Trabalhar na Love Story foi loucura e adrenalina, dizem ex-funcionários

Casa teve falência decretada em fevereiro e começou a leiloar bens na quinta

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Fachada da Love Story na rua Araújo, centro de São Paulo Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Wanderson Moraes, 48, colocou os pés na Love Story pela primeira vez aos 22 anos. A balada, que à época ficava na rua Major Sertório, região central de São Paulo, costumava reunir prostitutas, políticos, policiais, celebridades e subcelebridades.

Foi um primeiro dia assustador, conta o ex-chefe de segurança. “Quando cheguei lá, o lugar era muito escuro, estava apinhado de gente de tudo quanto é tipo”, afirma.

Ele diz que viu cenas que jamais imaginou presenciar. “Na época ainda tinha shows de strip, mulher pelada, gente armada, gente podre de rica", relembra. Ele gostou da adrenalina, e continuou até o último dia da casa.

As coisas mudaram quando a casa mudou de endereço em 2000, para a rua Araújo, a dois quarteirões da Major Sertório. “A Love deixou de ser ‘boate’ e virou ‘danceteria’”, diz Moraes.

No vocabulário da noite, existia uma linha tênue entre “boate” e “danceteria” —a primeira, mais libertina, a segunda, mais recatada.

Wanderson (Edy) Moraes, 48, trabalhou como segurança da Love Story por 25 anos - Eduardo Knapp/Folhapress

A Love Story abria as portas à meia-noite, e era o reduto daqueles que saíam tarde do trabalho ou que emendavam uma festa na outra, e fechava apenas quando o último cliente saía —daí o título “Casa de todas as casas”.

Moraes, mais conhecido como Edy, viu de tudo em seus 25 anos à frente da chefia de segurança. Acumulou as funções de advogado, promotor e juiz ao apartar brigas e solucionar todo tipo de conflito que surgia pela frente.

Foi desenvolvendo sua política de gestão de crise caso a caso. “Teve agressão física? Aí não tinha mais negociação e colocava as duas partes envolvidas para fora”, explica. “Se a agressão fosse muito pesada, aí eu segurava e chamava a polícia”.

Entre confusões e noites viradas, foi difícil manter relacionamentos. “Não é nada fácil ter família para quem tem esse horário doido”, conta. Mas acabou tendo sete filhos e conheceu a companheira na própria Love Story. Silvane Moraes, 42, era uma frequentadora assídua nos anos 1990.

Silvane Moraes,42, que trabalhou na casa por nove anos na divulgação e chapeleira da Love Story - Eduardo Knapp/Folhapress

Em 2012, Moraes passou de frequentadora a funcionária da balada, trabalhando na divulgação da Love Story. Com um carro personalizado, rodava outras casas noturnas de São Paulo chamando-os para o after na Love. Depois desse período, migrou para a chapelaria.

“Como era de graça [a chapelaria], o pessoal perdia a noção. Tinha mulher que vinha retirar a bolsa umas 20 vezes na noite”, diz. Não faltaram brigas e acusações de roubo. Em algumas ocasiões, Edy surgia para ajudar a solucionar o problema.

Enquanto Edy ficava na porta e Silvane na chapelaria, o DJ Juninho da Love, 47, comandava as pick ups e ainda fazia bico de olheiro. Com uma visão privilegiada da pista, avisava a equipe de segurança quando começava algum tumulto.

Juninho também começou cedo na Love Story, em 1998, pouco depois de Edy. “Nos primeiros dias fiquei assustado com o tanto de gente, mas era uma adrenalina louca”, diz. “Tinha todo tipo: coreanos de um lado, chineses de outro, playboy no meio. Cada clã no seu cantinho e todo mundo se respeitando”.

No longo tempo de Love Story, viram celebridades despontarem. Mr. Catra, famoso por ser pai de 32 filhos e morto em 2018 vítima de câncer, foi um deles. Ainda um desconhecido rapper nos anos 1990, era um dos que marcavam presença na boate.

“Ele deu uma sumida e quando voltou já era um MC”, diz Edy. “Já famoso nos anos 2000, teve dia que ele chegava, ficava no mezanino e fazia chuva de dinheiro na pista”, conta Juninho.

Na visão do DJ, a decadência da Love começou quando os sócios teriam tentado elitizar o espaço. “Eles tentaram elitizar, e a Love não era desse jeito”, diz Juninho. “Resolveram botar promoter, cerveja gourmet, e não tinha mais aquele tratamento exclusivo que fazíamos antes”.

Quem costumava frequentar a Love Story diariamente e era simpático com os funcionários tinha um tratamento privilegiado. Se passasse mal, o funcionário que tivesse maior proximidade cuidava dele. Em alguns casos, se fosse necessário, levavam até ao hospital. Se no dia estivesse com a grana curta, podia pagar depois. Essas regalias acabaram a partir de então.

Procurada, Michele Burigo, uma das sócias da casa, diz que as mudanças feitas por um dos sócios ajudou a desfigurar a Love Story. A Folha procurou também João Tiago de Freitas, conhecido como Seu João, outro sócio, que não respondeu. A reportagem não conseguiu entrar em contato com os outros três sócios.

Juninho da Love foi DJ e MC da Love Story por 22 anos - Eduardo Knapp/Folhapress

Edy, Juninho e Silvane lembram que o diferencial da Love Story era o relacionamento com o cliente. "Tínhamos uma clientela fiel, eles eram bem recebidos e fazíamos de tudo para tratá-los bem”, diz Juninho. Mesmo em dia de baixo movimento, quem batia ponto na balada costumava deixar bastante dinheiro na casa.

Um dia, lembra o trio, apareceu um árabe com uma cara fechada. Ficou sentado nos sofás da pista a noite toda. Juninho tocava música eletrônica, e nada do cliente dançar. Desceu para cumprimentá-lo e entender o que gostava, disse “salamaleico” (salaam aleikum, saudação em árabe usada por muçulmanos que significa a paz esteja convosco) e recebeu uma nota de US$ 100.

Quando voltou para a cabine, colocou uma seleção de música árabe. “Ele olhou para cima, jogou um beijo pra gente, e passou a frequentar a Love todos os dias até o fim."

Entre 2017 e 2018, foram demitidos cerca de 20 dos 70 funcionários que tinham dez anos de casa, em média. Quem ficou da velha guarda foi colocado para escanteio, dizem os funcionários.

“Desmancharam a equipe de segurança que tinha feito, fui tendo menos funções, me senti menosprezado e bateu o cansaço”, diz Edy. “O bom é que me reinventei e fui fazer técnico de enfermagem”.

A Love Story entrou com um pedido de recuperação judicial em agosto de 2018, com uma dívida de quase R$ 1,7 milhão. A casa reconheceu que não conseguiria cumprir o plano, e atribuiu à pandemia e à falta de perspectiva da retomada de atividades a impossibilidade de ressarcir os credores. Teve sua falência decretada em fevereiro deste ano.

O juiz Marcelo Barbosa Sacramone, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, afirmou que a “situação de absoluto descaso” durava mais de um ano e seis meses, e que não era possível atribuir a falta de pagamentos apenas à pandemia, uma vez que os créditos trabalhistas deveriam ter sido pagos até novembro de 2019.

Nesta semana, foi iniciado um leilão dos bens da casa no valor de R$ 5,5 milhões.

A vida pós-Love

A renda dos ex-funcionários despencou desde o fechamento em março de 2020. Silvane deixou de trabalhar e cuida da casa e dos filhos, enquanto Edy faz bicos para pagar as contas. Com diploma de técnico de enfermagem, não conseguiu emprego pela idade e pela falta de experiência na área.

“Durante oito meses vivemos com parte do salário, já que eles aderiram ao programa de redução de jornada do governo”, diz Silvane. A partir de dezembro, a Love Story parou de pagar os funcionários.

Juninho da Love reabriu uma pastelaria em Guaianazes, na zona leste de São Paulo, e está terminando a graduação em Direito. “Tudo caiu, o padrão de vida de todo mundo foi por água abaixo. Mas está bem mais tranquilo, dou mais atenção à família”, diz.

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