Biografia desnuda Lou Reed queer, desagradável e humano

Crítica especializada disse que livro é obra definitiva sobre o músico

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Ivan Finotti
Ivan Finotti

Vencedor dos prêmios Esso e do Festival de Sundance, escreve sobre cultura desde 1991.

[RESUMO] "Lou Reed - O Rei de Nova York" traz ampla pesquisa, com acesso a material inédito de acervo pessoal, sobre um dos mais influentes artistas do rock. Em entrevista, biógrafo comenta o longo processo de produção da obra, o efervescente panorama artístico dos anos 1960 e 1970 e as muitas ambiguidades que tornam o músico uma figura fascinante.

Quando se pensa em muitos lembram de cara do Velvet Underground, conhecida como a banda desconhecida mais influente de todos os tempos. Embora nunca tenham frequentado as paradas, músicas como "I’m Waiting for the Man", "White Light/White Heat" e "Sweet Jane", compostas por Reed, estão entre os chamados grandes clássicos do rock.

Há quem lembre de sua ligação com Andy Warhol, que desenhou a capa do disco da banana e acolheu o grupo em sua Factory, ateliê que ditou moda e a pop art na Nova York dos anos 1960 e 1970.

O nome também traz à baila sadomasoquismo, mundo queer, chicotes, travestis, guitarras inaudíveis, poesia marginal, violência, anfetaminas, egoísmo e narcisismo. Seu ex-colega de banda, John Cale, falou da "estranha habilidade de Lou para extrair o pior das pessoas".

Lou Reed na Winterland Ballroom, em San Francisco, em 1974
Lou Reed em show em San Francisco, em 1974 - Larry Schorr/Divulgação

Lou Reed, morto em 2013, aos 71 anos, era tudo isso e lançou quatro álbuns com o Velvet Underground e 20 discos solo. Mas em muitos momentos de seus quase 50 anos de carreira ele se via mais como um escritor do que como um músico. "Eu sou escritor. Vou apenas usar a música como veículo", declarou no início da carreira.

Depois, deprimido com o fracasso comercial dos quatro discos da banda, abandonou a carreira musical, voltou a dormir na casa dos pais e foi ler suas letras como se fossem poesia em eventos literários numa igreja nos subúrbios de Nova York.

Só mesmo um autor com baixa autoestima descomunal seria capaz de compor versos como "Eu pensei que eu era outra pessoa/ Uma pessoa boa" ("Perfect Day") ou "Candy diz: Passei a odiar meu corpo/ (...) O que você acha que eu veria/ Se eu pudesse me afastar de mim?" ("Candy Says").

É uma matéria-prima fascinante, e o resultado está em "Lou Reed - O Rei de Nova York", livro de Will Hermes, jornalista musical americano com vasta colaboração para a Rolling Stone e para diversas outras publicações, como o jornal New York Times. A obra vem sendo apontada pela crítica especializada como a biografia definitiva do artista.

Uma das razões para o sucesso é que Hermes é o primeiro biógrafo a ter acesso ao Arquivo Lou Reed da Biblioteca Pública de Artes Performáticas de Nova York, no Lincoln Center, aberto em 2019. O material foi doado por Laurie Anderson, artista multimídia e terceira mulher de Reed. Apesar de se casarem apenas em 2008, o relacionamento havia começado em 1992.

"Você pode ouvir horas de gravações do Lou Reed, fitas demos, concertos ao vivo. Eu passei por 200 caixas de documentos de turnês, de fotografias e todo tipo de coisas pessoais, cartas, que realmente enriqueceram o livro. Eu já estava trabalhando há muitos anos. Mas isso foi realmente a cereja do bolo", afirmou Hermes, em entrevista à Folha, na semana passada.

Entre as revelações de "O Rei de Nova York" estão o tempo em que passou como compositor contratado na Pickwick Records, um selo especializado em reedições e imitações baratas de estilos populares. Seu maior sucesso então foi uma música acoplada com dancinha, "The Ostrich", ou "O Avestruz", em que Reed cantava frases como "Todo mundo com a cara no chão/ Levante as mãos/ Faça como o avestruz".

"Ele tinha que trabalhar por direção", contou o biógrafo. "Escreva uma música de surf, escreva uma música de corrida de carros. E era isso que ele fazia. E é interessante que, ao longo dos anos, ele fez alguns de seus melhores trabalhos quando as pessoas lhe diziam o que escrever. Como quando Andy Warhol disse para ele escrever uma música sobre ‘você me acertou com uma flor’, que virou ‘Vicious’, ou fazer uma música sobre Edie Sedgwick, que se tornou ‘Femme Fatale’. Ou o produtor Bob Ezrin, que sugeriu o álbum ‘Berlin’."

O espanto que algumas canções do Velvet Underground despertavam —com a viola estridente de John Cale e a influência de música concreta, atonal, bizarra ou simplesmente inaudível— é causa de diversas histórias pitorescas, como quando a gravadora Columbia rejeitou a banda, ainda inédita, com um memorando: "Não há no mundo uma pessoa em sã consciência que queira comprar ou ouvir este disco".

Por outro lado, a influência foi imensa. "Brian Eno, músico visionário e sumidade da produção musical, brincava que o primeiro disco do Velvet Underground vendeu apenas 30 mil cópias, mas que cada comprador montou a própria banda", escreveu Hermes. Na entrevista, ele falou do grande número de bandas que gravaram covers do Velvet e citou Marisa Monte, responsável por "uma das melhores versões de ‘Pale Blue Eyes’ já feitas."

Outro trunfo de Hermes foi o tempo de pesquisa e escrita que pôde dedicar ao livro. Esse período, que deveria ser de dois anos, foi sendo esticado a ponto de fazer editores pensarem em cancelar o contrato com o autor, que havia sido assinado ainda na década passada.

"Sim, demorou mais do que eu tinha planejado. Ok, eu sabia que era muito assunto. E sei que sou um escritor lento, porque faço muita pesquisa. Mas aí aconteceram algumas coisas, como a pandemia. E também o acesso aos arquivos, em 2019. Então, isso fez demorar ainda mais. Do início ao fim, eu diria que levou quase 10 anos, pois a ideia surgiu após a morte de Lou, em 2013."

Por outro lado, entre os grandes desafios do biógrafo estava o fato de que Reed desconfiava de jornalistas. Hermes aborda esse problema já no prefácio:

"Lou Reed não gostava que escrevessem sobre ele. Na verdade, nenhum outro músico popular na história recente ficou mais conhecido por sua verdadeira aversão a dar entrevistas. Basta uma rápida pesquisa no YouTube para encontrar vídeos de Reed dando respostas frias e mal-humoradas a repórteres. Os aspirantes a biógrafos não se saíam muito melhor: em certa ocasião, Reed foi obrigado a enviar uma mesma carta a amigos e colegas na qual pedia que não fornecessem informações suas."

Para combater isso, o jornalista contou com o tempo. "Algumas pessoas estavam dispostas a falar comigo imediatamente, mas havia muitas que não estavam, e levou tempo para elas me avaliarem, para ver tipo, ‘Oh, esse cara é ok? Devo falar com ele?’. Ao longo do tempo, quase todo mundo acabou concordando em falar comigo, mas para algumas pessoas, levou um tempo", explicou ele, que entrevistou mais de cem pessoas para o livro.

Muitos desses entrevistados tiveram uma relação marginal com Lou Reed, mas eram importantes nos círculos que ele frequentava, como o ateliê de Warhol, por exemplo. "Eu queria escrever a biografia do Lou Reed que eu gostaria de ler", disse Hermes.

"Então, eu queria falar muito sobre o Velvet Underground, é claro. Mas também queria falar sobre a comunidade de artistas em Nova York nos anos 1960 e 1970. Falei com muitas pessoas que estavam em seu mundo. Eu queria escrever sobre os cineastas da Factory. Sobre os artistas visuais de quem ele era amigo."

Assim, "O Rei de Nova York" traça um intenso panorama da cena artística daquela cidade, com dezenas de minibiografias e contexto sobre os agitadores, atores, atrizes, cineastas, artistas plásticos e músicos de vanguarda, o que traz uma camada extra para o livro.

Sobre Lou Reed em si, Hermes parece tentar, de alguma forma, redimi-lo. "Acho que as pessoas pensam que Lou Reed era um cara desagradável. Então, eu queria escrever sobre todas as facetas dele como pessoa. Eu queria escrever sobre sua sexualidade. Ele era um homem queer, embora não usasse essa palavra, mas usava a palavra gay em algumas ocasiões. E sua orientação sexual estava relacionada à sua arte, então achei importante escrever sobre isso", disse.

Questionado sobre quão mau era Reed, Hermes foi categórico. "Não, muito pelo contrário. Acho que a experiência de escrever este livro me deu não apenas uma compreensão de por que ele era como era. Acho que também me deu uma enorme empatia. Ele tinha muitas dúvidas e muito ódio por si mesmo. Foi uma experiência emocionante, porque faz você perceber que há muitos lados em todo mundo. Todo mundo tem o bem e o mal dentro de si. E saí disso com grande respeito e empatia por Lou Reed, que não era uma pessoa perfeita."

A banda Velvet Underground com Nico (centro), em foto de Stephen Shore - Stephen Shore/Divulgação

Amigo do politicamente correto, e tratando tanto de temas caros ao movimento identitário de hoje, Hermes disse que tentou buscar um equilíbrio na linguagem. Ele não escreve em nenhum momento, por exemplo, que Reed era bissexual, pois preferiu respeitar a nomenclatura que Reed usava, que era gay. "Ele nunca usou esse termo [bissexual]. Mas, ao longo dos anos, ele foi casado com mulheres cisgênero. E teve uma parceira de longa data, Rachel, que era uma pessoa trans."

Em outro momento, ao tratar do refrão de "Walk on the Wild Side", Hermes escreve no livro que a expressão "colored girls" [garotas de cor, ou ‘garotas morenas’, na tradução do livro] "poderia ser encarada como um comentário social irônico, arrogância racista ou ambos".

Na entrevista, ele foi mais a fundo. "‘Colored girls’ é meio que uma expressão mais antiga. Meu pai diria algo do tipo ‘oh, falei com esse cara de cor’. Mas aí o termo se tornou 'preto’ [black]. E então, nos Estados Unidos, ‘afro-americano’. Agora, ‘preto’ é meio que comum de novo. Então, tive que levar tudo isso em consideração."

"Naquela época, as pessoas estavam menos conscientes disso. E eu queria tentar estar em ambos os lugares. Queria tentar ser atual e queria relatar como as coisas eram. Foi uma busca de equilíbrio. Eu espero que tenha feito certo. Mas algumas pessoas acharam que eu usei muita linguagem moderna", finaliza.

Lou Reed: O Rei de Nova York

  • Preço R$ 179,90 (576 págs.)
  • Autoria Will Hermes
  • Editora BestSeller
  • Tradução Lívia de Almeida
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