Descrição de chapéu quadrinhos

HQ brasileira fura barreira e ganha edição de luxo nos EUA

'Braba' será lançada por editora de quadrinhos indies mais famosa do mundo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Filipe Vilicic

Jornalista, colecionador e pesquisador de HQs. É autor, dentre outros, dos livros "O Clique de 1 Bilhão de Dólares"(Intrínseca) e "O Clube dos Youtubers" (Gutemberg)

[RESUMO] Coletânea de 15 quadrinistas brasileiros, a "Braba" terá lançamento em proporções inéditas nos EUA para uma produção nacional, fruto de parceria de uma editora icônica de HQs indies, a Fantagraphics, e uma pequena casa paulistana, a Mino. Com ambição de levar o estilo dos quadrinhos brasileiros para o mercado internacional, a obra será apresentada no mais tradicional evento de cultura pop do mundo, a Comic Con Internacional, na Califórnia, em 26 de julho.

"Faça um manifesto pessoal sobre…" O convite foi recebido por quadrinistas brasileiros há quatro anos. "Estava bem no final do governo Bolsonaro, atravessando pandemia, com todo esse trabalho de memória e luto que tem a ver com ser brasileiro", recorda Pedro Cobiaco.

Ele se uniu a outros 14 artistas do país para criar, a partir dessa provocação tão simples, a "Braba", antologia que agora em julho será publicada nos Estados Unidos e no Brasil, em inglês e em português, e promete fortalecer uma onda de quadrinistas nacionais que tem surpreendido o mercado norte-americano.

A "Braba", que adota no título uma gíria tão característica de nosso povo, sai em uma parceria entre uma pequena editora paulistana, a Mino, com uma icônica marca do gênero, a norte-americana Fantagraphics. A Mino é conhecida por lançar por aqui nomes mais alternativos da cena internacional, como Paul Pope, e estrelas nacionais, como Rafael Albuquerque. Mas jamais tinha chegado perto do patamar mercadológico (e de ousadia) que agora atinge.

História de Jefferson Costa sobre garotos com poderes mágicos que integra a HQ "Braba"
História de Jefferson Costa sobre garotos com poderes mágicos que integra a HQ "Braba", antologia de 15 artistas brasileiros que será lançada nos EUA - Divulgação

Fundada em 1976, a Fantagraphics é a mais renomada editora de quadrinhos indies do Ocidente, aqueles que saem do circuito típico de super-heróis da Marvel e da DC Comics. Dela vieram clássicos da categoria como "Ghost World", cult-adolescente de Dan Clowes, e "Palestina", de Joe Sacco, não ficção sobre as experiências do autor na Faixa de Gaza nos anos de 1990.

"Publicar na Fantagraphics é como ser um jogador de futebol e ser chamado para jogar no Real Madrid, é o lugar mais alto a que se pode chegar", comenta Cobiaco. Como uma casa tão consagrada no meio das HQs topou uma publicação conjunta com uma pequena editora brasileira?

A história começou em 2018, quando o quadrinista gaúcho Rafael Grampá passava uma temporada a trabalho em Nova York. Naquela época, ele já era célebre no meio por obras como a HQ "Mesmo Delivery", uma pulp fiction que narra a história de dois caminhoneiros que transportam uma carga misteriosa. A obra havia sido lançada dez anos antes, com recepção calorosa da crítica, em especial nos EUA.

Em um dos encontros, Grampá esbarrou com Eric Reynolds, cartunista e vice-presidente da Fantagraphics. Fã do trabalho do brasileiro, o executivo tentava convencê-lo a publicar pela editora. Grampá estava então comprometido com outras demandas, como a que quatro anos depois viria a originar o romance gráfico "Cavaleiro das Trevas: A Criança Dourada", parceria com um dos maiores nomes do meio, o norte-americano Frank Miller (de "Sin City" e "300 de Esparta").

"Criança Dourada", aliás, foi elogiada pelos desenhos dinâmicos e vivos de Grampá, que parecem fazer os personagens se moverem como se saltassem das páginas, mas criticada pelo roteiro (um tanto confuso) de Miller.

"Mas onde come um, podem comer dois", comenta Grampá à Folha. Ele aproveitou a oportunidade para apresentar a Eric Reynolds outro artista brasileiro, Daniel Semanas, cujo trabalho então era mais conhecido no campo da publicidade. As negociações avançaram e Santanas lançou "Roly Poly", em 2019, pela Fantagraphics, história futurista sobre uma celebridade virtual na Coreia do Sul.

Grampá não perdeu o contato com Eric. Em 2020 o desenhista gaúcho lhe fez uma proposta, em uma conversa por chamada de vídeo, que começou com uma pergunta: "Eric, você conhece cinco quadrinistas ingleses?". Ao que o executivo logo respondeu com exemplos, assim como soube apontar artistas italianos, franceses, argentinos. "Agora, diga cinco brasileiros." Além de Grampá, o norte-americano só tirou outros dois de cabeça.

"Viajo o mundo inteiro em eventos de HQs e se vê pouco, quase nada, de quadrinhos nossos, ninguém conhece lá fora", comenta Grampá. "Precisamos dividir o que está acontecendo no Brasil, se não o mundo ficará órfão de um monte de artistas brilhantes."

Quando começou a provocar o editor norte-americano com essas questões, ele já sabia onde queria chegar. E propôs: "Então virou tua obrigação moral lançar uma antologia nossa". A Fantagraphics topou.

O brasileiro estava então ganhando cada vez mais renome no meio, não só pelo sucesso de suas obras já publicadas, mas por colegas saberem que ele possuía um contrato com a DC Comics, casa de super-heróis como Super-Homem, que lhe deu sinal verde para criar uma graphic novel própria, totalmente autoral, do Batman. Um feito cobiçadíssimo, pois foram histórias de pegada mais adulta do Homem-Morcego que consagraram autores icônicos como Frank Miller (de "Cavaleiro das Trevas" e "Batman: Ano Um") e o inglês Grant Morrison ("Asilo Arkham").

Ou seja, Grampá estava com moral e resolveu ser mais ousado. Disse que ele próprio não escreveria nem desenharia, mas faria a curadoria de jovens talentos brasileiros ainda sem oportunidades lá fora. E mais: afirmou que só participaria se os norte-americanos aceitassem fazer o projeto em conjunto com uma editora brasileira, sendo que a marca de ambas teria o mesmo peso na capa.

Um tempo depois, o gaúcho mandou uma mensagem para Janaina de Luna, dona da editora Mino e amiga próxima. "Não teve nenhum processo de convencimento, ele simplesmente me informou que íamos lançar uma antologia pela Fantagraphics", lembra Janaina, em meio a risadas.

Logo ela, Grampá e Eric Reynolds chegaram aos 15 artistas convidados para fazer a HQ (dentre eles, Pedro Cobiaco, também marido de Janaina) e lhes enviaram a proposta: "Faça um manifesto pessoal sobre…".

Todo mês de julho ocorre uma rave nerd em San Diego, na Califórnia. A Comic Con Internacional, a mais tradicional convenção de cultura pop, reúne todos os anos cerca de 100 mil pessoas na cidade californiana para celebrar a idolatria a super-heróis, mangás, RPG, videogames, filmes blockbuster. Na do ano passado, Grampá apresentou seu Batman autoral, "A Gárgula de Gotham", uma série em quatro volumes, cujo primeiro gibi foi o segundo mais vendido da DC Comics em 2023.

A HQ o levou a um dos painéis de destaque do evento. Esperto, Grampá aproveitou os holofotes para também apresentar a "Braba" a quem o abordava para perguntar sobre Batman. Nessa tática, ele e Pedro Cobiaco, que dividiram o quarto de um hotel cinco estrelas no píer de San Diego, deram uma série de entrevistas contando da parceria da Mino com a Fantagraphics, que estava então em produção.

"É a primeira vez que a Fantagraphics colabora com uma editora sul-americana. Para a cena brasileira, é histórico"', propagandeou Grampá em entrevista ao site CBR, o Comic Book Resources, um dos maiores do ramo. "Estamos tentando mostrar para o mundo um pouco mais do que está acontecendo no Brasil. Há uma cena vibrante", completou ele.

Passado um ano, a "Braba" será lançada oficialmente em um evento próprio em 26 de julho, durante a Comic-Con International em San Diego. As pré-vendas, contudo, já começaram. No evento, além da antologia, será apresentada uma música baseada na HQ, criada pelo produtor Pablo Bispo, que trabalha com cantoras como IZA, Gloria Groove e Pabllo Vittar.

"É um momento de várias revoluções e juntamos essa galera do gueto, da rua, que gosta de quadrinhos e de funk, os que chamamos de 'nerd cria', para fazer um movimento disruptivo", vislumbra Bispo.

Eric Reynolds, da Fantagraphics, ficou empolgado com o resultado, segundo contou a este repórter. "Há uma distinta celebração da identidade e da cultura brasileiras que eu não vejo na maior parte dos quadrinistas americanos, pois a maioria deles são mais ambivalentes, se não cínicos, sobre a vida e a cultura dos Estados Unidos."

"Braba" traz 13 contos assinados por 15 artistas. Como é costume em antologias, há altos e baixos. Algumas histórias se destacam pelo visual, como uma série de Gabriel Góes que se inspira em cenas brasileiras para recriar cartas de tarô em quadros deslumbrantes (no baralho, só ficou faltando uma carta, a da Justiça, pois dela carecemos no país); ou ainda a capa e as ilustrações entre capítulos de autoria de Pedro Cobiaco e que parecem saídas de um Brasil apocalíptico.

Ressaltam-se também os traços urbanos, que lembram pichações dos muros de São Paulo, de Amanda Miranda, na história que abre a "Braba". "Me reconectei com uma ansiedade adolescente que é a descoberta da própria sexualidade e as ambivalências que a socialização feminina carrega", nos conta ela sobre o roteiro.

Em 11 páginas, Amanda leva o leitor a um mergulho frenético de uma jovem em experiências virtuais e sexuais. As cores são berrantes, e a composição dos quadros é frenética. "Pensei nessa comunicação acelerada, violenta, na poluição sensorial que enfrentamos ao usar a internet hoje, de como, para os aplicativos gratuitos, a mercadoria somos nós", diz ela, que retratou chuvas de anúncios, phishing, chats, vídeos eróticos que cercam a protagonista.

"Para traduzir visualmente a ansiedade e o desconforto, criei um grid que conta com uns 30 quadros por página, com sobreposição de objetos e cores", acrescenta a artista. Os estilos variam muito de capítulo para capítulo, indo do cartunesco e do mangá ocidentalizado, a exemplo de títulos pop como "Scott Pilgrim", a linhas mais experimentais, com desenhos que poderiam ser pendurados em galerias de arte.

Dentre os roteiros, sobressaem-se aqueles que claramente só poderiam se passar mesmo no Brasil e que levam temperos de nossa cultura que devem causar estranhamento aos olhos gringos. Como uma história de fantasia emocionante, contada e lindamente desenhada por Jefferson Costa, sobre um garoto que escolhe o poder da imortalidade, enquanto outro opta por voar (mas acaba impedido pela polícia).

Ou a saga vampiresca de Rafael Coutinho, que leva para as HQs e para o cenário paulistano algo como um estilo Dalton Trevisan , o Vampiro de Curitiba, de narrar contos meio cômicos, meio de horror.

Os poucos capítulos que passam batido são aqueles de artistas que parecem querer imitar formas norte-americanas de escrever e desenhar quadrinhos independentes, deixando mais de lado a brasilidade. A relação com nossa cultura, aliás, não foi algo explicitamente exigido aos quadrinistas.

"Chamamos autores periféricos, então são narrativas periféricas", defende Janaina de Luna, da editora Mino. "Se é um quadrinista brasileiro, fica com o ponto de vista brasileiro. Não necessitava dessa preocupação de dizer que precisariam falar sobre o Brasil."

A "Braba" nem saiu e já há planos para um segundo volume, apresentando outros artistas nacionais. "Queremos fazer uma invasão com a cultura brasileira, começando pela nossa antologia", diz Grampá, que assinou como criador e coeditor do projeto.

Para Janaina de Luna, "o Brasil já teve muitas eras de ouro nos quadrinhos, como com Laerte e Angeli, mas sempre houve uma dificuldade de internacionalização de trabalhos autorais". Até os anos 2000, desenhistas brasileiros trabalhavam lá fora estritamente na parte visual de gibis de super-heróis pop, como Ivan Reis e Mike Deodato.

Essa tendência começou a mudar de forma mais evidente em 2008, quando Grampá, Fábio Moon e Gabriel Bá se tornaram os primeiros brasileiros a ganhar o Prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos, com a coletânea "'5". Após esse feito pioneiro, outros 12 troféus foram para artistas de nosso país.

Todavia, até agora as histórias de artistas brasileiros que têm circulado lá fora não apresentam muito tempero de nossa cultura. Por essa perspectiva, "Braba" é certamente a HQ mais, digamos assim, brasileira a ser lançada por uma editora de renome no mercado norte-americano.

Ela irá realmente impulsionar ainda mais uma onda de internacionalização de talentos brasileiros, como vislumbram seus idealizadores? Só saberemos quando saírem os próximos quadros dessa história.

Braba

  • Preço R$ 98 (168 págs.; em pré-venda)
  • Autoria Amanda Miranda, Bruno Seelig, Diego Sanchez, Gabriel Góes, Jefferson Costa, Jéssica Groke, João Pinheiro, Sirlene Barbosa, Paulo Crumbim, Cristina Eiko, Pedro Cobiaco, Pedro Franz, Rafael Coutinho, Shiko, Wagner Willian
  • Editora Mino e Fantagraphics
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.