Descrição de chapéu Entrevista da 2ª

É preciso diversidade para fazer ciência e gerar mais soluções, diz Marcia Barbosa

Pesquisadora da UFRGS e ativista pela igualdade de gênero, física figura em lista da ONU com 7 cientistas que moldaram o mundo

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Porto Alegre

Feminis​ta e pesquisadora do Instituto de Física da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), a pesquisadora Marcia Barbosa, 60, figura em uma lista da ONU com as sete principais cientistas que moldaram o mundo ao lado de nomes célebres como o da francesa Marie Curie e o da americana Katherine Johnson.

Ainda assim, não foram raros os momentos da sua carreira em que foi criticada, inclusive por suas roupas e por usar minissaia. A peça acabou se tornando uma marca registrada. “É uma coisa que procuro trazer como resistência. Cada um tem que se vestir como quiser. Mas até hoje continuam me incomodando por causa desse assunto.”

Ativista da igualdade de gênero na academia, a física defende que essa não pode ser uma questão secundária. “É preciso diversidade para fazer ciência, é preciso gente diferente pensando para ter mais soluções”, diz.

Em suas pesquisas, a cientista se fascina com a água e com o fato de o gelo flutuar sobre o líquido e com a demora para ferver a água em comparação a outros materiais. Podem parecer comportamentos comuns, mas Barbosa diz que eles impactam a própria existência humana.

A física Márcia Cristina Barbosa, a única brasileira na lista de sete mulheres cientistas da ONU, em foto no campus da UFRGS
A física Márcia Cristina Barbosa, a única brasileira na lista de sete mulheres cientistas da ONU, em foto no campus da UFRGS - André Feltes/Folhapress

Por que estudar a água é tão fascinante? Toda vez que falo para as pessoas que estudo a água, elas dizem: “Água? É tão comum, a gente já sabe tudo sobre a água”. Na verdade, não sabemos muitas coisas. Quando a gente põe um gelo em um copo com água, o gelo flutua. Mas os outros materiais, quando estão na fase sólida e são colocados na fase líquida, afundam.

É muito importante o gelo flutuar na água porque isso permite que a vida sobreviva quando o ambiente é muito frio. Houve um momento em que o planeta inteiro era congelado e tinha essa possibilidade de ter água embaixo. Aliás, essa é a possibilidade que a gente procura quando investiga vida fora do planeta.

O que é uma anomalia da água? Falei de uma anomalia [o gelo flutuar], porém, são mais de 70. Anomalia é algo que a água faz diferente dos outros [materiais]. Como a gente convive com a água no cotidiano, a gente acha que aquilo é o normal, mas não é. Não é normal a fase sólida flutuar na líquida, mas isso é o que permite ter vida. Todos esses quesitos implicam em alguma coisa que nos ajuda a viver.

O calor específico, por exemplo, que é a quantidade de calor que tu tens que dar para uma coisa para subir um grau na temperatura. Imagine a quantidade de gás de cozinha para ferver a água. O calor específico da água é alto. Significa que tenho que dar muito calor, muito mais que qualquer outro material simples que existe na natureza. No caso dos oceanos, a água se torna um grande regulador, no sentido de que as temperaturas não flutuam tanto.

Qual dessas anomalias a senhora pesquisa? Me dedico mais ao estudo da anomalia na mobilidade. As moléculas de água em temperaturas baixas ou em confinamento têm a propriedade de se mover muito rápido. Se eu pegar moléculas de água e deixar elas mais juntinhas, as partículas vão se mover mais rápido. Como se alguém colocasse mais carros no trânsito e eles se movessem mais —obviamente os carros não funcionam assim, mas a água funciona.

Nosso grupo de pesquisa desenvolve simulações, experimentos computacionais. Quando comprime as moléculas de água, elas se movem mais rápido.

O estudo sobre essa anomalia pode ter aplicação? Começamos a olhar o que acontece com a água quando a confino em estruturas muito pequenas, nanométricas. Para teres uma ideia do que é um nanômetro, imagine um fio de cabelo fatiado na transversal em 60 mil vezes. Com esses diâmetros tão pequenos, a água atravessa em uma velocidade que as teorias clássicas que valem para o ambiente macroscópico não conseguem explicar.

Começamos a fazer trabalhos para entender como a gente pode usar isso. Descobrimos que a água flui pelos nanotubos, mas o sal não. A gente pode construir um filtro de dessalinização usando essa propriedade. Nosso foco é pensar mecanismos novos para limpeza de água.

Como seu nome chegou à lista de sete cientistas que moldaram o mundo divulgada pela ONU Mulheres? Não tenho ideia! [risos]. Eu vi como todo mundo viu, levei um susto e pensei: “O que estou fazendo aí?” Tenho suspeitas que procuraram em diversas partes do mundo e, ao olhar para a América Latina, [me encontraram].

Estou muito na internet, ganhei o prêmio L’Oréal-Unesco em 2013, e raramente uma cientista de ciências exatas, duras, é muito feminista. Minha leitura pessoal é que a ONU quis mostrar esse caráter transversal. Mas, obviamente, não estaria na lista se a ciência que faço não tivesse impacto.

A senhora disse que raramente uma cientista de exatas é feminista. Como despertou seu feminismo? Sou filha da classe média baixa, estudei em escola pública, entrei na universidade em uma época que as pessoas não vinham da escola pública e no momento que tinha uma ditadura no Brasil.

Foi preciso conquistar a representação discente, conquistar uma voz dentro da universidade, se perceber mulher em um meio em que não tinha estudantes do sexo feminino, perceber que as mulheres não estão em posição de poder dentro da estrutura acadêmica ou política e entender que alguma coisa a gente tem que fazer para mudar.

Como esse feminismo se desenvolveu depois? Tive uma grande oportunidade em 2000, quando a União Internacional de Física resolveu perguntar por que havia tão poucas mulheres na física. Foi montado um comitê para estudar o problema, e o presidente da Sociedade Brasileira de Física indicou meu nome.

Construímos 65 grupos de mulheres no mundo inteiro, gosto de chamá-los de pequenas células terroristas. Dentro da própria união foi uma bomba. Não tinha nenhuma mulher no conselho, daí começou a ter mulher, tiveram uma presidente. Cada comitê tinha que ter mulher, cada conferência que financiavam tinha que ter mulher. Por causa desse movimento, em 2009 ganhei a medalha Nicholson da Sociedade Americana de Física.

A física Marcia Barbosa, a única brasileira na lista de sete mulheres cientistas da ONU, fotografada no campus da UFRGS
A física Marcia Barbosa, a única brasileira na lista de sete mulheres cientistas da ONU, fotografada no campus da UFRGS - André Feltes/Folhapress

No ano passado uma cientista ouviu de um colega de mesa que deveria ler um artigo escrito por ela mesma. Isso é comum?“Mansplaining”, “manterrupting”... Não adianta ficar velha que não se está a salvo disso. Temos que montar estratégias de proteção. Tem que ter, pelo menos, duas mulheres na sala. Quando o cara começa a fazer isso [interromper ou ensinar algo a uma mulher com domínio no tema], a segunda mulher diz: “Espera um pouco, deixa ela terminar”. Estamos começando a ter isso. Temos que falar sobre as coisas.

Gosto muito disso nessa geração. A minha geração não falava, engolia e seguia em frente para sobreviver. A nova geração não engole. Fala e não está nem aí que chamem de mimimi.

Não é uma questão secundária. É preciso diversidade para fazer ciência, é preciso gente diferente pensando para ter mais soluções. A diversidade é uma força, não é uma fraqueza.

Além da pesquisa em água, faço trabalho científico sobre gênero, publico artigos. Mesmo sem nunca ler ou escrever sobre o tema, mas como são homens, eles acham que podem vir me explicar por que existem poucas mulheres [na ciência].

Como a senhora responde? Minha resposta é sempre “não acho nada, tenho evidências, olha aqui meus dados”. E daí soterro a pessoa de dados. Porque se é uma pessoa da área de ciências, ela entende dados.

A senhora já passou por assédio? Já sofri assédio moral inúmeras vezes, casos em que pessoas atribuíram o sucesso do meu trabalho a características físicas. “Ela chegou na Academia porque usa saia curta” ou “perdi aquela discussão porque teu perfume me atrapalhou”. Até o ato mesmo de a pessoa tentar usar seu poder acadêmico para conseguir favor sexual. Por muito tempo essa pessoa atrapalhou minha vida científica.

A senhora mencionou o uso de saia curta. É uma marca da senhora? Um tipo de protesto? Muito. Lá de trás. Assim que comecei a sair do Brasil, apresentar pôster, as estrangeiras me diziam: “Márcia, te veste mais como um homem que vai sofrer menos”. É mentira, não vai sofrer menos. Não, não vou me limitar porque o outro pode pensar x, y e z. É problema do outro.

A minissaia virou uma marca registrada. Minha sobrinha brinca que vou estar com 80 anos usando minissaia e aquelas meias Kendall [risos]. É uma coisa que procuro trazer como resistência. Cada um tem que se vestir como quiser. Mas até hoje continuam me incomodando por causa desse assunto.

A senhora imaginava que testemunharia retrocessos na área social? Quando no país um ministro da Economia ia falar mal da esposa de um presidente de outro país? Cada vez que eu saio [do país] é uma vergonha. Coisa que não sentia antes, nem nas primeiras vezes que saí do país, quando o Brasil era “subsubdesenvolvido”. Essa vergonha a gente está passando. E essa vergonha se transfere em menor investimento.


MARCIA BARBOSA, 60

Professora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi incluída pelas Nações Unidas em uma lista de sete cientistas que moldaram o mundo, ao lado de nomes célebres como Marie Curie e Katherine Johnson. Em 2019, foi eleita para a Academia Mundial de Ciências. Em 2013, ganhou o prêmio L’Oréal-Unesco de mulheres com destaque na ciência

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