Descrição de chapéu Caixin

'Sangue e suor' não compensam para o exército de entregadores da China

Aplicativos de delivery multiplicam entregas na pandemia e não oferecem direitos trabalhistas

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Pequim | Caixin

Em janeiro, um entregador de comida da firma especializada em refeições para delivery Ele.me, do grupo Alibaba, se incendiou na frente de uma loja na cidade de Taizhou, no leste do país.

Pessoas de lojas próximas ajudaram a apagar as chamas, mas o entregador, chamado Liu, que transportava comida para o serviço Fengniao, da Ele.me, na província de Jiangsu, se recusou a ser levado ao hospital enquanto não conversasse sobre o dinheiro que lhe deviam por seu "sangue e suor".

Quando a Covid-19 assolou a China e mergulhou partes do país em lockdown no ano passado, os entregadores se tornaram essenciais. Apesar de sua contribuição, muitos ainda não têm as mesmas proteções trabalhistas que os empregados de firmas mais formais.

A provação de Liu é apenas uma história que chamou a atenção para as péssimas condições que milhões de trabalhadores do setor de serviços menores da China enfrentam.

Entregadores da empresa Ele.me
Entregadores da empresa Ele.me se reúnem antes de iniciar seu dia de trabalho em Pequim, em 8 de março de 2021 - GREG BAKER / AFP

Ele faz parte da legião de migrantes internos que antes encontravam trabalho na construção e em fábricas, mas hoje sofrem condições difíceis entregando comida e encomendas em velocidades arriscadas. Frequentemente eles trabalham muitas horas a mais, sem ganhar extras, e têm poucos recursos quando entram em disputas com os patrões.

"A mão de obra que hoje trabalha para as plataformas de entregas de comida é a mesma que trabalhava na Foxconn uma década atrás", disse um veterano da indústria de mão de obra que pediu para não ser identificado, referindo-se à gigante industrial que monta aparelhos para a Apple.

As fábricas da Foxconn foram palco de vários suicídios no começo da década passada, e em 2010 o presidente da companhia, Terry Gou, foi obrigado a negar que a firma tivesse pedido para os funcionários assinarem documentos declarando que não pretendiam cometer suicídio.

Além de contratar empregados regulares com horário fixo, as companhias de internet hoje muitas vezes usam plataformas de serviços terceirizadas para empregar grande número de "trabalhadores temporários" com horários flexíveis.

Essa nova "economia gig" usa tecnologias de dados e de celular para rapidamente combinar a oferta de mão de obra com a demanda, criando um novo segmento da economia que o governo considera um gerador de empregos.

Atualmente, Meituan e Ele.me, que operam os mais populares serviços de entregas na China, têm cada uma quase 1 milhão de trabalhadores ativos mensais.

A Meituan tem cerca de 3,99 milhões de entregadores registrados, número que cresceu mais de 2,1 milhões desde o início da pandemia. A Ele.me tem 850 mil entregadores ativos mensais, de 3 milhões registrados.

No terceiro trimestre do ano passado, o valor bruto de transações das entregas da Meituan aumentou 36% em base anual, e o lucro operacional de seu negócio de entrega de comida saltou para 768,5 milhões de yuans (US$ 117,9 milhões), contra 330,9 milhões de yuans no mesmo período em 2019, segundo os resultados divulgados.

"Uma pessoa pode ganhar dinheiro desde que trabalhe duro" é o mantra do entregador de comida Sun Bao (nome fictício), que trabalha quase 12 horas por dia e pode completar até 52 entregas diárias. Sun disse que precisa economizar pelo menos 7.000 yuans por mês para que sua mulher possa criar os filhos gêmeos em sua cidade natal.

Sun não considera benefícios como seguro-saúde quando vai tratar de um emprego. A Meituan, que o emprega diretamente, deduz mais de 160 yuans de seu salário todo mês para pagar o "seguro comercial" que supostamente cobre todos os seus entregadores por acidentes e ferimentos relacionados ao trabalho. Para Sun, é uma grande despesa.

O modelo de empregar trabalhadores temporários predomina entre as plataformas de internet na economia compartilhada, que usa serviços da plataforma de trabalhadores temporários para não ter que pagar tanto em custos sociais.

Embora eles possam trabalhar mais tempo e ganhar mais sob o modelo de "taxa por unidade", baseado no número de entregas feitas, a maioria não recebe os benefícios padrão como seguro-saúde e contra ferimentos que os empregados formais recebem.

"O mercado de trabalho para empregos flexíveis é dominado por novas empresas. Devido às baixas barreiras para entrar, essas companhias tentam conseguir uma vantagem competitiva fazendo a menor proposta possível às plataformas", disse o mesmo especialista em mão de obra.

Elas podem fazer isso porque não têm de pagar os custos de benefícios aos trabalhadores como seguro social, disse o especialista.

Hao Zhengxin, advogado que há muito tempo fornece assessoria jurídica para trabalhadores temporários, disse que para o objetivo desses benefícios é atualmente difícil estabelecer uma relação de trabalho formal entre os entregadores em tempo parcial e as plataformas para as quais trabalham.

Se um entregador é ferido no trabalho, a plataforma basicamente não assume responsabilidade, e para trabalhadores em tempo integral só alguns conseguem ter relações laborais juridicamente claras que obriguem as plataformas a assumir responsabilidade, disse ele.

Em termos práticos, os entregadores não obtêm muito benefício do seguro-saúde que possuem, porque a cobertura muitas vezes é imprecisa, e fazer denúncias geralmente é difícil.

Dong Baohua, professor na escola de direito da Universidade Normal da China Oriental, que ajudou a elaborar a lei trabalhista do país, disse que o maior problema da lei é sua incapacidade de proteger os direitos de pessoas que são incapazes de se defender, incluindo os trabalhadores temporários.

"Se um trabalhador sofre um acidente, a plataforma geralmente não o indenizará se ele não conseguir ampla atenção da mídia online", disse Dong. "Isso não é um sinal de progresso social."

Ele disse que os políticos deveriam ter como maior prioridade acelerar o processo para melhorar as proteções trabalhistas de trabalhadores temporários e outros em novas formas de emprego.

Lu Jingbo, diretor da firma de advocacia River Delta em Xangai, disse que é preciso definir critérios científicos para determinar quando alguém morre de excesso de trabalho, e criar um sindicato para que os entregadores de comida possam ter as vantagens de negociações coletivas.

Em longo prazo, o país deveria mudar a lei para abordar fundamentalmente as questões desses empregados, disse Lu.

Conduzidos por algoritmos

As gigantes de entregas de comida da China enfrentam prestação de contas depois que uma reportagem que se tornou viral destacou as péssimas condições de trabalho de seus entregadores e a tirania dos algoritmos que controlam suas vidas.

A investigação de seis meses pela revista em língua chinesa People expõe em duros detalhes o custo humano de um sistema de entregas dirigido por máquinas calibradas para maximizar a eficácia e o lucro.

Ela mostra como a pressão para cumprir prazos rígidos leva os entregadores ao limite, forçando-os a disparar em velocidade por ruas e becos em bicicletas elétricas, infringindo regras de trânsito para não serem penalizados pelas empresas.

A denúncia que viralizou nas redes sociais, intitulada "Entregador emperrado no sistema", também descreve como eles e outras pessoas são habitualmente feridos ou mortos em acidentes de trânsito.

A empresa Meituan-Dianping, foco da reportagem, emitiu um pedido de desculpas, prometendo dar aos entregadores minutos a mais por entrega. Ela também disse que reduzirá as penalidades e prolongará o tempo das entregas ainda mais em clima adverso.

A Ele.me respondeu lançando uma função que permite que os usuários deem ao entregador mais 5 ou 10 minutos, dizendo "Todo mundo que trabalha duro merece ser tratado com respeito". A reação foi criticada nas redes sociais por parecer transferir a culpa e a responsabilidade para os usuários.

Mas as duas reações foram geralmente consideradas soluções cosméticas em um setor onde os regulamentos trabalhistas estão muito atrasados, conforme o mercado se concentrou em torno de algumas firmas que espremem os custos usando mão de obra terceirizada.

Para as firmas de entregas online, os entregadores são o maior custo isolado e a maior fonte de risco. Houve poucos motivos para empresas como Meituan e Ele.me reduzirem seus problemas.

A Meituan teve uma vantagem de quase 40% sobre sua rival Ele.me durante a pandemia, segundo a firma de pesquisas Trustdata. O domínio do mercado e a fidelidade dos clientes deram às duas firmas vantagens nas negociações com restaurantes, que hoje são obrigados a pagar comissões e assinar contratos de exclusividade de que não se inscreverão em plataformas concorrentes.

Traduzido originalmente do inglês por Luiz Roberto M. Gonçalves.

Yuan Ruiyang , Guan Cong , Qian Tong , Qu Yunxu e Timmy Shen
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