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Carol Conway

Festival de tecnologia olha para o passado em busca de soluções para solidão

Estabelecer relações verdadeiras enquanto noção de bem-estar social vem de interações online é desafio crescente

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Carol Conway

Presidente da Abranet (Associação Brasileira de Internet) e fundadora do podcast “Conselho dos Conselhos”

[RESUMO] A edição deste ano do South by Southwest, evento anual realizado em Austin, abrigou debates sobre a epidemia de solidão, que se aprofunda com a hiperconexão digital, e seus impactos físicos e psíquicos. Especialistas ressaltaram que interações online não costumam produzir vínculos interpessoais profundos e que a curiosidade com o outro, tecnologia humana primordial, é a chave para mudar a dinâmica dominante dos relacionamentos.

Você já se sentiu navegando sozinho? Mesmo que eu não esteja falando de navegar pelas telas, isso é cada vez mais uma realidade incontestável.

A editora de revistas americana Ann Shoket, que hoje lidera a TheLi.st, comunidade feita para que mulheres se encontrem e se ajudem, confessa ter se sentido assim, sem se dar conta, quando assumiu a direção da revista para adolescentes Seventeen. Jovem demais para o cargo, sentia que sua vulnerabilidade não passava de estresse.

Ela demorou a perceber que esse sentimento era falta de apoio e isolamento ou mesmo a tal síndrome da solidão, como diria Alexandre Silva, gestor na General Electric, a quem agradeço ter me contado que esse mal existia. No caso de Shoket, ela diz ter se dado conta do que estava acontecendo quando alguém lhe perguntou quem estava em seu barco.

E você, já se questionou sobre quem está no seu barco? O assunto surgiu no painel "Confrontando culturalmente a solidão" deste ano do South by Southwest (SXSW), evento de tecnologia que reúne milhares de pessoas (vejam só que paradoxo à solidão) em Austin, nos EUA.

Visitante do South by Southwest 2023 experimenta dispositivo de realidade expandida - Xu Jianmei - 17.mar.23/Xinhua

Ao lado de Shoket estava Justin McLeod, fundador do Hinge, app de relacionamentos projetado para promover conexões reais e depois ser deletado. Ali, ambos concluíram que é importante pensar no sentir como um fator biológico, mais ou menos como a fome é um sinal de que você precisa comer. Sentir-se sozinho afeta partes do cérebro de maneira que se assemelha às dores físicas.

Normalmente, passamos por esses sentimentos da forma como Shoket fazia na época que dirigia a revista: sem pensar muito no assunto, atropelando adversidades rapidamente e não dando chance à reflexão ou à sensação. Afinal, quando você é o líder, responsável por dar conta de tudo, é normal não ter ninguém remando ao seu lado.

"Falar sobre a solidão requer tanto responsabilidade pessoal quanto ação coletiva, por meio da construção de comunidades. Manter hábitos individuais, como checar diariamente como o outro está ou dividir as próprias vulnerabilidades, pode fazer uma diferença enorme", disse McLeod, comparando a solidão a um problema de saúde pública tão grave quanto o vício em opioides. Deixada sem diagnóstico, a solidão impacta negativamente o bem-estar físico, mental e financeiro.

Dessa forma, surge a necessidade de os ambientes de trabalho atuarem na redução da solidão por meio de rituais de relacionamentos. Na prática, podem ser conversas verdadeiras com o outro —parece óbvio, mas, inacreditavelmente, essa prática foi deixada de lado em tempos de hiperconexão digital. E, não, não vale conversar só online.

A inovação sugerida para resolver a epidemia da solidão (simplesmente conversar) é mais antiga que a tecnologia. Porém, para que a solução seja simples, a crise deve ser diagnosticada como tal. A discussão sobre o assunto é antiga em ambientes de tecnologia, como o Vale do Silício —sabe-se que, tal qual representantes da indústria tabagista, quem cria as viciantes inovações tecnológicas evita usá-las sem limites, ciente dos danos que acarretam.

A popularização das discussões sobre a inteligência artificial, entretanto, incensou o questionamento. "A IA pode nos ajudar na forma como nos comunicamos e nos apoiamos. No entanto, pode ser um obstáculo, porque vai substituir a forma como nos relacionamos com os humanos, e isso é terrível", afirmou o dono do Hinge.

Esse tipo de elucubração assombrosa norteou diversas conversas no festival em Austin, como se o avanço tecnológico tornasse necessário o retorno ao passado, de onde se tira hábitos importantes para sobreviver.

É justamente esse receio de ser substituído por uma máquina humanoide —o SXSW apresentou várias delas— ou etérea, como a voz de Scarlett Johansson no filme "Ela"— que tem feito o ser humano dar outra volta e se olhar finalmente para si. Entre tantas mensagens, conexões, demandas online, a surpresa é percebermos que estamos sozinhos. Quem está no seu barco?

Justin McLeod garante que, para atrair mais pessoas para remar junto, é importante cultivar a confiança mútua antes de começar a trabalhar em algum projeto em equipe. No Hinge, se convencionou contar algo revelador, que torna as pessoas mais íntimas e vulneráveis no decorrer do tempo. Pode ser uma história sobre um parente doente ou algo importante na família.

Segundo pesquisas americanas, o medo da solidão pode ser, inclusive, impeditivo para que mulheres aceitem promoções. Ações simples como o diálogo podem impactar positivamente o poder feminino, longe da ilusão dos smartphones.

Quem alimenta seu gato quando você viaja?

Trabalhamos bem mais que as convencionadas oito horas comerciais diárias e passamos tantas outras horas conectados às redes sociais. Mas como estabelecer relações verdadeiras enquanto toda a nossa noção de bem-estar social vem de uma curtida, que não impacta diretamente nossas vidas?

Esther Perel e Brené Brown também escolheram o dilema da solidão conectada como tema do SXSW. A premissa é tão incômoda quanto conhecida: temos milhares de pessoas curtindo, comentando, fingindo interação, mas em quem você realmente confia para alimentar seu gato quando viaja? "Será que algum desses amigos vai segurar meu cabelo se eu precisar vomitar?", provocou Brown. A gente nem sabe o quanto está sozinho na multidão de desconhecidos que pensamos que importam.

Perel foi além e calou a audiência: posso passar dez minutos vendo um vídeo fofo de um gato sem saber onde meu próprio gato está dentro da minha casa. Caso o encontre, vou torcer para que ele faça algo divertido para postar também.

"Será que somos apenas o que compartilhamos online? No meu trabalho, chamo isso de conexão falsificada, e o pior é a solidão que gera. Somos o grupo de pessoas mais conectadas da história da humanidade e também os mais sozinhos, em busca de 'likes', como se isso fosse o alicerce da nossa autoestima", refletiu Perel.

Pelo visto, a síndrome da solidão também ocorre fora do trabalho. Para defini-la em termos do nosso cotidiano, Perrel trouxe o conceito de IA (intimidade artificial), mostrando que, na maioria das vezes, não estamos conectados com as pessoas, mas fingindo alguma conexão, enquanto falam conosco, através de cacoetes como "aham". Pessoas reais requerem vulnerabilidade, tensão e atrito, não um simples "ok".

Isso dá muito mais trabalho que o tipo de conteúdo que viraliza online, que é aquele que nos prende pelo medo de perder algo (Fomo, "fear of missing out"). Essa "intimidade artificial" nos dá a falsa sensação de conexão, em um paradoxo. É como estarmos sozinhos em um estádio lotado.

Cinquenta tons de solidão

Jay Shetty, fundador do app de meditação Calm, falou sobre a solidão que as pessoas sentem mesmo vivendo em casal. A distância emocional, afirmou, acontece quando não temos tempo de qualidade com o outro.

Os números constrangem: olhamos para telas o quádruplo do tempo que olhamos para os nossos parceiros. "Perdemos a curiosidade pelo que o outro pode ter se tornado, achamos que estamos encontrando aquela velha pessoa de sempre." O novo, na nossa cabeça, está na tela. Será?

No geral, a solidão masculina preocupa mais que a feminina. Scott Galloway, professor da Universidade de Nova York e estudioso do tema, tem apontado diversas pesquisas que mostram que os homens estão mais sós que nós, as mulheres —que, desde a infância, falamos muito e temos habilidades socioemocionais para nos conectarmos profundamente em razão da maior liberdade histórica de expressar emoções.

Em 2019, antes da pandemia, 61% dos homens americanos se declararam solitários, segundo a escala de solidão da Universidade da Califórnia. Outro dado interessante aponta que 40% das mulheres declararam ter recebido apoio emocional nos sete dias anteriores, versus 20% dos homens.

Se você duvida dessas diferenças, recomendo assistir à cerimônia de premiação do Oscar 2024, no trecho em que as atrizes premiadas no passado homenagearam as indicadas deste ano. Ali, se nota conexão profunda entre elas, admiração e emoção. O mesmo trecho da cerimônia em que os homens repetem o ritual é diferente: protocolar, eles parecem apenas estar obedecendo o script.

Da mesma forma que precisamos de mais diversidade, com mais mulheres nos ambientes corporativos, precisamos de mais homens nos ambientes de socialização feminina: colocar mais gente dentro do seu barco ou da sua Kombi, como diz meu amigo Leandro Machado.

Precisamos dar o primeiro passo: olhar nos olhos de diversos tipos de pessoas com a tecnologia humana chamada curiosidade para dialogarmos todos juntos e misturados.

Luciana Bugni, minha nova amiga que também esteve no SXSW, colaborou para este artigo.

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