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Lô Politi

Diretora conta como recriou vida de Gal Costa no cinema

Cinebiografia sobre cantora chega às telas nesta quinta (12)

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Lô Politi

Cineasta e roteirista ("Jonas", 2016; "Alvorada", 2021; "Sol", 2022; "Meu Nome É Gal", 2023).

[RESUMO] Diretora narra descoberta de rumo dramático para retratar vida de Gal Costa em filme, partindo dos conflitos internos da cantora para expressar a potência que ela trazia em si e se desviar das concessões comuns do gênero de cinebiografia.

Qual o conflito de Gal Costa? Quais as grandes dificuldades que ela enfrentou? Qual sua falha trágica? Quem é antagonista de sua história? Quem a ajuda a andar para a frente?

Foram meses de conversa entre mim, Dandara Ferreira, diretora junto comigo, e Maíra Buhler, corroteirista, para criarmos o filme "Meu Nome É Gal", filme que estreia nesta quinta-feira (12).

Queríamos fazer uma cinebiografia que não se parecesse a uma cinebiografia. Um filme que fosse cinema, antes de ser uma biografia. Um roteiro cuja protagonista não fosse levada pela narrativa óbvia de uma cantora de sucesso: sua carreira e seus percalços. Queríamos uma narrativa levada pelo conflito interno da protagonista —porém, nossa protagonista é Gal Costa.

Cena do filme 'Meu Nome é Gal'
Sophie Charlotte interpretando Gal Costa em cena do filme 'Meu Nome é Gal' - Divulgação

Diziam para nós: as pessoas querem ouvir sua música, repassar sua vida. "As pessoas". A gente achava que "as pessoas" iriam gostar mesmo de entender de onde vem a enorme potência que é Gal Costa, a imensidão de uma personagem tímida que mudou o mundo ao seu redor "apenas" com a força de sua presença. Queríamos que a carreira, a trajetória profissional, os discos, as músicas que a gente ama tanto, viessem a reboque do que achávamos ser o ouro da nossa protagonista: o corpo, a atitude, a voz.

Mas como colocar de pé um roteiro levado por uma personagem tímida, reservada, introspectiva, que não expõe suas ideias pelas palavras, que não tem discurso formal, que não é racional?

Durante o processo de escrita, lembrei-me muito de um professor que tive anos atrás, José Carvalho, que, numa espécie de adequação dos termos explorados por Aristóteles, usava esses conceitos —physis, logos e pathos— para explicar o que, em oposição à narrativa clássica, desencadeou a dramaturgia moderna, contrapondo logos e physis, gerando pathos.

Por essa lógica, logos designa a razão humana, o pensamento que busca compreender a physis. Physis é pulsão de vida, é corpo, é presença. E pathos é emoção, é o que designa paixão —e ainda gera o termo patologia, o doente do pathos, o enfermo da paixão.

O enfermo da paixão. Gal. A pulsão de vida. Gal. O corpo, a presença, a voz. Gal.

Gal é mar tão profundo que chega a adoecer de suas próprias águas. Seria uma enorme simplificação dizer que o maior conflito de Gal foi a timidez. Embora não seja um conflito menor ou mais ordinário, a timidez, somente, não seria um problema do tamanho e da profundidade do conflito de Gal.

O medo, talvez? A insegurança? A ausência do pai? A dificuldade de lidar com uma mãe ao mesmo tempo libertária e superprotetora? Uma mãe que empurra a filha para frente com a mesma força que tenta protegê-la dos perigos do mundo —e que perigos o mundo oferecia no final dos anos 1960! Especialmente no Brasil da ditadura militar, que perseguia estudantes, jornalistas, políticos de esquerda e, claro, artistas que se posicionavam contra o sistema.

Foi justamente nesse caldeirão efervescente que Gal, tímida no nível máximo, buscou o caminho para ser o que sempre soube que seria: cantora. Gal direciona o medo para dentro, processando e somatizando o que para todos já era de fato muito assustador, mas, para ela, chegou a ser quase paralisante.

Gal de fato era tímida, reservada, tranquila. Quando chega ao Rio, os amigos (Caetano, Gil, Bethânia) já estão anos-luz à sua frente, embora pouco tempo tivesse passado desde que se despediram na Bahia.

Uma garota apenas tímida talvez recuasse diante do que o momento exigia dos artistas, em termos de posicionamento e atitude. Mas Gal era, sobretudo, corajosa. Ela ia, simplesmente. Farejava com intuição certeira para onde deveria ir, com quem deveria ir, e ia.

O corpo ia. Tímida? Sim. Com medo? Muito. Mas ia. Vencer o medo e a timidez não foi simples. Custou muito. Fisicamente, inclusive. Gal de fato adoeceu dessa paixão. Mas sempre no campo íntimo, para dentro do seu corpo, da sua physis, ao contrapor medo e coragem, timidez e atitude, reserva e compartilhamento.

Que personagem tão fascinante e tão impossível de se retratar, nos moldes do que conhecemos como estrutura dramática. Porque cinema também é physis. É corpo, presença e voz. Imagem e som. Mas roteiro é palavra. Discurso. Razão. Roteiro é logos.

Onde buscar esse logos necessário para o roteiro, sem cair na simplificação do óbvio? Sem cair no que é lugar-comum em inúmeras cinebiografias: uma cantora tímida chega na cidade grande sem dinheiro, mas com muito talento, luta para ser reconhecida, é rejeitada pelo sistema dominante, às vezes enganada por um empresário inescrupuloso, às vezes traída por um namorado interesseiro ou mulherengo, às vezes se refugiando em álcool ou drogas, mas seu talento excepcional supera tudo e ela acaba conquistando o sucesso.

Não, a gente não queria esse filme. Na verdade, ainda que quiséssemos, seria impossível construir esse filme. Nada disso aconteceu na vida de Gal, dentro do recorte de tempo que escolhemos ao iniciar o roteiro. Nosso logos teria que vir de algum outro lugar.

Mas veja que sorte: Caetano Veloso é logos. Se em Gal falta discurso, em Caetano sobra. Uma mente límpida e cristalina, como é a voz de Gal. Um ser racional com sensibilidade extraordinária. E justamente é ele, Caetano, o grande parceiro de Gal em toda sua trajetória de vida, do começo ao fim, para muito além da carreira.

Depois de muitas versões de roteiro, percebemos o óbvio. Onde Gal gesta e incorpora essa potência é justamente ao lado de Caetano (e, num outro nível de vínculo, de Gilberto Gil e os outros companheiros daquele final dos anos 1960), no momento crucial da maior revolução musical, comportamental e cultural que o Brasil já passou: a tropicália.

Nossa Gal, a Gal do nosso filme, é a Gal da tropicália. Esse momento mágico em que ela fura a bolha da timidez e se transforma na estrela inconteste daquele momento, a voz da tropicália, a incorporação perfeita da atitude necessária para enfrentar aqueles anos tensos e repressores. Isso tudo sem discurso, sem palavra, sem logos.

Se o roteiro fosse sobre Caetano, o desafio seria outro. Provavelmente teríamos que explorar o que quebrasse o discurso, enevoasse o pensamento cristalino, inundasse de physis tanto logos. Nesse sentido, no sentido do roteiro, Caetano se coloca como um personagem que desafia, que provoca Gal, ao mesmo tempo que também é um personagem dinâmico para ela, aprofundando seus conflitos e acelerando suas transformações, como um espelho mágico que reflete a imagem da pessoa alguns passos à frente, um futuro que está logo ali, ao dobrar uma esquina.

Uma figura que é ela mesma, mas daqui a pouco, virada ao avesso. Uma simbiose improvável e perfeita, uma completude, uma transcendência.

Como disse Caetano em nossa pesquisa: "A gente não tem uma conversa muito desembaraçada. É uma coisa que paira, o diálogo real se dá num espaço elevado sublime —diálogo aqui é só uma sombra".

No álbum "Recanto", de 2011, resgate e confirmação dessa alma espelhada que os dois cultivaram por toda uma vida, há essa frase na música "Recanto Escuro": "É fácil mudar o mundo, nem tem que pensar".

Essa é a nossa Gal. A Gal tropicalista, que Caetano resgata no disco. A Gal que se deixa atirar com a inteligência de escolher Caetano e Gil como setas. A flecha que estica o arco deles, que entrega para o movimento o que já é enorme dentro dela. A tropicália, e o próprio país, ganha a voz e leva o corpo, a atitude inerente ao corpo, a expressão de um mundo num gesto, num olhar. E o que dizer da voz, em si? Como diz Bethânia no filme: o cristal.

No entanto, o mesmo princípio que une, gera conflito. Gera pathos, principalmente interno que, no caso de Gal, chega a ser de fato patológico —que não à toa deriva de pathos, assim como paixão, a outra força que une os dois, em lugares diferentes de expressão.

Basta pensar na complementaridade de Caetano vociferando no Festival da Canção em "É Proibido Proibir", tomado pelo logos; e Gal encarando o público com raiva e atitude, tomada pela physis, no Festival da Record, em "Divino Maravilhoso".

Vejo uma semelhança brutal entre as duas cenas, que aconteceram com intervalo de poucos meses, em 1968. A paixão escorrendo pelo cérebro de Caetano em "É Proibido Proibir" e pelo corpo e voz de Gal em "Divino Maravilhoso".

Em seguida, voltando ao pathos de cada um, onde o conflito divide os dois, Caetano sai desse momento para a rua, literalmente. Anda pela cidade de São Paulo vestido da persona tropicalista, "encenando" o artista subversivo em exposição plena e ostensiva, custando a ele a própria liberdade. Caetano foi preso e exilado depois disso.

Já Gal sai da apresentação explosiva em "Divino Maravilhoso" para o quarto, onde permanece trancada por mais de um mês, sozinha, deprimida. Sem trocar de roupa, sem tomar banho, sem falar com ninguém. Foi demais para ela. Tanta dificuldade para furar a bolha, tanto esforço exigido dela, acabou por derrubá-la.

Gal só vem a ficar tranquila com tamanha força que sai de dentro de si, só consegue de fato se tornar natural e espontânea em cima de um palco, quando Caetano se afasta, quando o logos se exila em Londres e ela, toda physis, toda à vontade com seu pathos, se espalha em seu pós-tropicalismo, se deixa irradiar sobre o Rio de Janeiro, afirmando para quem quisesse ouvir que seu nome é Gal e ela pode ser exatamente o que é, fazendo enlouquecer a rapaziada nas dunas do barato em Ipanema ou atraindo uma multidão para o Fa-Tal, show que é a coroação dessa Gal que entra para a história da música brasileira como musa transformadora de uma geração, especialmente de mulheres.

A physis incorporou o logos. O corpo incorporou o discurso, a seu modo. Esse modo Gal. Único, transcendental. A pele transcende a alma. E a pele, como disse Paul Valéry em sua frase lapidar, é o mais profundo.

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