Domésticas fazem por app curso sobre Previdência Social e direitos trabalhistas

Aplicativo premiado pela ONU ajuda a calcular horas extras, explica benefícios e permite denúncias

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Porto Alegre

Uma criança cuidava de outra criança. Com apenas 11 anos, Hélcia da Costa Reis Gomes teve seu primeiro trabalho: babá. “Isso era comum em um lugar onde as pessoas eram muito pobres”, relembra, aos 56 anos, sobre o tempo que vivia em Contagem, Minas Gerais, e já colaborava com o orçamento da família.

Quando seu pai de Hélcia deixou a família, sua mãe decidiu se mudar para São Paulo com os cinco filhos. Empregada doméstica, a mãe caminhava uma hora e 30 minutos para chegar na casa dos patrões. Hélcia era a mais velha e, aos 15 anos, passou a trabalhar na mesma casa e seguir a mesma rotina de deslocamento a pé.

“Era muito diferente, não tinha carteira registrada e condução”, compara Hélcia, também doméstica. Em compensação, agora vê outras injustiças. “Mesmo grávida, a funcionária de uma casa próxima do meu trabalho não podia comer”, conta a moradora do bairro Parque Fernanda, na zona sul de São Paulo.

Hélcia agora sabe que empregadas domésticas, caso não recebam as refeições, devem ganhar o vale-alimentação. Ela é uma das 400 trabalhadoras domésticas do país que participaram da capacitação Domésticas com Direitos, um curso pelo Whatsapp, com certificação. A formatura online foi realizada em 30 de outubro.

Hélcia da Costa Reis Gomes, 56, que trabalha como doméstica desde os 11 anos de idade - Ronny Santos/Folhapress

A formação foi promovida pela ong Themis, com sede em Porto Alegre, e pela Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), com apoio financeiro da Agência Francesa de Desenvolvimento. As trabalhadoras aprendem sobre previdência e direitos trabalhistas como férias e horas-extras, além de feminismo e direitos humanos.

A PEC das Domésticas (66/2013) determina jornada de trabalho de oito horas diárias, com direito a hora-extra. Aqueles com carteira assinada passaram a ter direitos como salário-maternidade e auxílio-doença. Com a Lei Complementar 150, de 2015, domésticas passaram a ter direito a Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e seguro-desemprego, por exemplo.

“Comecei a estudar mais sobre a convenção coletiva. Nem sabia que existia isso. Aprendi que a convenção abrange todo mundo que trabalha naquela função, é para toda a classe”, diz Hélcia, que agora pretende se sindicalizar. “É como tirar um véu das vistas da gente”, diz.

A trabalhadora também conta que aprendeu não apenas os seus direitos, mas “de todos, os direitos humanos”.

Durante o curso, ela estudou no turno da noite, após chegar em casa depois de uma jornada que inicia às 7h30 e termina às 17h. Ela imprimiu o conteúdo das aulas e acompanhou os áudios e vídeos, tudo por Whatsapp.

Em março, o Brasil tinha 5,9 milhões de pessoas ocupadas no trabalho doméstico, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Contínua (Pnad C) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em junho, o número caiu para 4,7 milhões, uma perda de 1,2 milhão de postos de trabalho doméstico durante a pandemia.

A maioria dos trabalhadores domésticos são mulheres, representando 92% dos 6,2 milhões empregados na área em 2018, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A maior parte delas, negras (3,9 milhões).

Além do curso, a Themis e a Fenatrad desenvolveram um aplicativo para celular com esclarecimentos sobre todos os direitos. O app ganhou o nome de Laudelina, em homenagem à mineira Laudelina de Campos Melo (1904-1991), que criou, em 1936, a Associação de Trabalhadores Domésticos do Brasil.

O aplicativo foi premiado na última semana em Genebra, na Suíça, com a distinção do Equals in Tech Awards, da ONU (Nações Unidas). O prêmio reconhece iniciativas que promovam a igualdade de gênero.

O aplicativo já foi baixado 17.700 vezes e 4.500 usuárias estão usando o recurso ativamente. “Entre as funcionalidades, está a opção de interação com outras trabalhadoras próximas. Isso é possível por geolocalização. Este contato é especialmente importante em cidades onde não existe sindicato. É uma categoria que trabalha cada uma em uma casa, diferente de outras categorias que compartilham o espaço e se organizam coletivamente”, explica Jéssica Miranda Pinheiro, 31, coordenadora de projetos da Themis.

Por meio do aplicativo, é possível fazer denúncia de abusos no trabalho diretamente ao Ministério Público do Trabalho (MPT). “Quando ela sabe dos direitos, elA vai estar empoderada para conversar com seus empregadores. A maioria dos patrões não conhece a Lei Complementar 150. Alguns, então, não cumprem porque não tem conhecimento. Eles também podem baixar o aplicativo. A trabalhadora pode não ser uma bacharel em direito, mas terá as informações sobre os direitos conquistados por toda categoria” , diz Luiza Batista, presidente da Fenatrad.

A Fenatrad tem 18 sindicatos filiados. No total, são 12.352 domésticas sindicalizadas no país. Segundo a presidente, as contribuições são praticamente voluntárias porque a Reforma Trabalhista retirou a contribuição sindical obrigatória. Sem isso, as diretoras dos sindicatos ou são aposentadas, como Luiza — ela trabalhou 26 em uma única casa — ou diaristas que se alternam entre faxinas e atendimento no sindicato, enfraquecendo a categoria,

Assim como Hélcia, que foi babá na infância, Claudete Munhoz de Jesus trabalhou cuidando crianças na fase em que deveria brincar e estudar. Dos 7 aos 10 anos, ela foi babá em Dom Pedrito, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Depois, aprendeu a limpar e cozinhar, enquanto morava com uma idosa.

Hoje, aos 50 anos, e morando em Porto Alegre ela foi uma das 400 domésticas que realizaram o curso.“Não imaginava que tinha tantos direitos, especialmente a questão dos horários. Na nossa profissão, é comum ter hora para entrar, mas não para sair. Ser doméstica não é ser domesticada”, diz.

Com as aulas sobre igualdade de gênero e feminismo, ela também conta que “descobriu que sempre foi feminista”.

“Não tive a chance de cursar uma faculdade, mas tive a faculdade da vida. Precisamos ser respeitadas como funcionárias e mulheres. Às vezes a gente sabe mais sobre o patrão do que a própria família”, afirma Claudete.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.