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Marcos Ramos

Álbum de Iara Ferreira discute a superação da cultura branca e masculina

"Verdeamarela" não se desvencilha do debate sobre brasilidade, mas rejeita conciliação construída pela branquitude

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Marcos Ramos

Professor visitante da Universidade Nacional da Colômbia. Autor de "Balaio de Gato" e "Anatomia da Elipse"

[RESUMO] O primeiro álbum solo de Iara Ferreira é uma busca pela identidade nacional. A artista aborda as contradições internas de um país diverso e seus conflitos, superando o hábito pacificador da sociedade brasileira, e transita por múltiplos estilos e ritmos do país, como samba de roda, ijexá e cururu, em uma estética que é poética, mas sobretudo política.

No último dia 30 de junho, a compositora e intérprete Iara Ferreira lançou seu primeiro álbum solo. O trabalho, intitulado "Verdeamarela", conta com o violão de Ney Souza Neto, a guitarra de Tom Cykman e a percussão de Carlinhos Ribeiro e reúne nove composições, uma delas assinada apenas por Iara e as demais em colaboração com Guto Wirtti, Ian Faquini, Bebê Krammer, Gabriel Geszti, Ney Souza e Silvia Duffrayer.

Há pelo menos dois horizontes de criação coexistentes e justapostos no álbum "Verdeamarela". O primeiro, em uma dimensão mais abrangente da obra, dialoga com o conceito geral e diz respeito à proposição de um afeto dirigido a uma certa brasilidade.

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Retrato de Iara Ferreira - Iara Ferreira no Facebook

Sem dúvida, brasilidade é um conceito vago e em disputa, mas que, de modo geral, pode ser definido como uma forma de explorar, analisar e definir o que significa ser brasileiro ou o que é, em última instância, o Brasil.

A questão foi fundamental para a criação estética no século 19, passou pelos modernistas paulistas nas primeiras décadas do século 20, por todos os ensaios sociológicos ou historiográficos escritos até os anos 1950 e chegou até aqui. Mais que um topos da literatura escrita e da canção, o esforço de pensar a identidade (ou a entidade, como quis o autor de "Macunaíma") tornou-se uma espécie de repetição sintomática desencadeada pelo trauma colonial.

No primeiro momento, esse trauma criou um recalque das culturas autóctones e afro-diaspóricas, mas, no segundo momento, tornou essas culturas commodities. De modo geral, ainda vivemos esse estágio de elaboração traumática, mas essa repetição sintomática em torno da busca por uma identidade nacional tem contradições internas que se revelam a partir das críticas, torções, modulações e inversões no seu próprio bojo.

O trabalho de Iara Ferreira se situa nesse lugar. Se, por um lado, "Verdeamarela" não escapa ao problema, em certa medida romântico, da identidade nacional, por outro lado, as canções assumem uma dimensão conflitiva alimentada por uma imaginação política pulsante, que, por princípio, rejeita a conciliação até hoje construída sob os termos da branquitude.

Provavelmente, as canções de Iara mais contundentes, nesse sentido, não estão no seu álbum solo —destacaria "Negra" e "Preta no Palanque"—, mas, de modo mais ou menos evidente, a dimensão do conflito aparece em várias canções de "Verdeamarela".

Mesmo quando a canção é uma homenagem, como no caso do ijexá "Katendê", dedicada ao mestre Moa do Katendê, brutalmente assassinado em 2018, sua própria razão de ser revela o conflito constitutivo de uma democracia que nunca se realizou plenamente.

Capa do álgum Verdeamarela, de Iara Ferreira. A arte tem fundo vermelho, e uma moldura dourada rebuscada enquadra um retrato da artista, que tem cabelos castanhos compridos. Peixes e frutas compõem o restante do espaço
Capa do álbum Verdeamarela, de Iara Ferreira (arte da capa: Estúdio Move) - Divulgação

A abertura do álbum ficou a cargo daquela que dá o tom ao trabalho, a faixa "Pai Brasil". Com o título alusivo a pau-brasil, a canção tem como preâmbulo a citação de um toque de berimbau que, junto a outros elementos do arranjo, evocam signos daquilo que se convencionou chamar de identidade brasileira.

Os versos que se seguem anunciam que a voz da canção é a do próprio Brasil. Apesar de a canção revisitar um tema bem conhecido da lírica brasileira —o esgotamento dos recursos naturais e a necessidade de preservação—, nela quem fala não é o homem, como de costume, mas o próprio território.

Tendo em vista o conjunto de referências e diálogos estabelecidos ao longo das músicas seguintes, parece interessante considerar que esse recurso criativo está a serviço de uma cosmovisão que desconhece linhas imaginárias que distinguem sujeitos e objetos, resguardando à natureza um lugar no segundo grupo.

O álbum "Verdeamarela" amplia ainda mais essa dimensão temática quando, na faixa "Curumim da Mata", solicita a um jovem indígena que convoque um feiticeiro ou que rogue, ele mesmo, uma praga para que o homem branco tenha um fim.

Mais que o extermínio material do homem branco, o que parece estar em jogo é a proposição do extermínio de um ethos branco e masculino. Morrer pelas mãos ou em função do feitiço de um indígena é uma possibilidade, se não de indigenizar-se no sentido antropofágico, pelo menos de dissidência da branquitude.

O tema da evocação dos poderes e saberes tributários a outras cosmovisões como possibilidade de inaugurar outras experiências é recorrente nas canções de Iara. Em "Dois Gumes", gravada no EP homônimo, parceria com Leonardo Freitas, por exemplo, Xangô, o orixá iorubano da justiça, responde ao apelo de um povo que roga também pela destruição de um certo modelo de mundo.

Além de "Curumim da Mata", a faixa "Xamã" também evoca os saberes dos povos da floresta e, dessa vez, ao estabelecer um diálogo com a obra "A Queda do Céu", de Davi Kopenawa e Bruce Albert, Iara descortina as matrizes conceituais que habitam sua escrita.

Outro horizonte de construção poética do álbum diz respeito à reescrita de um conjunto de topos da canção brasileira a partir de uma perspectiva crítica. Mesmo em canções que podem parecer à primeira audição despretensiosas, como "Rosalina Xique Xique", há um modo de concepção política do mundo que é basilar. A faixa, por exemplo, retoma a narrativa da migração sertaneja, amplamente revisitada no cancioneiro popular do século 20, retomando inclusive conhecidas imagens da seca e da dor.

No entanto, no interior dessa tradição temática, a canção de Iara estabelece contrapontos. Nela, o eu-lírico é tão diverso do conhecido Pedro Caroço, de Severina Xique Xique (Genival Lacerda), quanto do eu-lírico masculino encenado em outra famigerada canção que se debruça sobre a mesma narrativa, "Maria das Mercedes" (Djavan).

Se por um lado Pedro Caroço só está de olho na "boutique dela" e o personagem de Djavan nem sequer lembra o nome completo da namorada que deixou no sertão, na canção de Iara, a reelaboração do tema da saudade emoldurado pela necessidade do êxodo recria uma masculinidade possível revelando justamente a fragilidade e a sensibilidade que quase sempre se ocultam.

Mais do que a exigência da experiência sensível, o ato de compor canções exige certas habilidades técnicas. "Verdeamarela" tem os braços abertos e toca um território geográfico amplo e diverso. Do ponto de vista musical, isso exige composições que lidem com os diferentes pressupostos estéticos dos distintos gêneros visitados no álbum.

Dito de outra forma, compor um samba de roda, um ijexá ou um cururu requer lidar tanto com células rítmicas e instrumentações características quanto com estruturas de prosódias, versificação e vocabulário particulares. Nesse sentido, é notável a plasticidade técnica que compõe a aparente simplicidade do refrão "Essa paixão é bicho de pinicar/ Que me bole-bole no peito e no calcanhar" ("Bicho de Pinicar"). A faixa seguinte se debruça sobre uma melodia complexa e tortuosa de Bebê Kramer.

O álbum terminar com a proposição radical de uma revolução pela sensibilidade. Depois de construir uma cascata de versos que subvertem imagens cotidianas, o desfecho de "Verdeamarela" é uma dobra sobre si. É ele mesmo (ou ela mesma) "o grão que se movia", "a revolução" ou pelo menos a proposição de uma trincheira que ainda entende a canção como um lugar privilegiado para o tensionamento das estruturas a partir de uma imaginação estética que é poética, mas sobretudo política.

As últimas palavras são dela: "De vez enquanto então chovia no sertão porque sentia/ Que a poesia era a farinha o pão palavra e oração".

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