Brasil desperdiça metade do talento das crianças, diz diretora do Banco Mundial

Pandemia agravou a situação; órgão libera empréstimo de US$ 1 bilhão para o Bolsa Família

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São Paulo

O Brasil desperdiça quase metade do talento que suas crianças poderiam adquirir à medida que crescem por não lhes dar educação e saúde de melhor qualidade.

Segundo o Banco Mundial, que fez o cálculo, a geração nascida em 2019 deveria chegar ao mercado de trabalho no futuro, em média, com apenas 55% do seu potencial produtivo desenvolvido.

Mas o cenário ruim piorou com a pandemia do coronavírus, que tirou as crianças da escola e dificultou o acesso das famílias a serviços de saúde.

“Há uma expectativa de que esse potencial produtivo tenha sido afetado, considerando a perda de aprendizagem, porque as crianças não estão indo às escolas e a qualidade do ensino remoto é muito desigual”, diz Paloma Anós Casero, que assumiu o posto de diretora do Banco Mundial para o Brasil em agosto passado.

A diretora do Banco Mundial para o Brasil, Paloma Años Casero - Pedro Ladeira/Folhapress

Em entrevista à Folha, a economista espanhola disse que a preocupação com o futuro de crianças e jovens brasileiros e o risco de aumento da pobreza no país levou a instituição a condicionar a aprovação de empréstimo de US$ 1 bilhão ao Brasil à expansão do Bolsa Família.

Os recursos solicitados pela gestão de Jair Bolsonaro (sem partido) no auge da pandemia foram liberados nesta sexta-feira (30) pelo Conselho de Diretores do Banco Mundial e serão destinados à incorporação, por dois anos, de 1,2 milhão de famílias que estavam na fila de espera do programa.

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Por que o Banco Mundial condicionou a aprovação desse empréstimo à expansão do Bolsa Família?

A pandemia da Covid atingiu o Brasil em um momento em que o país ainda sentia as consequências da recessão de 2014 a 2016.

Embora a economia já estivesse se recuperando em termos do PIB, o nível de pobreza e a taxa de desemprego ainda não haviam retornado ao patamar anterior à crise.

Sem as medidas de mitigação que o governo lançou, nossas simulações mostram que esse choque poderia ter levado, praticamente, 5 milhões de brasileiros a caírem na pobreza. Da mesma forma, a desigualdade medida pelo índice de Gini poderia ter aumentado 2%, chegando a 54,2.

Aí, vem essa resposta do governo brasileiro —que este projeto do Banco Mundial também está apoiando— que entra com um pacote de estímulo fiscal significativo, adotado rapidamente, principalmente com o auxílio emergencial. Com isso, o governo vai conseguir mitigar muito esse impacto sobre a pobreza em 2020.

Mas a pandemia ainda não acabou e as medidas emergenciais terminarão no fim deste ano, com um mercado de trabalho ainda muito fraco.

Nossa preocupação é que a pobreza [considerando a linha dos que vivem com menos de US$ 5,5 por dia] pode aumentar, segundo nossas estimativas, para 21,5% em 2021. Em 2019, estava em 20%.

Nesse contexto, era muito importante para o Banco Mundial apoiar as autoridades na expansão do programa Bolsa Família de forma contracíclica. Então, estamos apoiando esse novo fluxo de famílias, que já estavam na lista de espera.

Há uma fila de 1,2 milhão de famílias, ou cerca de 3 milhões de indivíduos. Muitos deles muito vulneráveis. Há muitas mulheres, crianças, populações indígenas. Neste ano, elas foram beneficiadas pelo auxílio emergencial, mas, em 2021 e 2022, precisarão de apoio continuado.

É claro que também preocupa que, além dessas 3 milhões de pessoas, outras podem ser afetadas pela crise.

Que aspectos do Bolsa Família fazem do programa o melhor instrumento para isso?

É um programa muito efetivo, custa menos de 0,5% do PIB e alcança quase um quarto da população brasileira. É bem focalizado, 70% dos recursos do programa ficam com os 20% mais pobres da população.

Então, ele reduz de forma significativa a pobreza extrema e alivia a pobreza geral. Tem também efeitos significativos sobre capital humano.

Durante a pandemia, as condições para receber o programa, obviamente, tiveram de ser relaxadas [a contrapartida para que as famílias recebam o Bolsa Família é manter as crianças na escola e o acompanhamento de sua saúde], porque esses serviços não estão sendo providos à população. Mas uma vez que esses serviços sejam regularizados, as contrapartidas do Bolsa Família voltam a valer.

Por que o empréstimo cobre dois anos? 

O programa tem critérios de entrada e saída. Nosso financiamento apoia os benefícios até a saída dessas famílias. A mensagem é que estamos apoiando a expansão contracíclica do Bolsa Família. Estamos apoiando esse fluxo de famílias adicionais que não estavam previstas em uma situação que não fosse de crise.

Mas essas famílias já estavam na fila porque tinham sido afetadas pela crise anterior, não?

Você tem razão que as famílias que estavam na fila sofriam ainda as consequências da crise anterior e o Covid as colocou em uma posição mais vulnerável. Mas são famílias que são afetadas pelas crises em geral. Se você tem uma situação normal de retomada econômica forte, o governo terá condições de ter recursos próprios.

Nós desenhamos a operação com flexibilidade porque não temos certeza se haverá mais famílias que vão ficar em situação de pobreza.

O que significa essa flexibilidade?

Que esse projeto pode se adaptar. Podemos apoiar, talvez, a entrada de mais famílias.

O empréstimo poderá ser aumentado?

Por enquanto, são esses recursos, mas que podem ser alocados de forma diferente. Por exemplo, podemos ter mais famílias por um período mais curto, e o governo entraria no final com apoio complementar.

Como o Banco Mundial avalia o andamento de reformas para aliviar o agravamento da pobreza que já ocorria antes da pandemia?

O Brasil já tinha feito reformas antes da pandemia, que talvez esqueçamos agora. Houve a Reforma da Previdência, o teto de gastos, o regime de metas de inflação. Tudo isso permitiu o país ter uma credibilidade que viabilizou a resposta das políticas fiscais e monetárias para combater a pandemia.

Isso deu um espaço ao governo a responder de forma contracíclica. Mesmo com uma depreciação muito forte do real, a inflação e o risco soberano ficaram contidos.

Outro ponto importante é que o orçamento de 2021, apresentado ao Congresso, inclui a expansão do Bolsa Família, mas cumpre também com os parâmetros da âncora fiscal. Isso dá credibilidade para o próximo ano.

Mas, de novo, temos incertezas. As medidas emergenciais vão expirar. A pobreza pode voltar a aumentar em 2021. É claro que a gente estima uma retomada econômica em 2021, com crescimento de 1,3%, mas, com essa fraqueza do mercado de trabalho e com as tendências de produtividade de médio prazo no Brasil, a preocupação ainda é manter as reformas tanto para continuar o compromisso fiscal como para manter o crescimento da produtividade.

O Brasil não tem conseguido aumentar sua produtividade. Como vocês veem as perspectivas de avanço dessa agenda?

Há dois desafios importantes. Um deles é a produtividade laboral, sobretudo dos jovens. Nossos estudos mostram que uma criança nascida no Brasil, em 2019, vai chegar ao mercado de trabalho com apenas 55% do seu potencial produtivo. Isso é muito talento desperdiçado.

Como é feita essa conta?

Considera todos os investimentos que a criança tem em termos de educação, de nutrição.

Em países totalmente desenvolvidos, como Singapura, Coreia e Noruega, o potencial atingido é acima de 80%. Na América Latina, a média também é 55%, mas há países como Chile e Costa Rica próximos a 60%, 65%.

Claro que há muita heterogeneidade no Brasil. Há municípios mais ricos do Sudeste onde esse índice é superior a 70%, similar ao da França. E há outros onde ele é 40%, próximo de países africanos, como o Maláui.

Mas o fato é que há uma grande produtividade perdida no Brasil. Quase a metade da produtividade poderia aumentar se houvesse investimentos adequados em capital humano.

Quase a metade das crianças de 10 anos no Brasil não conseguem interpretar um texto simples.

A pandemia reduziu mais esse potencial produtivo de apenas 55% dos jovens brasileiros?

Ainda não temos os dados precisos, mas há uma expectativa de que ele tenha sido afetado, considerando a perda de aprendizagem porque as crianças não estão indo às escolas e a qualidade do ensino remoto é muito desigual. Vai haver um impacto seguramente.

Por isso quisemos ajudar as famílias a ter o mínimo necessário para que não se agrave essa situação. O risco é que muitas crianças não voltem às escolas, que jovens deixem de terminar o ensino médio porque vão precisar trabalhar.

Há também uma preocupação com um aumento da exclusão digital?

A pandemia acelerou a transformação digital e isso traz oportunidades.

O desafio é que os dividendos digitais ainda não estão compartilhados com todos. Se você não tem acesso à internet ou não tem os conhecimentos para essa maior adoção digital, se você não tem regulamentações que garantam concorrência nas empresas, a lacuna digital vai aumentar.

É preciso entrar nessa agenda, investir não só em internet de alta velocidade a preços acessíveis, mas também em políticas de conectividade para todos.

Como o Banco Mundial avalia o andamento das reformas macroeconômicas e dessa agenda de produtividade e inclusão no Brasil?

Tem de continuar com as reformas da área macroeconômica porque a situação fiscal, tanto federal quanto subnacional, ainda tem de ser priorizada. Os próximos anos darão uma janela de oportunidade para manter essa dinâmica de reformas. Reformas estruturais como a independência do Banco Central, a tributária e a administrativa também são necessárias.

Também é importante continuar os esforços, que começaram antes da pandemia, para abrir a concorrência em setores de infraestrutura chaves.

É normal numa democracia como o Brasil que agendas colocadas pelos ministérios sejam discutidas no Congresso. O contexto político é tal que o país precisa de reformas que mantenham a credibilidade soberana, apoiem as famílias mais vulneráveis e mantenham o compromisso com reformas que podem aumentar a produtividade.

Esse é um debate importante que o Brasil tem de ter.​

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