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Paulo Miguel

Aceitar o que propõe Nelson Barbosa doerá mais

Para começar, é contraproducente misturar a definição das medidas para lidar com a crise sanitária e suas consequências com a tese de abandono do teto

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Paulo Miguel

Economista, é diretor da Julius Baer Family Office

O ex-ministro da Fazenda voltou à carga em artigo na Folha para derrubar o teto de gastos, desta vez por meio de uma proposta de emenda à constituição (a PEC 36/2020) de iniciativa do PT e assinada por 31 senadores.

A proposta amplia o gasto primário federal até 2022, retirando do teto certas despesas com saúde, educação, crédito para pequenas e médias empresas, transferências de renda para manter ou substituir o auxilio emergencial e ampliação dos aportes no bolsa família. A partir de 2023, seria eliminada a regra constitucional do teto em favor de metas de gasto definidas em planos plurianuais.

A proposta é ruim. Para começar, é contraproducente misturar a definição das medidas para lidar com a crise sanitária e suas consequências com a tese de abandono do teto. Uma calamidade pública exige ações emergenciais, não a alteração da regra estrutural que sinaliza compromisso com a solvência e viabiliza ação até mais agressiva a curto prazo. O Brasil, aliás, está entre os que mais gastaram neste ano para minorar os impactos sociais da pandemia.

Abrir mais espaço para investimentos, embora desejável, também não seria sem riscos. Temos um histórico ruim nessa área. Estaleiros parados e refinarias inacabadas da era petista são testemunho de que investimentos mal feitos e corrupção destroem capital e deixam um legado de dívidas. A ressaca dessa farra está associada à profundidade da recessão de 2015 e 2016.

O impulso para a economia, mesmo no cenário de execução competente de obras, depende de não haver disparada do dólar e dos juros por conta da desconfiança quanto ao compromisso do governo e do Congresso com a responsabilidade fiscal. Infelizmente, hoje há essa desconfiança. Estamos na iminência de uma aceleração inflacionária, que virá se não retornarmos ao teto no ano que vem. Há espaço para prolongar algumas medidas extraordinárias, mas é necessário reforçar o funcionamento dos gatilhos de ajuste das despesas obrigatórias.

Daí que o mais perigoso da proposta é o que viria a partir de 2023 quando as restrições da emenda constitucional 95 fossem descontinuadas em favor de regras de gasto definidas em planos plurianuais, por meio de leis ordinárias, no início de cada mandato presidencial.

Nada contra um novo (ou nova) presidente negociar com o Congresso um orçamento, exercício fundamental da democracia é que já ocorre hoje, mas a PEC não garante o principal. Passar com sucesso para um regime de restrições legais mais fracas depende de uma série de condições precedentes que ainda não estão satisfeitas.

Não é suficiente, por exemplo, prever que haverá meta geral de despesas definida com base na trajetória para a dívida pública partir de 2023, pois é preciso dispor de instrumentos para tal controle, o que pressupõe um conjunto amplo de reformas. A possibilidade de revisão de gastos também virará letra morta se não estiver alicerçada num processo de fato aberto a cortes em programas obsoletos, algo que hoje não existe.

A indisposição até agora demonstrada para mexer em qualquer despesa que afronte grupos de interesse não é um bom prenúncio. Se já é assim na vigência do teto, sem ele o espaço para que os conflitos sempre se resolvam com aumento de despesa e ainda mais carga tributária ficará maior.

O teto tem trazido um bom problema: explicitar as restrições e forçar um debate sobre despesas, que poderá (se conduzido seriamente) dar inédita voz aos mais pobres. A desigualdade de acesso ao orçamento, afinal, foi gestada antes de sua vigência e não será corrigida apenas com sua abolição.

Uma reformulação do teto pode ser pensada como ponto de chegada de um amplo conjunto de reformas fiscais, que inclusive pode envolver mais impostos progressivos. Mas inverter a ordem dos fatores e mexer na principal âncora fiscal sem oferecer um arcabouço crível de controle, na conjuntura atual em que a dívida pública se aproxima de 95% do PIB em trajetória explosiva, é a receita para a ruína financeira e para um desastre social.

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