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Gonçalo Rocha Gonçalves

Biografias pacificam figuras de Mussolini e Salazar

Fascínio exercido por ditadores de Itália e Portugal suscita permanente revisão de seu papel histórico

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Gonçalo Rocha Gonçalves

Professor adjunto de história contemporânea da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)

[RESUMO] Opostos em temperamento e em práticas de governar, o italiano Benito Mussolini e o português António Salazar foram dois dos principais ditadores que emergiram na Europa no período entreguerras. Livros recentes, no âmbito do filão inesgotável de biografias de tiranos, reexaminam, de forma distinta, a trajetória pública e particular de cada um dos líderes autoritários e como moldaram a história de seus países.

Não podiam ser mais diferentes. Um elétrico, impetuoso e imprevisível; o outro calculista, dissimulado e metódico.

Um começou a ganhar visibilidade pelos ferozes ataques à Igreja Católica e se destacou depois pela exibição de virilidade física e por uma agitada vida sexual; o outro, educado em um seminário, iniciou a carreira política em partidos católicos e nunca se casou. Como a propaganda gostava de dizer, estava "casado com a nação".

Painéis de Benito Mussolini, Adolf Hitler, Josef Stálin, Francisco Franco e Philippe Pétain dispostos em protesto contra reunião de líderes de extrema direita em Koblenz, na Alemanha - Kai Pfaffenbach - 21.jan.17/Reuters

Um era um homem do esporte; o outro, um hipocondríaco mais dedicado a exercícios intelectuais. No entanto, ambos se destacaram como ditadores que emergiram na Europa do entreguerras.

Benito Mussolini e António Salazar nasceram na mesma década, nos anos 1880, em países muito diferentes. A Itália do primeiro era um Estado recém-formado, um país em que a língua, as fronteiras e a identidade coletiva estavam em constante disputa. Apesar de uma diversidade não negligenciável, Portugal era um país culturalmente homogêneo, um Estado-nação consolidado havia séculos.

No início do século 20, no entanto, os dois viviam um desafio semelhante, o que o historiador George L. Mosse chamou de "nacionalização das massas". Como vincular a população, em grande maioria rural e analfabeta, a Estados-nações frágeis no terreno? Como levar essas populações a deixar de lado a emigração e se assumir como italianos e portugueses?

Nos anos turbulentos depois do fim da Primeira Guerra Mundial, grupos poderosos, em especial os militares, viram na ditadura uma alternativa aos frágeis e corruptos sistemas parlamentares de Itália e Portugal capaz de monopolizar o poder (e a corrupção) e trazer ordem para as ruas.

Em 1922, Mussolini chegou ao poder sustentado na violência dos grupos de fascistas e da Marcha sobre Roma; dez anos depois, Salazar se tornou líder incontestável de um Estado Novo gestado a partir de uma ditadura militar instituída em 1926. Com diferentes ênfases, ambos acreditavam no credo que Mussolini exprimiu em 1925: tudo em prol do Estado, nada fora do Estado e ninguém contra o Estado.

A curiosidade em torno dos ditadores europeus do entreguerras parece ser um filão inesgotável de diferentes formas de representação, da historiografia às histórias em quadrinhos, do jornalismo ao cinema.

Na tentativa de compreender "como foi possível", a produção de biografias sobre essas figuras, que governaram por meio da violência e da repressão, mas também de técnicas sutis de controle (como o avanço das políticas sociais) e do apoio manifesto de parte significativa da população, tem sido impulsionada por públicos com interesses díspares.

"Mussolini: a Biografia Definitiva" (Globo Livros), de R.J.B. Bosworth, e "A Incrível História de António Salazar, o Ditador que Morreu Duas Vezes" (Todavia), de Marco Ferrari, são dois dos mais recentes livros no filão das biografias de ditadores.

As duas obras têm algo em comum. Tanto a biografia de Mussolini, da autoria de um historiador australiano especialista em Itália contemporânea, quanto a de Salazar, escrita por um jornalista italiano, têm a pairar sobre si obras anteriores incontornáveis. A primeira, a monumental (quatro volumes em oito livros) e muito discutida biografia de Renzo de Felice; a segunda, a de Filipe Ribeiro de Meneses.

Enquanto Bosworth assume o propósito de produzir uma biografia que situa Mussolini em mudanças locais, nacionais e internacionais mais amplas, revendo criticamente a obra de Felice, o livro de Ferrari é mais difícil de classificar. Não parece, de início, ambicionar ser uma biografia no sentido clássico do termo, pois pouco se debruça sobre as ideias e a atuação política do ditador português, por exemplo.

Benito Mussolini (dir.) recebe Adolf Hitler em Veneza em 1934 - Ann Ronan Picture Library/Photo12 via AFP

O título do livro sugere um foco nos dois últimos anos de vida de Salazar, entre a queda da cadeira em 1968, que leva à substituição no governo português, e a sua morte em 1970. Mas, no fim de contas, a intenção de analisar o teatro criado em torno do Salazar enfermo e o que ele nos diz sobre o regime e a relação dos portugueses com a autoridade e a tradição ocupa relativamente pouco espaço no livro, as primeiras 40 e as últimas 20 páginas. O resto é um resumo da história de Portugal no século 20.

Embora seja possível argumentar que a obra de Bosworth tem mais Itália e menos Mussolini, e que o apodo de "definitiva" seja obviamente discutível, é seguro colocar esse livro entre as biografias já clássicas de ditadores, como a de Hitler escrita por Ian Kershaw, e a de Franco por Paul Preston.

A tradução, no entanto, não ajuda. Só para dar um exemplo, que pode alimentar debates estéreis, a República Social Italiana (RSI), Estado fantoche mantido pelos nazistas depois da capitulação de Roma em 1943, na maioria das vezes é traduzida como República Socialista Italiana.

Já a escrita de Ferrari, no livro acerca de Salazar, é apelativa, articulando narrativa com reflexão e memória pessoal, mas, no fim, o resultado é uma espécie de colcha de retalhos da história contemporânea de Portugal.

A reprodução de mitos sobre as virtudes de Salazar, como a suposta simplicidade do estilo de vida ou a ascensão a contragosto (o técnico que não queria ser político; obrigavam-no a isso), é combinada com um interesse quase voyeurístico pelo "charme" e a vida doméstica do ditador e a história da oposição exercida pelo Partido Comunista Português. Se o objetivo era iluminar o público brasileiro sobre a figura de Salazar, a biografia de Meneses ou mesmo a mais recente de Tom Gallagher cumprem melhor esse serviço.

À semelhança de Hitler e Franco, Mussolini e Salazar assumiram a ambição de serem líderes providenciais de nações percebidas pela direita autoritária como caídas em desgraça pela guerra e sob a ameaça da revolução mundial bolchevique.

A desordem e a violência ajudaram a naturalizar a procura de líderes fortes e de soluções políticas ditatoriais, entregando o poder a indivíduos que só à superfície pertenciam a um mesmo movimento.

Mussolini chegou ao poder escorado em movimento popular, e a performance pública na mobilização das massas foi um elemento-chave na sua percepção como líder carismático. Salazar chegou ao governo como técnico em finanças públicas, manobrando as elites da ditadura para se consolidar no poder.

Sustentados em regimes que tinham mais de tradicional que muitos gostam de admitir —a superficialidade da implantação do fascismo é um ponto nevrálgico do livro de Bosworth—, ambos partilharam reservas em relação a um bem mais revolucionário nazismo, desconfianças em relação aos britânicos e desdém por norte-americanos ou franceses.

A imagem de um Mussolini frequentemente vacilante, indeciso, angustiado e descrente, por exemplo, na hora de entrar na Segunda Guerra, é outro dos retratos-chave do livro. De fato, apesar de a Itália de Mussolini estar na origem do fascismo e de modelos de organização econômica como o corporativismo, exportados para países com novas ditaduras de direita, como Portugal, os dois livros mostram um Salazar mais ideológico e um Mussolini mais pragmático e oportunista.

Enquanto o anticomunismo era para Salazar um princípio absoluto, uma questão civilizacional, Mussolini não deixou de manter relações diplomáticas e comerciais com a URSS, por exemplo.

No colonialismo, outro elemento basilar dos dois regimes, os dois ditadores foram herdeiros do novo imperialismo do final do século 19. Enquanto Salazar consolidou o império português como pilar estruturante do Estado Novo, Mussolini investiu, à semelhança dos políticos liberais italianos, na expansão das possessões italianas na África com a invasão da Etiópia em 1935, um momento de viragem em uma Europa na antecâmara para uma nova guerra.

António Salazar (esq.) ao lado do ditador espanhol Francisco Franco em 1960 - 21.jun.60/AFP

Apesar de separados por mais de três décadas, os destinos do fascismo na Itália e do Estado Novo em Portugal partilharam um mesmo motivo: a guerra. A entrada na Segunda Guerra ao lado da Alemanha nazista e a luta pela preservação do colonialismo português na África, quando os impérios europeus se esfacelavam na Ásia e na África, ditaram o fim dos dois regimes.

Tivesse Mussolini permanecido neutro na Segunda Guerra, como muitos no regime italiano queriam, não é descabido pensar que poderia ter permanecido como Franco, isolado, mas no poder. Tivesse Salazar aceitado descolonizar os territórios sob seu domínio no final dos anos 1950, talvez a transição para a democracia em Portugal tivesse sido mais como a espanhola.

A queda de ambos não foi, ao contrário do que por vezes somos levados a pensar, o resultado do curso "natural" da história. O fascínio que os ditadores continuam a exercer, tanto em novos apoiantes políticos —veja-se a consolidação de partidos neofascistas herdeiros de Mussolini e Salazar— quanto em historiadores, jornalistas ou cineastas, suscita uma permanente revisão do seu papel.

Ao lidar com o "fantasma" de Mussolini na Itália depois de 1945, Bosworth fala de uma pacificação do passado fascista que teria sido benéfica para o ditador. De forma crítica, o biógrafo não deixa de promover essa pacificação, afastando-se tanto da quase apologia de Mussolini por parte de Renzo de Felice quanto de uma diabolização do ditador, o colocando em um degrau abaixo de figuras como Hitler, Stálin ou mesmo Franco.

Da mesma forma, o Salazar caseiro, sociável, enfim, humano, de Ferrari, contribui também para a pacificação de Salazar.

Mussolini: A Biografia Definitiva

  • Preço R$ 119,90 (648 págs.)
  • Autoria R.J.B. Bosworth
  • Editora Globo Livros
  • Tradução Heitor Aquino Ferreira

A Incrível História de António Salazar, o Ditador que Morreu Duas Vezes

  • Preço R$ 74,90 (208 págs.)
  • Autoria Marco Ferrari
  • Editora Todavia
  • Tradução Vasco Gato
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