de Oliveira, Aluísio Machado, Noca da Portela e com intérpretes como Jamelão, Dominguinhos do Estácio e Neguinho da Beija-Flor.

Nascer do sol durante desfile de Carnaval do Rio de Janeiro, na Sapucaí - Mauro Pimentel - 20.fev.23/AFP

Hoje, contudo, salvo aqueles que trabalham diretamente com o Carnaval e um nicho muito limitado de amantes do gênero, poucos reconhecem compositores contemporâneos como André Diniz, Cláudio Russo e Luiz Carlos Máximo ou intérpretes como Wander Pires, Igor Sorriso e Tinga. Isso não significa que o Carnaval tenha perdido sua relevância ou diminuído —em termos numéricos, a festa cresceu—, mas que sua popularidade se enfraqueceu.

A revolução provocada pelos serviços de streaming é, sem dúvida, um dos fatores que tiveram influência nesse processo. As plataformas, ao ampliar o acesso à música, diluíram a centralidade de gêneros tradicionais. Essa dinâmica é ainda mais complexa em razão das estratégias de marketing, que frequentemente relegam tradições e se ocupam de gêneros descartáveis em sua incessante busca por novidades e rentabilidade.

Também houve mudanças paradigmáticas na relação das novas gerações com o patrimônio musical. O samba-enredo, embora seja um patrimônio cultural, enfrenta uma relativização de seu valor simbólico diante de um público mais jovem e globalizado que constrói suas referências culturais mais heterogeneamente.

Além disso, a própria natureza do carnaval sofreu metamorfoses, e esse é um ponto fulcral. O espetáculo dos desfiles se tornou tão grandioso que, em muitos casos, se sobrepõe à própria música, reconfigurando a hierarquia de elementos que compõem a festa.

As escolas de samba, originadas como refúgios para reconstruir um mundo fragmentado por experiências de racismo e exclusão, enfrentam desafios desde que a busca por lucro as converteu em commodities. Esse fenômeno está longe de ser uma exclusividade do presente, mas a mercantilização parece ter encontrado pouco ou quase nenhum obstáculo recentemente.

Em uma reviravolta tão irônica quanto trágica, muitas escolas de samba ou, ao menos, setores significativos delas, deixaram de resistir a esse avanço comercial. Em vez disso, assimilaram esse processo, se tornando não apenas cúmplices, mas peças centrais dessa transformação.

Provavelmente, as dinâmicas atuais que determinam a escolha dos sambas-enredo representam o aspecto mais crítico dessa metástase. Uma das formas de combater esse modelo é abrir a caixa-preta do samba.

O modelo vigente de seleção do samba-enredo de uma agremiação chega a durar oito semanas. Para cada semana de eliminatória, a parceria que assina cada samba concorrente paga em torno de R$ 2.000 para o intérprete que o defenderá na quadra da escola.

Para que o samba tenha mais chances de vencer, é preferível contratar intérpretes das escolas do grupo especial, o que naturalmente é mais caro. Para além do valor por apresentação, os intérpretes cobram uma porcentagem caso o samba seja escolhido pela escola e, caso a escola se consagre campeã do Carnaval, também exige participação nos lucros.

Isso, no entanto, é apenas a ponta do iceberg. A disputa vai além da necessidade de um intérprete renomado e requer também uma torcida preparada e vibrante. Nesse cenário, surgiu um profissional contratado pelos proponentes dos sambas para mobilizar torcidas durante as competições nas quadras. São torcidas de aluguel. Estima-se que uma torcida de 50 pessoas entoando o samba durante uma apresentação possa custar R$ 2.500.

A magnitude sonora de uma torcida entusiasmada cantando o samba pode ser decisiva, gerando a impressão de potencial de sucesso na avenida. Apesar de sua natureza fabricada, essa estratégia molda percepções. Em uma transmissão ao vivo entre compositores de samba-enredo, organizada pela Rádio Arquibancada e disponível no YouTube, foi revelado que uma parceria proponente investiu cerca de R$ 60 mil apenas em torcidas alugadas durante uma disputa neste ano.

Além disso, os grupos responsáveis pelos sambas concorrentes têm a obrigação de adquirir ingressos destinados às torcidas contratadas, que chegaram a R$ 80 neste ano. Evidentemente, muitas escolas têm grande interesse nas parcerias que trazem mais torcedores, mantendo-as por mais tempo na competição.

Na transmissão feita pela Rádio Arquibancada, um dos compositores afirmou que sua parceria gastou cerca de R$ 24 mil somente com ingressos nas eliminatórias. Esse montante se refere a apenas um entre mais de 20 sambas que participam da competição.

Adicionam-se a esse montante os investimentos na gravação do samba em estúdio, nos fogos de artifício lançados durante as etapas eliminatórias, nos trajes e emblemas que singularizam as torcidas e nas bebidas disponibilizadas ao público antes, durante e depois das exibições. Atualmente, a soma de todos esses gastos pode ultrapassar R$ 140 mil, sobretudo no Rio de Janeiro, mas processo semelhante se observa em São Paulo.

Nesse cenário, é nítido que o papel do compositor tem sido ofuscado pela presença dominante do investidor do samba. Enquanto este ganha mais espaço e influência nas escolas de samba, as parcerias se alteram. Em vez de sambas assinados por duas ou três pessoas, surgem listas com até dez supostos compositores.

Quando a mercantilização ganhou força, vários grupos de compositores viram seus gastos crescerem e, consequentemente, seus lucros encolherem. Isso desencadeou um movimento ainda mais complexo e predatório, com várias parcerias se unindo e formando oligopólios do samba.

Com essa união, embora fosse possível compartilhar os custos, a competição diminuía. Ainda que ganhar uma disputa de samba tenha se tornado, em tese, mais viável, o retorno financeiro para cada investidor foi diluído, dado o maior número de pessoas que assinam cada samba.

A resposta a esse desafio tomou um viés corporativo. Grupos consolidados buscaram aumentar seus lucros competindo em várias escolas. Essas fusões se transformaram em escritórios do samba e adotaram estratégias empresariais para maximizar seus retornos.

Por um lado, ocorreu uma elevação notória dos sambas a partir de 2012 que se conservou por quase um decênio. Por outro, a radicalização desse modelo neoliberal já demonstra impactos nas safras dos últimos carnavais. Entre muitos outros, um dos efeitos mais imediatos e nocivos dessa dinâmica é a gentrificação das culturas populares.

Considerando essa nova realidade, a presença de um compositor da comunidade nas competições se torna cada vez mais desafiadora. Paralelamente, a nova geração dessa comunidade encontra obstáculos cada vez maiores para se envolver totalmente nas celebrações.

Além das diversas questões que já distanciam o jovem do universo do samba, o custo de entrada nas quadras de samba se torna um fator decisivo. O resultado é nítido: as escolas de samba, gradativamente, estão evoluindo para serem entidades negras sem negros promovendo uma festa popular sem povo.

Ao ser questionada, uma escola de samba poderia alegar que o atual formato competitivo foi criado pelos próprios compositores e destacar que não há regras que obriguem a presença de cantores de grupos especiais ou torcidas organizadas.

Ainda que seja verdade, atribuir a responsabilidade apenas aos compositores simplifica uma questão multifacetada. A crescente comercialização do samba-enredo indica problemas mais amplos na organização das escolas de samba. Esse dilema é intrincado e exige soluções abrangentes.

É vital, por exemplo, reavaliar como os direitos autorais são repartidos. Sob a premissa de isenção fiscal, muitas escolas ficam com metade desses direitos, dividindo o restante entre grupos cada vez maiores de compositores e financiadores, que se veem obrigados a buscar alternativas.

No centro dessa discussão, está o questionamento do papel das escolas de samba em suas comunidades. A crescente desconexão com elas e a possível perda do caráter formativo das escolas podem conduzir a um futuro em que não apenas torcidas, mas também figuras tradicionais como as baianas sejam alugadas.

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