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Chico Zaidan Mendez

Guerra moral entre Lula e Bolsonaro cria política bi-identitária

Identitarismo missionário virou caminho sem volta em país formalmente pluripartidário

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Chico Zaidan Mendez

Publicitário, coordenou dezenas de campanhas eleitorais no Brasil e na América Latina. Sócio da CZM Narrativa e Estratégia.

[RESUMO] Avanço da agenda moral mudou o eixo das campanhas do debate econômico-social para o identitário, em que eleitores escolhem se pertencem à igreja do lulismo ou bolsonarismo. Caminho talvez sem volta de organização da sociedade, esse novo contexto anima milhões de cidadãos que se sentiam excluídos e impacta a formulação de candidaturas e programas políticos.

Em coluna recente, Hélio Schwartsman tratou do peso eleitoral do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua influência nas eleições municipais do ano que vem. Escreveu o articulista que, "quando o futuro é opaco, consultar o passado é um bom ponto de partida para as estimativas. E, a julgar pelo passado, Bolsonaro foi uma figura decisiva nas eleições de 2022 —ele conseguiu transformar um poste pessoal no governador de São Paulo—, mas teve um desempenho pífio como cabo eleitoral no pleito municipal de 2020".

Vizinhos de prédio exibem bandeiras em apoio a Bolsonaro e Lula, no bairro Santa Cecília, em São Paulo, durante as eleições presidenciais de 2022 - Eduardo Knapp/Folhapress

E não foi só Bolsonaro que teve influência pífia em eleição municipal. Em seus dois primeiros mandatos como presidente, Lula não teve o efeito que a política-partidária imaginava nas campanhas para prefeitos.

Há inúmeras razões que podem explicar esse descolamento eleitoral de pleitos para prefeitos ou presidente. Uma delas é que na corrida municipal só se discute a cidade, sem interferência do debate nacional. Outra é que a campanha para prefeito é muito mais limpa, sem a poluição que toma conta das eleições presidenciais, quando também há propaganda para deputado estadual, federal, senador e governador. Com a propaganda e a cobertura jornalística focadas nas cidades, o debate tende a não extrapolar os limites do município.

Se levarmos a ferro e fogo o que aconteceu até 2020, a hipótese de Schwartsman tende a se confirmar em 2024. No entanto, se olharmos mais atentamente para a revolução moral (sim, revolução no sentido huntingtoniano de "transformação interna rápida nos valores, mitos e na estruturais de uma sociedade") que varreu o país em 2022, essa hipótese cai por terra. E, na verdade, ela já caiu!

O ano de 2022 marcou o fim da era do debate sobre os resultados das "marcas de gestão" de governos e inaugurou o tempo da persuasão identitária.

Claro que muitos podem dizer que o debate calcado na identidade sempre existiu, e antes era marcado pelo duelo PT x PSDB; ou que as diferenças identitárias sempre estiveram presentes no confronto de visão de mundo entre esquerda e direita, quase sempre calcadas no debate econômico entre maior distribuição de riqueza e presença do Estado, no primeiro caso, e menor taxação e presença estatal, no segundo.

O que vimos em 2022, contudo, foi a identidade política (lulismo x bolsonarismo) como pilar de organização societária, o que já afeta as eleições municipais do ano que vem. A partir de 2022, a política eleitoral passou a ser organizada sob a uma perigosa, mas inescapável, lógica religiosa.

As igrejas do lulismo e do bolsonarismo foram fundadas com dogmas, livros sagrados, crenças e uma organização estrutural de mensagem. É claro que essas "igrejas" têm diferenças claras de atuação.

Enquanto o lulismo se aproxima mais das características da Igreja Católica (e o PT tem uma forte influência de algumas correntes católicas desde a sua fundação), o bolsonarismo é uma somatória de teoria da prosperidade, dogmatismo neopentecostal e uma forte pitada de coach motivacional.

Bolsonarismo e lulismo são movimentos terapêuticos, como define o meu colega de profissão Guillermo Raffo, que apaziguam a vida de milhões de brasileiros. Esse efeito, mais presente entre os bolsonaristas, é um antídoto potente para lidar com as dores existenciais. Terceirizar a culpa de um fracasso é sempre mais fácil e libertador do que assumi-lo.

E o bolsonarismo faz isso com maestria: a culpa é sempre do sistema, nunca do cidadão. A socióloga Esther Solano enxerga o bolsonarismo como um grupo estruturante, que rompeu a bolha da política-partidária e se transformou em uma categoria social.

Arrisco a dar um passo à frente, e vejo esses movimentos populares como movimentos missionários, que organizam o sentido vital de milhões de brasileiros que antes estavam esquecidos e, principalmente, relegados. Não à toa, testemunhamos uma enxurrada de aposentados nas manifestações pós-eleição.

São milhões que, diariamente, recebem uma missão em seus grupos de WhatsApp. A cada tarefa, eles se sentem valorizados, reconhecidos e estimulados. O sistema de compensação do cérebro recompensa esses milhões de missionários com muita adrenalina e serotonina ao cumprir as metas diárias.

As missões são viciantes, e, por isso, passam a ser perenes. Essa dinâmica missionária —que, é preciso assumir, os bolsonaristas dão de lavada na igreja lulista— é terapêutica, estruturante e salvadora.

Logo, as missões cumprem um papel predominante na organização social. O "eu" passa a ser "nós", e, seguindo a lógica de Emilie Durkheim, a pessoa passa do estado profano, onde prevalece a sua individualidade, para o estado sagrado, onde prevalece a dominância de um grupo moral. As missões diárias acabam tendo um efeito autotranscendente, muito parecido ao efeito da fé religiosa.

A dinâmica grupal e moral ativa o que Francis Fukuyama definiu como "a política do ressentimento". Em seu livro "Identity: the Demand for Dignity and the Politics of Resentment", o pensador americano alerta que os grupos não buscam apenas serem reconhecidos pela sociedade e pelo Estado, mas exigem que os outros reconheçam seus atributos a qualquer custo.

A política do ressentimento —que também se alimenta de dívidas morais que inúmeros grupos carregam por se sentirem menosprezados ao longo do tempo— libera a endorfina necessária para que milhões de pessoas superem as dores existenciais e passem a existir de fato para o mundo, além de manter a chama do confronto sempre acesa.

Por tudo isso que a transformação moral pós-2022 nos infligiu, não acho exagero cravar que, apesar de sermos um sistema multipartidário, nos tornamos um país bi-identitário.

A identidade política, cada vez mais, definirá não só os nossos candidatos, mas sobretudo o nosso estilo de vida: restaurantes que frequentamos, bairros onde vivemos, escolas onde matriculamos nossos filhos, canais de streaming que assinamos, etc. serão definidos pelo pêndulo identitário dos grupos a qual pertencemos.

É por essa enorme dimensão e efeito da revolução moral que as eleições municipais de 2024 já sofrem um processo de reorganização estrutural. Ou seja, elas deixam de ser eleições livres da discussão nacional e passam a fazer parte do debate identitário desde já.

O efeito "organizador" da revolução moral já se sente nas maiores cidades. Antes de mostrar suas marcas de gestão, ou divulgar os números positivos da administração, os candidatos vão mostrar em qual igreja rezam.

Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) se juntou à igreja bolsonarista para organizar o campo azul/conservador contra o campo progressista. No Rio de Janeiro, o campo progressista deve se unir e caminhar com o prefeito Eduardo Paes (PSD), devoto da Igreja de São Lula, contra um candidato qualquer do campo conservador.

Em Belo Horizonte, o prefeito Fuad Noman (PSD) deve reunir a esquerda em torno da sua reeleição. Essa dinâmica vai se repetir em inúmeras cidades pelo país, inaugurando uma nova agenda e uma nova lógica das eleições municipais.

É evidente que os efeitos da política identitária como eixo central das eleições afetam diretamente a maneira como estamos acostumados a criar as campanhas. E é inegável que a migração do debate do eixo econômico-social para o eixo identitário e moral impacta diretamente na fórmula de criação de candidaturas e no desempenho diário dos candidatos.

O que implica um desafio adicional para os institutos de pesquisa e as fórmulas mais tradicionais de mensurar as principais variáveis para uma eleição —as famosas pesquisas quantitativa e qualitativa, por exemplo.

Se, por um lado, muitos acreditam que o debate identitário empobrece a política, por outro a agenda moral facilita a vida do eleitor. E não adianta lutar contra a realidade.

A antiga fórmula do estrategista americano James Carville, que cunhou o jargão "é a economia, estúpido", está dormente. A política de resultados foi engolida pela política do ressentimento.

A reorganização da política em um sistema bi-identitário serve como um atalho cognitivo para o eleitor.

Estamos nos acostumando a testemunhar ondas de mudanças radicais nos dias finais da eleição. Muitos analistas pensam que isso se deve a um maior desinteresse das pessoas pela política. Será? A guerra identitária só fez aumentar a participação da sociedade nas escolhas das políticas públicas.

Eu lanço aqui uma hipótese. O eleitor decide com mais frequência na última hora porque ficou mais fácil escolher o candidato: basta saber se o candidato está rezando na minha igreja ou não.

Nesses tempos de guerras morais, não basta mais convencer o público de que o candidato A ou B é bom gestor. Antes, o aspirante a um cargo público deve convencer os eleitores de que é um excelente pregador.

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