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Rafael Grampá lança novo volume de Batman em Gotham paulistana

Quadrinista é o primeiro brasileiro a escrever e desenhar graphic novel de um herói desse porte

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Desenho do brasileiro Rafael Grampá para a série em HQ "Batman: A Gárgula de Gotham", em que recria o icônico herói Rafael Grampá/Reprodução

Filipe Vilicic

Jornalista, colecionador e pesquisador de HQs. É autor, dentre outros, dos livros "O Clique de 1 Bilhão de Dólares"(Intrínseca) e "O Clube dos Youtubers" (Gutemberg)

[RESUMO] Um dos principais quadrinistas brasileiros, o gaúcho Rafael Grampá se consolida no cenário mundial das HQs ao recontar história do Batman, dando um toque brasileiro a um dos heróis mais icônicos da cultura pop e fazendo de Gotham City, cidade do personagem, uma São Paulo mergulhada em violência e desigualdade. O primeiro de quatro volumes da graphic novel ficou entre os quadrinhos mais vendidos do mundo.

No meio da noite de 20 de junho de 2018, o quadrinista gaúcho Rafael Grampá despertou de um sonho agitado e foi direto para o computador, onde escreveu um poema com o título "A Gárgula de Gotham". Começa assim: "Gotham City, todo mal/ Corpo de becos e edifícios/ O sangue que flui em suas veias é apenas morte".

"Senti um chamado", conta. "Tive certeza de que um dia publicaria a minha história do Batman." Um ano depois, a editora americana DC Comics, que detém os direitos do herói, o convidou para escrever e desenhar a HQ que quisesse. Grampá, naturalmente, escolheu Batman.

Como repórter, acompanhei a história, da concepção, em 2020, até o lançamento da HQ, em entrevistas e visitas à casa e ao estúdio do artista, em São Paulo, e em uma viagem a San Diego, na Califórnia. Em 20 de julho passado, quatro anos depois do sonho agitado, Grampá apresentou lá uma prévia do primeiro dos quatro volumes de seu "Batman: A Gárgula de Gotham".

imagem do quadrinho de batman por rafael grampá
Imagem de "Batman: A Gárgula de Gotham", HQ do brasileiro Rafael Grampá - Rafael Grampá

"Um momento mágico", disse à plateia da Comic-Con Internacional, a mais tradicional convenção de cultura pop, que desde 1970 reúne todo ano cerca de 100 mil pessoas na cidade californiana. "Sonho em trabalhar com o Batman desde os 9 anos."

Em 3 de dezembro deste ano, ele, hoje com 45, apresentou o segundo volume da saga, agora na versão brasileira da Comic-Con, em São Paulo. Desde o lançamento da primeira parte, a obra chegou a liderar listas mundiais de gibis mais vendidos. Em setembro, mês do lançamento, ficou em segundo no ranking global.

Aos 45 anos, Grampá é o primeiro brasileiro a escrever e desenhar uma graphic novel do Batman, ou de qualquer super-herói de igual patamar comercial. Graphic novels são histórias em quadrinhos mais densas, geralmente voltadas a adultos e vendidas em livrarias (nem todos, contudo, concordam com a nomenclatura; para o próprio Grampá, tudo é quadrinhos).

Com esse feito, ele entrou para um grupo de elite, que inclui o norte-americano Frank Miller (de "O Cavaleiro das Trevas", de 1986) e o inglês Alan Moore ("A Piada Mortal" , de 1988).

"Desde os anos 1980, o Brasil tem ótimos desenhistas no mercado norte-americano, mas Grampá parece fazer a indústria se adaptar mais à sua vontade. Está mexendo na história de um herói de patamar mitológico", diz o professor Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, da USP, fundador e coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos.

Criado em 1939 por Bill Finger e Bob Kane, Batman é um herói sem superpoderes, mas que atua com astúcia e violência. É a persona justiceira do bilionário Bruce Wayne, que na infância testemunhou o assassinato de seus pais nas ruas de Gotham. O personagem tem cativado e influenciado sucessivas gerações. O sucesso se espalhou além das HQs e alcançou videogames, produtos licenciados e as telas de cinema.

Em "A Gárgula de Gotham", Grampá imprime uma interpretação própria. O Batman de sua visão não é propriamente um herói. Trata-se, como ele descreve, de "um bilionário que leva para o lado pessoal todo e qualquer crime que ocorra, gastando seu dinheiro para perseguir pessoas, a maioria delas pobre".

No segundo volume da história, que chega às livrarias no Brasil em fevereiro, revela-se que na infância, após a morte dos pais, o jovem Bruce Wayne tem um surto de raiva e espanca um morador de rua. A história do brasileiro escancara problemas típicos de metrópoles como São Paulo, com particular atenção ao tema da desigualdade social.

Em parte narrado em primeira pessoa por Batman, "A Gárgula de Gotham" começa com uma decisão do herói: forjar a morte de Bruce Wayne, passando a se dedicar exclusivamente à vida de justiceiro. No primeiro volume, o protagonista enfrenta o assassino em série Crytoon, inspirado em animações antigas, as "rubber hose" (gênero popular na década de 1930, com expoentes como Felix, the Cat).

Ele é um dos cinco novos vilões que serão apresentados nos quatro tomos. No segundo, há uma inspirada na figura católica da Virgem Maria, além de outro personagem de cunho religioso que se veste como uma mariposa.

O Batman de Grampá é circunspecto e reflexivo. Quando cega um criminoso, pensa: "O olhar daqueles que testemunham horror verdadeiro pela primeira vez... Que eu transformo naquilo que ele verá por último".

Apesar da liberdade de criação que teve, o quadrinista foi acompanhado passo a passo pela DC, que pediu mudanças. Na mesma cena, a editora, considerando que cegar o homem extravasaria os limites morais do personagem, sugeriu que ele acrescentasse um adendo. Ficou assim: "naquilo que ele verá por último... até se recuperar". A DC também não aprovou que o detetive Jim Gordon batesse em sua esposa.

A Gotham de Grampá lembra São Paulo, e não mais Nova York, a cidade que há décadas serve de modelo para a terra do Batman. Estátuas que aparecem nas páginas foram inspiradas pelos mausoléus do cemitério da Consolação. As paredes dos edifícios são grafitadas com estilos que remetem aos de artistas paulistanos.

Previsto para 2024, o terceiro episódio da HQ vai, segundo Grampá, associar "a transformação do jovem Bruce em justiceiro com uma promessa que fez aos espíritos dos pais".

De formação católica, o ilustrador não segue mais nenhuma religião. "Mas sinto um daimon me acompanhando. Em outras vezes, acho que são dois daimones. O que sei é que tudo que peço a eles se torna realidade." Ele tem o costume de escrever cartas para os daimones ao menos uma vez ao ano.

A palavra "daimon" apareceu pela primeira vez na "Ilíada", de Homero, como sinônimo de deus ou deusa. "A visão de Grampá me lembra a acepção de Platão em 'A Defesa de Sócrates', no qual os daimones são descritos como vozes que guiam as pessoas", explica o professor de letras clássicas Marcos Martinho, da USP.

No ramo das HQs, é manjado entre os fãs o histórico de quadrinistas afeitos a crenças exóticas. O inglês Alan Moore, de clássicos como "Watchmen", apresenta-se como um mago cerimorialista, seguidor do ocultista Aleister Crowley (1875-1947). Quando o questionei sobre o assunto, em entrevista à Playboy em 2006, Moore respondeu: "Magia é linguagem. Consigo transformar ouro em livro e vice-versa".

O primeiro desenho que Grampá se recorda de ter feito foi o de Batman, quando tinha 4 anos. "Mostrei para minha mãe e ela achou que era um burrinho", lembra, rindo. Na época, ele não respondia por Grampá. Era Rafael Alexandre Claudino Dias.

"Na adolescência, um colega me falou 'tem trocentos Rafael Dias por aí'." Ele diz ter visto a palavra grandpa (forma informal de se referir a "avô", em inglês) em um livro e, daí, sem saber inglês, tirou o nome artístico, Grampá.

Aprendeu a desenhar por conta própria, copiando o que via nos gibis. Com 9 anos, leu "O Cavaleiro das Trevas", de Miller. "Foi essa história que me levou a perceber que as HQs podiam ter conteúdo sério."

Antes dos quadrinhos, teve trabalhos como ilustrador; como diretor de arte, produziu videoclipes e produções publicitárias. Aos 27 anos, já morando em São Paulo, fez um trabalho comercial em parceria com Fábio Moon e Gabriel Bá, autores do fanzine "10 Pãezinhos".

A parceria foi a brecha para entrar no mercado de HQs. Em 2007, ele, Moon e Bá lançaram —com a americana Becky Cloonan e o grego Vasilis Lolos— a compilação de histórias "5". No ano seguinte, a coletânea venceu o Prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos. Foi a primeira vez que brasileiros ganharam o troféu.

Grampá embarcou para a premiação em San Diego levando exemplares da versão traduzida para o inglês de sua primeira HQ solo, "Mesmo Delivery". É uma história ultraviolenta, em que um ex-boxeador e um imitador de Elvis Presley são pagos para transportar uma carga.

Apesar do teor adulto, os traços dos personagens lembram os de desenhos animados. A narrativa crua mistura o estilo das revistas pulps a referências a quadrinhos policiais e filmes de diretores cult, como o italiano Sergio Leone. Ainda em sua versão independente, "Mesmo Delivery" caiu nas graças da indústria.

Três anos depois, em 2010, saiu uma nova versão em inglês, só que agora por uma editora de renome, a Dark Horse. Foi a porta de entrada de Grampá para o mercado estrangeiro.

A obra arrebatou fãs ilustres. Um deles foi o quadrinista escocês Mark Millar, autor de "Velho Logan", que classificou o trabalho de "brilhante". A produtora cinematográfica RT Features comprou os direitos de "Mesmo Delivery", mas a adaptação para o cinema ainda não saiu. "Quero recuperar esses direitos, porque existem outros interessados, como o ator Keanu Reeves", comenta Grampá.

Reeves é um admirador de Grampá. Em 2019, os dois conversaram em videochamada intermediada pela editora Boom!. Na reunião, o ator elogiou a HQ. Depois, perguntou se Grampá aceitaria desenhar um gibi para ele. O quadrinista, ocupado com outro trabalho, disse que conseguiria criar o visual do personagem principal de "Brzrkr" (lê-se berserker), a HQ depois lançada em 2021. O protagonista tem a cara do ator.

"É o nosso carro-chefe", afirma Harley Salbacka, diretora de vendas da editora, em uma visita que fiz ao estande da Boom! na Comic-Con de San Diego, em julho. O primeiro exemplar vendeu 650 mil cópias, e a Netflix adquiriu os direitos para uma adaptação.

"Mesmo Delivery" abriu mesmo as portas. Em 2010, Grampá foi convidado pela Marvel para criar uma história de oito páginas do herói Wolverine. Nela, apresenta o super-herói como um viciado em causar e sentir dor. A indústria de quadrinhos costuma testar artistas em ascensão com essas encomendas de narrativas curtas.

Foi o que fez também a DC, três anos depois, ao contratar Grampá para assumir um dos capítulos de uma série de gibis do Batman chamada "Preto e Branco". Na história de oito páginas que publicou, "Dentro do Círculo", Coringa, apenas para seu deleite, faz com que seus capangas sejam espancados pelo Batman.

Grampá, apesar do reconhecimento com "Mesmo Delivery", não conseguiu na época um bom retorno financeiro. "O quadrinista brasileiro, se ficar restrito ao mercado nacional ou independente, vai precisar fazer outros trabalhos para se sustentar", diz Ivan Costa, curador de quadrinhos da versão brasileira da Comic-Con. A saída costuma ser procurar trabalhos em editoras como Marvel e DC.

Foi uma conversa em um jantar, em 2015, que impulsionou de vez sua carreira. Na segunda edição brasileira da Comic-Con vieram a São Paulo dois famosos quadrinistas, Frank Miller e o sul-coreano Jim Lee, hoje presidente da DC. Em um encontro no restaurante D.O.M., sentou-se no lado oposto da mesa em que estava a dupla ilustre. Em meio às conversas, ele ouviu Lee e Miller elogiarem o trabalho de um "tal de Grampá". "Eu sou esse cara!", interveio. Era a primeira vez que os conhecia pessoalmente.

No fim do jantar, Miller, que tem hoje 66 anos, sugeriu que fizessem um projeto em parceria, chamando-o para uma visita ao seu estúdio em Nova York. O brasileiro foi atrás do americano com uma proposta: "Quero te apresentar minha própria aventura".

A história se passava no último dia de trabalho de Batman, antes de ele se aposentar. No roteiro havia cenas fortes, como uma em que o Coringa faz algo terrível com o Robin, envolvendo cadáveres e uma dança macabra. "Miller achou que era um episódio do personagem sobre o qual ele não queria falar", conta Grampá.

O norte-americano então fez uma contra-oferta: que Grampá desenhasse o quarto livro da saga "Cavaleiro das Trevas", a ser escrito por Miller. A obra se chamou "A Criança Dourada" e foi lançada em 2020.

Um desenho de Grampá para a história viralizou e se tornou símbolo de manifestações em Hong Kong. A imagem mostrava a Batwoman arremessando um coquetel molotov e foi impressa em cartazes. Na época, habitantes protestavam contra um projeto de lei que permitiria a extradição de suspeitos de crime para a China continental. "Capturamos o espírito do nosso tempo", diz Grampá.

Quando a HQ saiu, o site canadense Comic Book Resources escreveu: "O estilo dinâmico e selvagem de Grampá ajuda a elevar o que poderia ser, de outra forma, um hit mediano do Miller. Na verdade, chega-se a desejar que alguns balões de diálogos, incômodos, saíssem do caminho para deixar mais espaço para a arte."

Na Comic-Con de San Diego, em julho, também era possível comprar trabalhos de Grampá. Um esboço traçado em alguns minutos saía entre US$ 1.250 e US$ 2.250. As vendas de desenhos originais podem chegar a valores mais altos. Em 2020, uma arte desenhada por Grampá para "A Criança Dourada" foi leiloada por US$ 24 mil.

"Conforme eu cresço, quero trazer outros artistas brasileiros", diz. Em paralelo à apresentação de "A Gárgula de Gotham" nos Estados Unidos, ele deu entrevistas para sites especializados a respeito de "Braba", uma antologia de 16 quadrinistas brasileiros, lançada pela editora Mino, de São Paulo, em parceria com a americana Fantagraphics. A coletânea foi ideia de Grampá.

Os comentários sobre o primeiro volume de sua HQ do Batman foram, em geral, positivos. "Aonde quer que deságue esse mistério gótico de assassinato, os leitores podem ficar tranquilos que irão experimentar uma saga tensa e visceral", escreveu o comicbook.com, site popular do gênero.

Algumas críticas, como escreveu o site Batman News, referência para os fãs, foram relacionadas ao roteiro. A história por vezes recorre a clichês de uma típica aventura do herói. Grampá diz que pensou o volume inicial da trama como forma de apresentar o personagem "até para quem nem sabe que os pais de Bruce Wayne foram assassinados".

Jim Lee, da DC, diz estar impressionado: "O Batman dele é barroco e misterioso." Como a editora avalia que o lançamento foi bem-sucedido, o gaúcho ganhou uma rara autorização. Poderá, no universo de suas próprias histórias, reinventar outros heróis icônicos, como Superman e Mulher Maravilha.

Grampá é parte de um movimento de brasileiros que marcam presença no mercado dos quadrinhos. Desde que ele ganhou o pioneiro Eisner em 2008, outros 12 troféus foram para artistas de nosso país, recebidos por nomes como Mike Deodato Jr. e Rafael Albuquerque.

Na onda de estrelas brasileiras das HQs, Grampá se destaca também pela ambição. Dentre seus desejos, daqueles que deve escrever nas cartas para os daimones, está ver sua aventura do Homem Morcego em meios como videogames e desenhos animados. Outro plano é criar uma versão em quadrinhos de toda a Bíblia.

Batman: A Gárgula de Gotham

  • Preço Volume 1 - R$ 24,90 (48 págs.); Volume 2 - lançamento em fevereiro
  • Autoria Rafael Grampá
  • Editora Panini
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