Descrição de chapéu The Washington Post Coreia do Norte

Huawei ajudou Coreia do Norte a construir rede sem fio em operação secreta

Documentos vazados mostram que empresa formou parceria com estatal chinesa para os projetos

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The Washington Post

A Huawei Technologies, gigante chinesa da tecnologia que tem parte central na guerra comercial do presidente Trump contra a China e foi colocada na lista negra por representar ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos, ajudou secretamente o governo da Coreia do Norte a construir e manter a rede sem fio comercial do país, de acordo com documentos internos obtidos pelo The Washington Post e pessoas informadas sobre o assunto.

A Huawei formou parceria com uma estatal chinesa, Panda International Information Technology, para diversos projetos na Coreia do Norte, há pelo menos oito anos, de acordo com ordens de trabalho, contratos e planilhas detalhadas obtidos de um banco de dados que acompanha as operações da companhia de telecomunicações em todo o mundo. O arranjo dificultou discernir qual era o envolvimento da Huawei.

As planilhas foram fornecidas ao The Washington Post por um ex-empregado da Huawei que considera que a informação seja de interesse público. O ex-empregado falou sob a condição de que seu nome não fosse citado, mencionando temer represálias. Dois outros conjuntos de documentos foram fornecidos por outras fontes interessadas em veicular o material. Elas também falaram sob a condição de que seus nomes não fossem revelados.

A loja da Huawwei em Vina del Mar, no Chile
A loja da Huawwei em Vina del Mar, no Chile - Rodrigo Garrido/Reuters

Juntas, as revelações despertam questões sobre possíveis violações das sanções contra a Coreia do Norte por parte da Huawei, que usa tecnologia americana em seus componentes. O regime norte-coreano enfrenta severas sanções internacionais por seu programa de armas nucleares e abusos dos direitos humanos.

O Departamento do Comércio americano, que se recusou a comentar, está investigando as supostas conexões entre a Huawei e a Coreia do Norte desde 2016, mas jamais havia apontado para uma conexão pública entre elas. A investigação continua. O Departamento da Justiça americano também acusou a Huawei de fraude bancária e de violações das sanções americanas contra o Irã. A empresa se declarou inocente.

Em comunicado, a Huawei declarou que não "tem presença de negócios" na Coreia do Norte. O porta-voz Joe Kelly se recusou a responder perguntas detalhadas, no entanto, entre as quais se a empresa havia conduzido negócios no país no passado, quer direta, quer indiretamente. Ele não contestou a autenticidade dos documentos revelados, mas tampouco a confirmou.

"A Huawei tem o compromisso de cumprir plenamente todas as leis e regulamentos aplicáveis, nos países e regiões onde operamos, e isso inclui todas as leis e regulamentos de controle de exportação e sanções", das Nações Unidas, Estados Unidos e União Europeia, o comunicado afirma.

Um porta-voz do Panda Group, a estatal que controla a Panda International, se recusou a comentar.

A descoberta de uma conexão entre a Coreia do Norte e a Huawei, cujas atividades, ambições e supostas conexões com o governo chinês alarmaram as autoridades de segurança dos Estados Unidos e da Europa, deve alimentar ainda mais suspeita nas nações ocidentais que estão considerando se restringem ou não o uso de produtos da empresa, total ou parcialmente, em suas redes 5G de próxima geração. A questão surge em um momento especialmente vulnerável para o governo Trump, que continua em disputa com Pequim sobre o comércio; Trump também está buscando reiniciar as negociações nucleares com o líder norte-coreano Kim Jong Un.

"O fato de que exista uma conexão entre a Huawei e Coreia do Norte vai causar irritação política e diplomática em Washington, se não mais nada", disse Evans Revere, ex-funcionário do Departamento de Estado americano e especialista em questões asiáticas. "Quando imaginávamos que as relações entre Estados Unidos e a China não podiam ficar mais complicadas, e as relações entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte não podiam ficar mais complicadas, vemos esse exemplo de trabalho conjunto da China e Coreia do Norte em uma área de tecnologia potencialmente sensível".

Um funcionário sênior do Departamento de Estado, que como outros dos entrevistados para este artigo solicitou que seu nome não fosse citado por estar discutindo informações delicadas, resumiu a frustração do governo americano.

"Tudo isso se enquadra à preocupação geral que temos sobre responsabilidade empresarial e uma empresa como a Huawei, que é indigna de confiança devido à sua cultura interna e a diversos incidentes que indicam sua disposição de contornar ou violar nossas leis", ele afirmou. "Trabalhar com regimes como o da Coreia do Norte, que privam os indivíduos de seus direitos humanos básicos em base regular, causa preocupação".

Uma visita à China

Desde que foi fundada em 1987 por um ex-engenheiro do exército chinês, a Huawei evoluiu de humilde fabricante de comutadores telefônicos a um ícone da competência tecnológica chinesa - tornando-se a maior fabricante mundial de equipamento de telecomunicações. Hoje, a empresa é uma "campeã nacional", e faz negócios em mais de 170 países.

Antes de 2008, a Coreia do Norte tinha dificuldades para localizar empresas multinacionais dispostas a criar uma rede 3G em um ambiente de negócios tão arriscado. Isso terminou quando foi criada a Koryolink, provedora de acesso sem fio, que emergiu de uma discreta visita de Kim Jong Il, o pai de Kim Jong Un, à sede da Huawei em Shenzhen, China, em 2006.

"Foi esse o momento que confirmou não só o interesse dos principais líderes em lidar com a Huawei, mas que revelou a escolha da Huawei como fornecedora primária de tecnologia", disse Alexandre Mansourov, professor adjunto na escola de serviço diplomático da Universidade de Georgetown, que em 2011 escreveu sobre a transformação digital da Coreia do Norte. "Eles decidiram trabalhar com a Huawei, desde então".

A Koryolink foi criada em 2008 como joint venture entre a Orascom Telecom Holding, do Egito, e a Korea Post and Telecommunications, da Coreia do Norte. A joint venture leva o nome CHEO, mas tentativas de contato com ela não foram respondidas.

Um participante crucial foi a Panda International, parte do conglomerado de eletrônica Panda Group, que ocasionalmente serve às necessidades de política externa da China. Em 2001, por exemplo, o então presidente chinês Jiang Zemin, deu a Cuba um milhão de televisores fabricados pela Panda, e apresentou um representante da empresa ao então líder cubano Fidel Castro, "que apertou suas mãos e o abraçou entusiasticamente", recorda a empresa em seu site.

A Huawei trabalhou em estreito contato com a Panda, usando-a como intermediária para fornecer estações-base, antenas e os demais equipamentos necessários a lançar a Koryolink, mostram documentos internos. Por anos, empregados da Huawei e Panda trabalharam em um hotel barato perto da praça Kim Il Sung, em Pyongyang, de acordo com um pessoa informada sobre o arranjo.

A Huawei estava envolvida em "integração de redes" e serviços de software, e também em pelo menos um projeto de "expansão" para a Koryolink, mostram os documentos. Também prestava "serviços administrados" e serviços de "garantia de rede". Yun Chao, empregado atual da Huawei contatado pelo The Washington Post, disse que em 2012 e 2013 trabalhou no sistema de resposta automatizada da Koryolink, uma das diversas melhoras que a empresa chinesa ofereceu aos norte-coreanos.

De acordo com um contrato de 2008, a Panda transportava equipamentos da Huawei a Dandong, uma cidade no nordeste da China, para trasbordo internacional. De lá, o material seguia de trem para Pyongyang.

Documentos internos demonstram que a Huawei fez negócios com outra companhia chinesa, a Dandong Kehua, que em novembro de 2017 se tornou alvo de sanções do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos por exportar e importar bens de e para a Coreia do Norte - transações vistas pelas autoridades americanas como forma de financiar os programas nucleares e de mísseis balísticos de Pyongyang. A Dandong Kehua não falou oficialmente sobre as sanções.

Não se sabe bem que papel, se algum, a Dandong Kehua desempenhou nas transações entre a Huawei e Coreia do Norte, ou se a Huawei fez negócios com a companhia depois das sanções. Tentativas de contatar a empresa não tiveram sucesso.

País "A9"

Em documentos internos da companhia e entre seus empregados, a Huawei se referia a certos países, como Coreia do Norte, Irã e Síria, por códigos. No banco de dados de projetos, por exemplo, a Coreia do Norte é identificada pelo código A9.;

"Ao fazer uma busca por projetos, você encontrava referências a Alemanha, Estados Unidos, México. Mais adiante, em lugar de um nome de país, encontrava A5, A7, A9 e ficava sem entender", diz o ex-empregado. "Presumo que fosse para evitar escrever Irã ou Síria".

Em um fórum online semiprivado usado por empregados da Huawei, um homem recordou no ano passado como ajudou no lançamento da Koryolink em "A9" no verão de 2008, antes de voltar correndo à China para trabalhar na assistência tecnológica à Olimpíada de Pequim. Entre parênteses, ele escreveu "chaoxian", o que quer dizer Coreia do Norte, em letras romanas - em um aparente esforço para evitar mencionar o país nominalmente usando caracteres chineses.

Documentos obtidos pelo The Washington Post também ilustram a preocupação da Coreia do Norte com a espionagem estrangeira aos funcionários do regime e seus familiares que pudessem estar usando a Koryolink. No segundo trimestre de 2008, a Orascom e a Korea Post encarregaram a Huawei de desenvolver um protocolo de criptografia para a rede, e informaram que o governo criaria um algoritmo criptográfico, de acordo com os documentos.

"Os dois lados de comum acordo entendem que pessoas comuns usarão celulares de padrão internacional e usuários especiais usarão celulares diferentes, que conterão um algoritmo de criptografia desenvolvido localmente", afirmam as atas de uma reunião, assinadas pelo engenheiro chefe da Korea Post e por um membro do conselho da Orascom.

Um "banco de teste" de criptografia foi montado pela Huawei em Shenzhen, de acordo com os documentos. Duas pessoas conhecedoras do sistema dizem que a Coreia do Norte também intercepta e monitora todos os telefonemas nacionais e internacionais.

O site 38 North, que rastreia cuidadosamente as atividades da Coreia do Norte, detalhou o arranjo em um post publicado na segunda-feira.

Coreia do Norte: "Radiativa"

A Orascom, foi adquirida em 2011 pela Vimpelcom, uma empresa russa, que transferiu a Koryolink a uma nova subsidiária. Essa empresa agora é conhecida como Orascom Investment Holding, e não respondeu a pedidos de comentários.

O acordo de joint venture original dava à Orascom licença exclusiva para operar a rede móvel até 2015, de acordo com reportagens, mas o governo da Coreia do Norte lançou uma rede rival, Kang Song, em 2013, usando outra fornecedora chinesa de equipamento para telecomunicações, a ZTE. A Kang Song rapidamente suplantou a Koryolink como maior provedora de serviços sem fio na Coreia do Norte.

Em 2014, o Departamento do Comércio americano proibiu a exportação de componentes de origem americana à Panda, afirmando que a companhia havia fornecido esses componentes às forças armadas chinesas "e/ou" a países que eram alvo de sanções pelos Estados Unidos. De lá para cá, qualquer empresa que forneça à Panda produtos de telecomunicação destinados à Coreia do Norte e contendo ao menos 10% de conteúdo de origem americana não licenciado é vista como violadora das sanções.

Diversos especialistas, entre os quais a Interos, que analisa cadeias de suprimento, consideram provável que o equipamento 3G da Huawei contivesse componentes americanos, embora seja difícil determinar se o teor ultrapassa o limiar de 10% delineado na regulamentação de exportação.

A Huawei foi colocada na mesma lista negra do Departamento do Comércio americano, em maio; autoridades dos Estados Unidos mencionaram suas supostas violações de sanções americanas contra o Irã. A Huawei nega ter violado os controles de exportação quanto ao Irã, ou que represente uma ameaça de segurança, e afirma que o governo Trump a toma por alvo por motivos políticos.

A Huawei e a Panda deixaram seus escritórios em Pyongyang no primeiro semestre de 2016, de acordo com pessoas informadas sobre o assunto. No período, os esforços para impor sanções mais severas dos Estados Unidos e da ONU contra a Coreia do Norte vinham ganhando força. A Orascom conseguiu dispensa da ONU para operar a joint venture da Koryolink em setembro de 2018. A Koryolink, de acordo com uma pessoa informada sobre o assunto, opera agora com equipamentos envelhecidos, e a Huawei já não lhe oferece manutenção ou atualizações.

As autoridades americanas intimaram a Huawei em 2016, exigindo informações sobre a exportação de tecnologia americana a países sob sanção, entre os quais a Coreia do Norte. Se surgir prova de que a Huawei violou as sanções americanas contra a Coreia do Norte, ela pode se tornar alvo de novas sanções de exportação, penas civis, confiscos e processos criminais.

"A Coreia do Norte é radiativa no mundo da proliferação por conta das sanções internacionais", disse James Mulvenon, especialista em espionagem econômica chinesa e diretor da SOS International, uma empresa de defesa. "A Huawei não desejaria se ver apanhada negociando diretamente com a Coreia do Norte, e por isso eles trabalham por intermédio de outras empresas, como a Panda".

O site da Panda International alardeia sua longa colaboração com a Huawei, que remonta a 2007 - o momento de lançamento da Koryolink -, e informa que ela abarca "diversos países e setores de produtos". A Panda também aponta ter licença do governo chinês para "distribuir assistência internacional".

Um número de celular mencionado no site da Panda como linha direta de vendas estava conectado a uma conta de mídia social na WeChat que vende produtos da Huawei. O executivo que responde por essa conta, Andy Wang, se recusou a responder perguntas sobre seu trabalho na Coreia do Norte.

A sede da Panda em Pequim parece ser uma operação rústica, em um edifício comercial mal cuidado com um karaokê e uma casa noturna suspeita no subsolo. Durante uma visita de um repórter do The Washington Post ao local em julho, o local parecia quase todo vazio.

Um executivo da Panda, que outro empregado apontou como responsável pelos contatos com a imprensa, se recusou a atender o repórter, e trancou as portas do escritório.

The Washington Post, tradução de Paulo Migliacci

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