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Turistas endinheirados transformam a Antártida em playground exclusivo

Cruzeiros devem levar 80 mil passageiros ao continente na temporada que começou neste mês e vai até março de 2020

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Antártida | AFP

Nem palmeiras nem areia. O mergulho é na água gelada na frente de pinguins. Horizonte fora de alcance, a Antártida tornou-se um playground para turistas, correndo o risco de precipitar sua metamorfose.

Aproveitando a sede de novidades de uma clientela abastada e com um sentimento de urgência de descobrir países ameaçados pela perturbação climática, os cruzeiros se aventuram em cantos cada vez mais remotos e selvagens.

Continente de superlativos —o mais frio, mais ventoso, mais seco, mais remoto, mais deserto, mais inóspito—, a Antártida, ao mesmo tempo estéril e borbulhante de vida, é hoje um destino privilegiado.

Para muitos, é a última fronteira, que deve ser alcançada a todo custo antes que desapareça na sua forma atual.

“É como uma facada”, diz o norueguês Even Carlsen, 58, ao sair da água a 3°C na ilha Half Moon, na ponta da península Antártica. Na costa, uma equipe médica assiste à cena.

Turistas fotografam pinguim nas Ilhas Shetland do Sul, na Antártida
Turistas fotografam pinguim nas Ilhas Shetland do Sul, na Antártida - Johan Ordonez - 8.nov.2019/AFP

Carlsen é um dos 430 passageiros do Roald Amundsen, da empresa Hurtigruten, o primeiro navio de cruzeiro com motor híbrido do mundo a atravessar o oceano Antártico.

Se o Tratado da Antártica, assinado há 60 anos, transformou o continente em uma terra dedicada à paz e à ciência, o turismo também se desenvolveu, com um claro impulso nos últimos anos. A única atividade econômica, ao lado da pesca, se concentra principalmente na península, de acesso mais fácil e clima mais ameno do que o resto do território.

“Pureza, grandeza, desmesura”, diz a aposentada francesa Hélène Brunet, 63. “É incrível, totalmente incrível. É um enorme prazer estar aqui.”

Não há lixo à vista, mas há invisíveis marcas das atividades humanas. Carregados pelas correntes oceânicas, os microplásticos estão lá. “Detectamos nos ovos de pinguim”, diz Marcelo Leppe, diretor do Instituto Antártico Chileno. 

A Antártida também é vítima do aquecimento global. A temperatura na península subiu quase 3°C nos últimos 50 anos, segundo a Organização Meteorológica Mundial, três vezes mais rápido que a média global. Em março de 2015, uma estação de pesquisa argentina chegou a medir 17,5°C. 

Espera-se que o total de turistas nesta temporada (novembro a março) alcance 78,5 mil.

“Alguns diriam que 80 mil pessoas não lotam um estádio, mas a Antártica ainda é um lugar especial que deve ser gerenciado como tal”, diz Amanda Lynnes, da Iaato (Associação Internacional de Operadores de Turismo Antártico).

A moda é o cruzeiro intimista, chamado de expedição. Em navios mais limpos do que os dos trópicos —o combustível pesado é proibido na Antártida desde 2011—, as companhias usam a conscientização sobre questões ambientais como um argumento de venda.

No Roald Amundsen não há pista de dança ou cassino, mas microscópios, experiências participativas, conferências sobre baleias, exploradores, Darwin. Não se fala “passageiro” ou “cruzeirista”, mas  “convidado” e “explorador”.

O público geralmente é mais velho e que já viajou muito. E com certa riqueza, capazes de pagar a partir de € 7.000 (quase R$ 38 mil) pela viagem.

Algumas companhias apostam no ultraluxo, com navios à la James Bond transportando helicópteros e submarinos, suítes de mais de 200 metros quadrados e mordomo (leia ao lado).

Com um hidroavião como bônus, o megaiate SeaDream Innovation fará cruzeiros de 88 dias a partir de 2021. As duas suítes mais caras, a € 135 mil (R$ 631 mil) por pessoa, já estão reservadas.

Tanta modernidade e tanto conforto contrastam com o caráter primitivo da imensidão selvagem. Mas a Antártida também é uma bomba-relógio.

Como resultado do aquecimento global, o derretimento da calota glaciar no oeste do continente reformulará o mapa do mundo, contribuindo cada vez mais para o aumento do nível do mar.

Uma contribuição de 50 centímetros até 2100, e muito mais além, segundo Anders Levermann, climatologista do Instituto de Pesquisa do Impacto Climático de Potsdam.

“Para cada grau de aquecimento, o nível da água aumentará 2,5 metros. Não durante este século, mas a longo prazo”, diz. “Mesmo que o respeitemos, o Acordo de Paris [que visa limitar o aquecimento a menos de 2°C] nos dará pelo menos cinco metros de elevação do mar: Veneza estará sob a água, Hamburgo, Nova York, Xangai, Calcutá...”

Para profissionais do turismo, as mudanças na Antártida têm sua origem a quase 5.000 km de distância, nas atividades realizadas pelo homem nos outros cinco continentes.

Eles juram praticar turismo responsável. As excursões em terra são regidas por uma série de instruções: limpar objetos pessoais para não introduzir espécies invasoras, manter distância respeitosa dos animais para não estressá-los e não pegar nada.

Quando toda viagem turística à Antártica libera em média mais de 5 toneladas de emissões de CO2 por passageiro, é um desafio”, aponta Michael Hall, especialista em regiões polares da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia.

A maioria dos visitantes vem do hemisfério Norte; Estados Unidos e China representam quase metade deles.

Mesmo antes de embarcar em cruzeiros que partem da América do Sul —o itinerário mais comum—, atravessaram o globo de avião, ajudando a enfraquecer a natureza que querem admirar. “Sinto culpa ao dizer que tomei um avião para chegar aqui”, diz a francesa Francoise Lapeyre, 58.

Os profissionais afirmam que querem tornar os visitantes “embaixadores” que, depois de saborearem esse lugar único, pregarão por sua salvaguarda.

“É bom para a vida animal e para a proteção da Antártida que as pessoas vejam o quão bonita é essa área”, afirma Daniel Skjeldam, chefe da Hurtigruten.

“Quando vi uma oferta para esta viagem, achei melhor vir enquanto ainda não foi destruída”, afirma o texano Mark Halvorson, 72. “Agora que vi pessoalmente, estou ainda mais determinado a ser o mais ecológico possível.”

Mas os críticos denunciam uma forma de “turismo de última chance” esse desejo de visitar destinos vulneráveis.

Os alemães Martina, 50, e Guido Höfken, 52, gostam de pensar fora da caixa. Eles pagaram um adicional para compensar o CO2 gerado por seu voo da Alemanha.

Futuros “embaixadores da Antártica”? “Talvez um pouco, mas acho que não vou mudar o mundo”, afirmam. 

“O melhor seria que ninguém viesse.”
A AFP viajou a convite da Hurtigruten

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