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Dirce Waltrick do Amarante

Livros dão pistas sobre consequências da IA na ignorância humana

Peter Burke e Alberto Manguel oferecem reflexões sobre conhecimento e criatividade em tempos de imediatismo

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] A curiosidade e a imaginação, opostas à ignorância, perdem espaço em um período marcado pela busca de respostas prontas e breves, escreve autora. Obras de historiador inglês e escritor argentino permitem imaginar o futuro de ofícios criativos, como a literatura, com a ascensão de ferramentas de inteligência artificial.

"Ignorância: uma História Global" (Vestígio), livro de Peter Burke publicado no Brasil no ano passado, parece não ter chamado a atenção por aqui. Talvez o tema não esteja em alta, ainda que devesse ser seriamente discutido.

A definição de ignorância do historiador inglês é simples: "A ausência ou privação de conhecimento". Porém, para Burke, "tal ausência ou privação é muitas vezes invisível para o indivíduo ou grupo ignorante, uma forma de cegueira que tem consequências gigantescas, incluindo os desastres". Estes, discutidos no livro, podem ser de todas as ordens: sociais, ambientais, políticas.

Logotipo do ChatGPT, aplicativo desenvolvido pela OpenAI - Kirill Kudryavtsev - 23.nov.23/AFP

A ignorância daqueles que "não querem saber", cujas razões podem ser diversas, é um tópico recorrente na história. Séculos atrás, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teria se declarado "impressionado com a enormidade da ignorância europeia sobre a maior parte do mundo", nos lembra Burke. "A Terra inteira é coberta por nações das quais só conhecemos os nomes", escreveu o filósofo, "mas temos a presunção de fazer julgamentos sobre a raça humana".

O fato é que a máxima "não querer saber" parece vir acompanhada, sobretudo, pela falta de interesse ou de curiosidade. Talvez Rousseau ficasse ainda mais impressionado ao saber que as coisas não mudaram muito ao longo dos séculos. Os países ricos continuam ignorando os países pobres, e os países pobres seguem ignorando os mais pobres que eles. Uma possível diferença talvez seja que hoje não se conhece mais nem a própria nação ou sua história —a nostalgia da ditadura militar no Brasil é uma prova disso.

"Querer saber" tem a ver com curiosidade e, consequentemente, com a necessidade de perguntar. Nesse sentido, o livro de Burke dialogaria estreitamente com "Uma História Natural da Curiosidade" (Companhia das Letras), de Alberto Manguel, lançado no Brasil em 2016. O escritor argentino ressalta que "afirmações tendem a isolar; perguntas a nos unir". Para Manguel, "a curiosidade é um meio de declarar nossa aliança com a comunidade humana".

Em vez de alianças criadas por perguntas, o que se tem buscado em tempos de imediatismo é uma resposta pronta e, de preferência, breve para tudo. A inteligência artificial, portanto, seria a ferramenta perfeita, o que explicaria seu protagonismo em todas as áreas do conhecimento, sem que, na maioria das vezes, suas respostas sejam postas em xeque.

Todos sabemos que seu uso indiscriminado terá consequências graves. Uma delas, como avaliam especialistas, é inibir a imaginação. O uso de fórmulas prontas, produzidas ou não por inteligência artificial, contradiz o espírito que preside produções da criatividade.

Sendo "atividade essencialmente criativa", a literatura, nos lembra Manguel, "desenvolve-se com a prática, não por meio de êxitos, que são conclusões e, portanto, becos sem saída, mas por meio de tentativas que se revelam estar erradas, exigindo novas tentativas que, se os astros estiverem a favor, levarão a novos fracassos". Em resumo, escreve o ensaísta, "as histórias da arte e da literatura, como a da filosofia e da ciência, são histórias desses fracassos iluminados".

Dessa afirmação, formulo duas questões: em uma sociedade cada vez mais imediatista, os escritores ainda estariam dispostos a falhar na busca de outros caminhos? Ou estariam, por medo de fracassar, se rendendo a fórmulas prontas?

O fato é que esse tipo de literatura acomodada parece fadado a dar mais visibilidade ao autor que à obra que ele assina. Um poema de Boris Pasternak (1890-1960), autor do célebre romance "Dr. Jivago", já no século passado levantava essa questão que não era nova e ele conhecia de perto.

Eis os versos de "Ser Famoso Nada Tem de Bonito", na tradução de Aurora Bernardini: "Ser famoso nada tem de bonito,/ Nem levanta ninguém até as alturas./ Não é preciso vasculhar arquivos,/ Abasbacar-se sobre manuscritos./ Dar-se é a finalidade da criação,/ Não o sucesso ou o sensacionalismo./ É vergonhoso, além de sem sentido,/ Ser na boca de todos —falação".

Antes dele, a norte-americana Emily Dickinson (1830-1886) já havia expressado a mesma opinião em um poema. Obviamente que o reconhecimento e o diálogo com os leitores é um desejo de quem escreve. Mas, neste caso, seria a sua obra a protagonista, não o escritor.

No meio literário e acadêmico, "não querer saber" estaria relacionado ao esquecimento consciente —"a passagem do conhecimento de volta à ignorância", segundo Burke. Esse mecanismo, que pode ser seletivo, seria produto de esforço deliberado e de escolhas conscientes. "Certos artigos noticiosos, ou fontes de notícias, são evitados, certos cursos universitários são mantidos longe, certos tipos de pessoas nunca são solicitados a dar sua opinião sobre as notícias do dia", diz a feminista Linda Alcoff, citada pelo historiador.

Nesse sentido, Burke alerta que "os acadêmicos também precisam estar cientes de uma tendência que Robert Merton (1910-2003) descreveu como ‘amnésia de citação’, uma falha em se referir aos seus predecessores em seu campo de estudo". E faz uma revelação aos leitores: "Adotando uma veia cínica, já pensei às vezes que mesmo os acadêmicos mais conscientes, ainda que reconheçam alegremente pequenas dívidas a um ou a outro estudioso, às vezes esquecem de citar o predecessor a quem mais devem".

Esse segredo envolve um pequeno grupo que "está por dentro do conhecimento", diz, "mas também um grupo maior que é mantido na ignorância." O que Burke chama amnésia de citação seria também "um método para manter o público na ignorância" e, completaria, para manter determinados artistas, escritores etc. em destaque.

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