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Executivo do Google que defendia direitos humanos diz que foi forçado a sair

LaJeunesse afirmou que posição contrariava interesses da empresa na China; Google nega que saída tenha sido por esse motivo

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São Francisco (EUA) | The Washington Post

Ross LaJeunesse durante anos teve a missão de proteger os direitos humanos na China, em seu trabalho para o Google, desde que a companhia anunciou, uma década atrás, que deixaria de operar no país por não querer continuar censurando os resultados de busca, a fim de salvaguardar a segurança e a liberdade de expressão.

LaJeunesse encarava a missão com seriedade. Com o tempo, desenvolveu um programa de direitos humanos para formalizar os princípios de apoio à liberdade de expressão e privacidade do Google. Começou a pressionar por sua adoção pela companhia em 2017 – mais ou menos o momento em que o gigante das buscas começou a estudar a possibilidade de retornar à China, revertendo a decisão de 2010 que tornou seu serviço de busca inacessível no país.

Agora, LaJeunesse afirma que o Google forçou sua saída, em abril, por conta disso. “Eu não mudei. O Google mudou”, disse LaJeunesse, que foi vice-presidente de relações internacionais do Google, em Washington, ao The Washington Post. “Para o Google, ‘não seja mau’ costumava vir no topo da lista de missões da empresa, mas agora isso foi relegado a uma nota de pé de página entre as missões da companhia”.

LaJeunesse trabalhou no Google por 11 anos
LaJeunesse, ex-executivo do Google que disse ter sido forçado a deixar a empresa devido suas posições em relação a direitos humanos - Salwan Georges/The Washington Post

No Google, a China era vista como um mercado florescente mas causador de preocupações quanto à maneira pela qual a tecnologia pode ser usada para suprimir a liberdade de expressão ou facilitar a vigilância. LaJeunesse modelou seu programa de direitos humanos na abordagem do Google com relação à privacidade e segurança, criando uma equipe de empregados, em áreas como cadeia de suprimentos, políticas públicas e ética e fiscalização, a fim de ajudar a companhia a integrar, coordenar e priorizar as avaliações de risco quanto aos direitos humanos.

Mas Kent Walker, mentor de LaJeunesse e o poderoso vice-presidente jurídico do Google, se irritou com a ideia, de acordo com entrevistas com LaJeunesse e e-mails e documentos vistos pelo The Washington Post. Walker expressou a preocupação de que um compromisso formal para proteger os direitos humanos poderia aumentar a carga de responsabilidade jurídica do Google, disse LaJeunesse.

“Temos um compromisso inflexível de apoiar as organizações e esforços de direitos humanos”, disse Jenn Kaiser, porta-voz do Google, que informou que a saída de LaJeunesse havia acontecido por conta de “uma reorganização em nossa equipe de políticas públicas”. Walker se recusou a comentar.

As mudanças no cálculo moral do Google com relação à China ilustram a transformação do gigante da tecnologia, de uma organização que se retratava como exceção às normas corporativas em uma companhia impelida por imperativos de negócios e oportunidades de mercado. “O Google não é uma empresa convencional”, escreveram seus fundadores em 2004.

Quando a companhia anunciou a suspensão das operações de seu serviço de buscas na China, a retratou como movida por considerações éticas. “Não queremos operar um serviço sujeito a censura política”, disse Sergey Brin, um dos fundadores da companhia, em uma palestra TED em 2010.

Oito anos mais tarde, o Google confirmou que estava trabalhando no Projeto Dragonfly, um plano sigiloso para lançar um app de buscas sujeito a censura na China, que teria bloqueado buscas por termos como “protestos de estudantes” e vincularia as buscas de um usuário ao número de seu celular, de acordo com o site Intercept.

“É um mercado maravilhoso, inovador. Queremos descobrir como seria estar na China, e por isso desenvolvemos esse projeto interno na empresa”, disse Sundar Pichai, presidente-executivo do Google, sobre o Dragonfly, em uma conferência da revista Wired em 2018.

“Dada a importância desse mercado, e o número de usuários lá, nos sentimos obrigados a pensar com afinco sobre esse problema, e a pensar em longo prazo”.“Não basta dizer que acreditamos nos direitos humanos”, disse David Kaye, responsável pelo relatório da ONU sobre liberdade de opinião e expressão, que interagiu com LaJeunesse sobre questões de direitos humanos.

“É extremamente importante que pessoas como Ross, que defendem os direitos humanos dentro de suas empresas, contem com o apoio das empresas – de suas principais lideranças e mais”.

Os 11 anos que LaJeunesse trabalhou para o Google representam um período de mudanças na gigante do Vale do Silício. Depois que vazaram notícias sobre o Projeto Dragonfly, mais de 1,4 mil empregados assinaram uma carta interna que criticava a falta de transparência do Google sobre seus planos com relação à China, parte de uma recente tendência entre os trabalhadores de tecnologia de criticar as práticas de negócios e trabalhistas de seus empregadores.

Meses antes, empregados da empresa haviam encaminhado uma petição aos executivos para protestar contra o Projeto Maven, um contrato com o Departamento de Defesa americano para fornecer visão computadorizada a aeronaves de pilotagem remota (drones), que o Google mais tarde decidiu não renovar.

Mas LaJeunesse é um dos ex-executivos de cargo mais alto a romper com a empresa, depois de ter sido alijado com a oferta de um papel muito menos importante, durante a reorganização da equipe de políticas públicas. Ele disse que seu índice de aprovação como gestor em sua revisão mais recente havia sido de 98%, e que era membro do programa Foundation, um projeto altamente seletivo de desenvolvimento de gestores pela companhia, desde 2012.

LaJeunesse, que é declaradamente gay e foi membro do Conselho de Inclusão e Diversidade da empresa, acredita que a defesa da diversidade tenha sido outro motivo para os ataques contra ele.

Logo da empresa em seu escritório em Nova York - Brendan McDermid/Reuters

O Google afirmou que a reorganização não teve relação com desempenho individual, e que o velho papel de LaJeunesse não se enquadrava à nova estrutura, que dividiu a área de políticas públicas em equipes regionais e para produtos específicos.

Em lugar de aceitar o que entendeu como uma demoção, especialmente por ver seus dias no Google como contados, LaJeunesse deixou a companhia sem assinar um acordo de confidencialidade, a fim de poder falar livremente sobre o que vê como abuso de poder corporativo por parte do Google. Em novembro, LaJeunesse retornou às suas raízes na política e lançou sua campanha ao Senado como democrata, desafiando Susan Collins, no Maine, o estado em que nasceu e cresceu.

“Ofereceram a Ross um posto com o mesmo nível e remuneração, mas ele o recusou”, disse Kaiser, do Google. “Desejamos o melhor a ele em suas ambições políticas”.

Os trabalhadores de grandes empresas de tecnologia como o Google, Amazon e Microsoft vêm questionando cada vez mais a ética de algumas decisões, quando produtos que eles ajudaram a desenvolver são colocados em uso para aplicações militares controversas ou como instrumentos de vigilância por organizações policiais e regimes repressivos. Alguns dos críticos internos do Google afirmam que a companhia se esforçou muito por silenciá-los.

Diversos trabalhadores ativistas do Google afirmaram ter sido demitidos injustamente, nos últimos meses, porque o Google queria calar os dissidentes.

Brett Solomon, da Access Now, uma organização internacional que defende uma internet aberta e livre, apelou publicamente ao Google, Facebook e Twitter para que priorizem os direitos humanos, durante um evento na sede da ONU em janeiro de 2019. Ele disse que é alarmante ouvir empresas de tecnologia invocando a ética como forma de governar a inteligência artificial e outras tecnologias.

“A ética é subjetiva e depende da companhia”, disse Solomon. As decisões tomadas pelas empresas de tecnologia sobre direitos humanos “têm implicações reais para populações marginalizadas – os uigures na China, os manifestantes de Hong Kong, os defensores da democracia no Irã”, ele disse.

Nos últimos 12 meses, especialmente depois que a ONU criticou o Facebook por seu papel na difusão do ódio étnico contra o povo rohingya, em Mianmar, surgiu mais abertura à ideia de que uma estrutura de direitos humanos pode ajudar a navegar pelos problemas que as grandes empresas de tecnologia enfrentam. O Facebook declarou ao The Washington Post que um diretor foi contratado seis meses atrás e será anunciado em janeiro. Kaiser, do Google, disse que sua empresa não tem função equivalente e em lugar disso depende da cooperação funcional entre diferentes equipes.

Quando o Google lançou sua versão local de um serviço de buscas para a China, em 2006, a companhia justificou censurar resultados ao argumentar que a presença do Google no país poderia tornar a China mais aberta, porque os resultados de busca do serviço da companhia indicavam quando havia censura, ao contrário do que acontecia com os de concorrentes locais como a Baidu, e com os do Yahoo.

O Google aceitou as demandas do governo chinês pela retirada de cada vez mais resultados durante quatro anos, até que em 2009 a companhia descobriu um sofisticado ataque cibernético originado na China para roubar códigos do Google e obter acesso a contas de Gmail de ativistas chineses dos direitos humanos.

O Google enviou LaJeunesse a Hong Kong em janeiro de 2010, como primeiro diretor de políticas para a Ásia. Ele negociou diretamente com o governo chinês, viajando semanalmente a Pequim durante meses.

As tensões eram fortes. Em conversa telefônica com Walker e David Drummond, hoje vice-presidente jurídico da Alphabet, a controladora do Google, LaJeunesse disse ter enfatizado suas preocupações com a segurança dos empregados da companhia na China.

Drummond respondeu, zangado, que não precisava de lembretes sobre o destino dos empregados chineses do Google, de acordo com LaJeunesse. Naquela noite, Walker ligou para LaJeunesse para animá-lo e garantir que ele estava fazendo a coisa certa, segundo LaJeunesse, recordando a experiência como um dos atos mais compassivos que ele viu durante seu período no Google. Drummond não respondeu a pedidos de comentários.

LaJeunesse “era basicamente o cara em que [a liderança do Google] confiou por dois anos e meio do relacionamento mais complicado que a companhia já teve”, disse William Fitzgerald, encarregado de comunicações na Google Cloud AI e que foi subordinado de LaJeunesse em Hong Kong. Fitzgerald deixou o Google em 2018 e criou a Worker Agency, uma companhia de consultoria de campanhas em San Francisco.

Pouco mais de um ano depois, porém, LaJeunesse conta ter sido procurado pela equipe do Google Maps, que queria lançar seu produto na China. Os novos planos para reingressar no mercado, que pareciam surgir a cada ano, eram impulsionados principalmente pelo medo de perder o controle sobre o Android, o sistema operacional de fonte aberta do Google para smartphones.

O Google não podia lançar uma loja de aplicativos ou operar uma versão oficial do Android, com a exigência de que os fabricantes chineses de celulares dessem a apps como o Google Search espaço na tela inicial.

Como líder de políticas do Google com relação à China, LaJeunesse intercedia quando as propostas causavam preocupações, como no caso do Projeto Sidewinder, que pretendia lançar uma loja de aplicativos para celulares Android na China.

Mas para o Google, o debate sobre a China era uma questão ainda mais importante. O mercado chinês representava não só a melhor oportunidade de conquistar mais um bilhão de usuários como também o futuro da inovação, talento e inteligência artificial. Em dezembro de 2017, o Google lançou um Centro de Inteligência Artificial acadêmico, em Pequim, o que alarmou LaJeunesse, porque ele sabia por experiência que na China não há distinção entre governo, empresas e academia.

LaJeunesse disse que estava sabendo do Projeto Dragonfly antes mesmo que o Google desse nome à ideia. Mas em 2017, diz, ele se sentiu alarmado ao perceber que a empresa estava levando seus planos adiante mesmo depois de ele ter alertado que o governo chinês requereria acesso aos dados dos usuários. Mais ou menos na mesma época, a divisão de computação em nuvem do Google estava levando adiante o Projeto Maven, um plano para oferecer tecnologia de visão computadorizada ao Departamento de Defesa americano para uso em drones, e estava em busca de possíveis contratos para oferecer serviço de computação em nuvem ao governo da Arábia Saudita, disse LaJeunesse.

Ele afirma que se convenceu de que o Google precisava adotar um programa formal de direitos humanos porque não tinha mais como se certificar de que ele ou sua equipe estariam presentes na sala ou que seus conselhos seriam ouvidos. LaJeunesse disse ter percebido uma expansão rápida e vigorosa dessas empreitadas perigosas no Google, e em países onde as leis são fracas, no exato momento em que os fundadores da empresa pareciam mais distantes das decisões e novos responsáveis assumiam o leme.

O Google afirma conduzir avaliações de impacto sobre os direitos humanos para todos os seus produtos e serviços.

Inicialmente, a visão de LaJeunesse quanto a um programa de direitos humanos era grandiosa. Enquanto ainda estava na Ásia, ele viu uma reforma nas regras de privacidade do Google por conta de um escândalo causado pela coleta de dados sobre redes Wi-Fi como parte do projeto Google Street View; a reforma incluía treinamento de pessoal quanto aos princípios da privacidade, e a criação de um posto de diretor de privacidade.

Em sua proposta inicial a Walker em junho de 2017, LaJeunesse mencionou que companhias como o Yahoo haviam adotado programas de direitos humanos apenas depois de desastres nessa área. O Google tinha a oportunidade de assumir a liderança e de alardear o trabalho de direitos humanos que já vinha fazendo, por exemplo o papel da empresa na criação da Global Network Initiative, uma união de empresas, organizações sem fins lucrativos e organizações acadêmicas que faz verificações de direitos humanos e publica um relatório anual.

“Eu estava muito consciente de que podíamos usar aquela narrativa internamente para orientar as conversações e para iniciar conversações que precisávamos manter, como a da decisão sobre o projeto Dragonfly”, disse LaJeunesse. “Podíamos afirmar que tínhamos um compromisso para com aquilo e que o melhor era fazê-lo. Se não, seríamos muito criticados”.

Mas depois de ver a cara de Walker quando ele apresentou a ideia inicialmente, LaJeunesse disse que decidiu moderar sua proposta, reclassificando a ideia como uma “narrativa” sobre direitos humanos. LaJeunesse manteve uma parte vital de seu grande plano: pedir que o Google anunciasse publicamente seu compromisso para com padrões legais estabelecidos.

Nos dois anos seguintes, diz LaJeunesse, Walker expressava constantemente novas reservas ou dúvidas, sem nunca vetar o projeto de vez. Em resposta ao primeiro memorando oficial de LaJeunesse, Walker afirmou que o melhor seria que as equipes de produto lidassem com os direitos humanos. “Lidar com cada uma das questões com base em seus méritos provavelmente vai parecer mais centrado e autêntico, e se enquadrará melhor ao foco de Sundar em produtos”, escreveu Walker em um email a diversos executivos em junho de 2017, mencionando o presidente-executivo do Google.

“É como areia movediça. Você fica atolado nessa falta de confronto, nessa falta de clareza”, disse LaJeunesse.

O presidente do Google, Sundar Pichai ,fala em cerimônia no Texas (EUA), em outubro - Brandon Wade/Reuters

Quando o Google enfrentou crises de relações públicas por conta dos projetos Maven e Dragonfly, LaJeunesse tentou reformular sua proposta de maneiras que ele acreditou pudessem torná-la palatável para seus superiores na empresa. Enviou auxiliares a reuniões sobre a formação de um conselho de ética de inteligência artificial, em lugar de comparecer pessoalmente, na esperança de que o Google se mostrasse mais receptivo caso as sugestões não viessem dele.

O Google disse que suas decisões são orientadas por um conjunto de princípios sobre inteligência artificial adotado em junho de 2018, segundo o qual a empresa não projetará ou operará inteligência artificial em tecnologias cujo propósito contradiga “princípios amplamente aceitos de lei internacional e direitos humanos”.

“Sempre fui muito construtivo. Não sou um lança-chamas. Sempre acreditei que o melhor jeito de fazer as coisas é trabalhar com as pessoas”, disse LaJeunesse. “Mas o que vi foi uma série de desculpas, uma após a outra”, que incluíam até a decisão sobre em que blog da empresa a declaração seria publicada.

Em fevereiro, LaJeunesse foi informado de que seu posto seria eliminado como parte de uma reorganização do escritório do Google em Washington, que incluiria mudar a área de atuação de dois dos membros de sua equipe que se concentravam nos direitos humanos. O Google lhe ofereceu o posto de líder de instituições de política externa, que soou para LaJeunesse como uma posição de lobby.

Antes da reforma da equipe de Washington, ele tinha uma equipe de 23 pessoas que trabalhavam em questões que variavam da segurança de eleições na América Latina à luta com a Rússia e a China sobre o futuro da internet, passando pelo desenvolvimento de relações com as diversas organizações da sociedade civil que protestam contra o Google.

Três meses depois da saída de LaJeunesse, em uma audiência no Senado sobre o Google e censura por meio de sistemas de busca, a companhia depôs que o projeto Dragonfly havia sido “encerrado”. Mas o Google não descartou os planos de relançar seu serviço de buscas na China.

“No exato momento em que precisávamos de uma lente de direitos humanos para todas as nossas atividades, caminhamos na direção oposta”, disse LaJeunesse. 

​The Washington Post, tradução de Paulo Migliacci

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