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Documentário aplaude o Soros filantropo e pouco fala do Soros investidor

Filme dirigido por Jesse Dylan, filho de Bob, exagera no tom laudatório

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São Paulo

Quando chegam os créditos, ao fim de quase uma hora e meia do documentário “Soros”, que estreia nesta quinta (12) em diversas plataformas de streaming, restam uma certeza e uma dúvida.

A certeza: o bilionário George Soros é um filantropo criterioso, que apoia projetos ligados à liberdade de expressão e à defesa das minorias.

Está longe, portanto, de ser o monstro manipulador retratado pela extrema direita da Europa, especialmente da Hungria, onde ele nasceu; dos EUA, onde vive há mais de 60 anos; e do Brasil. Trumpistas e bolsonaristas gostam de associá-lo à estapafúrdia teoria do “globalismo”, uma suposta ação orquestrada para combater a fé cristã mundo afora.

A dúvida: Soros é um anjo? É um santo?

O diretor Jesse Dylan e o investidor George Soros durante as gravações do documentário - Divulgação

O diretor Jesse Dylan, filho de Bob, dedica um tempo generoso ao homem das causas sociais, deixando poucos minutos para tratar dele como investidor, cuja fortuna é estimada em US$ 8,6 bilhões, segundo a revista Forbes.

Mais adequado teria sido batizar o filme como “Soros, o Filantropo” e não apenas “Soros”, que pressupõe uma multiplicidade de ângulos, especialmente no caso de um personagem com tantas contradições acumuladas ao longo de 90 anos de vida.

A primeira meia hora é o melhor do documentário, com imagens impressionantes de Budapeste sob as ordens alemãs e, ao fim da Segunda Guerra Mundial, sob o domínio soviético. É, no entanto, um breve áudio que mais chama a atenção nesse trecho inicial. Elizabeth, a mãe de Soros, conta como foi estuprada por dois soldados russos.

Ao longo do filme, ele lembra com carinho do pai, Tidavar, que conseguiu identidades cristãs falsas para a família judaica —antes da tomada da capital húngara pelas tropas nazistas, cerca de 25% dos moradores da cidade eram judeus.

“Meu pai me ensinou que há tempos anormais em que as regras normais não se aplicam. Naquele momento, você morreria se seguisse as ordens”, recorda-se.

Em 1947, quando emigrou para a Inglaterra, onde passou a estudar na London School of Economics, ele conheceu outra figura que o influenciaria muito dali pra frente, Karl Popper (1902-1994).

Ao contestar sistemas fundamentados na ideia de verdades absolutas, que poderiam ser impostas pela força, como o nazismo e o comunismo, o filósofo austríaco deu a Soros o arcabouço teórico para aquilo que ele tinha vivido na pele poucos anos antes.

Grosso modo, Popper argumentava que, considerando que a humanidade comete erros o tempo todo, as sociedades deveriam estar sempre abertas às novas ideias.

Popper, nas palavras de Soros, “propôs uma alternativa, a sociedade aberta, que se baseia no reconhecimento de que ninguém está na posse da verdade, então é preciso um processo crítico”.

Vem do filósofo, portanto, a expressão Open Society (sociedade aberta), que dá nome à rede de filantropia fundada por Soros em 1993, com braços em mais de 120 países atualmente.

Soros na juventude, época em que conheceu as ideias do filósofo Karl Popper, por quem foi muito influenciado - Divulgação

Depois de trabalhar em bancos em Londres, Soros se mudou para os EUA em 1956 com um grande objetivo, como diz no filme, “ganhar dinheiro”. Mais adiante, passou a gerir fundos de hedge (ou multimercados) de modo implacável e tomou o caminho para se tornar um dos grandes magnatas de Wall Street.

O documentário aborda rapidamente a chamada “quarta-feira negra” da Inglaterra, o dia 16 de setembro de 1992. Na ocasião, Soros fez uma aposta altíssima contra a libra esterlina e faturou cerca de US$ 1 bilhão. Cinco anos depois, foi apontado como um dos maiores responsáveis por desencadear a crise financeira asiática, com operações similares contra o baht da Tailândia e o ringgit da Malásia, episódio que não aparece no filme.

Não parece haver evidências de que o investidor tenha cometido atos ilegais nessas situações, mas mesmo quem não carrega uma bandeira com foice e martelo pode concluir que são jogadas, no mínimo, questionáveis. Mostrar com clareza o grande especulador em ação daria mais transparência ao filme.

Mas Jesse Dylan se concentra em apresentar as benfeitorias, que tiveram como marco inicial iniciativas na África do Sul em 1979, como a distribuição de bolsas de estudo. Numa etapa posterior, Soros incentivou grupos do Leste Europeu que defendiam a liberdade na imprensa e nas universidades. Nos anos seguintes, chegou a Ásia, África e América Latina.

O Soros filantropo incomoda os ultraconservadores não apenas porque as causas apoiadas por ele, como a defesa dos direitos dos gays e dos refugiados, estão mais associadas aos partidos inclinados à esquerda. É também uma pedra no sapato da extrema direita porque faz doações milionárias ao Partido Democrata há décadas.

E, claro, a engrenagem da desinformação reforça as tintas vilanescas sobre o rosto de Soros. “O mundo faz mais sentido se você simplesmente tiver um único cérebro mexendo os pauzinhos e fazendo as coisas que você teme”, diz Ethan Zuckerman, do MIT (Massachusetts Institute of Technology).

São muito populares as teorias da conspiração contra Soros. Se as pessoas não sabem sobre algo que está acontecendo no mundo, foi Soros quem fez

Ivan Krastev

presidente do Centro para Estratégias Liberais, da Bulgária, em participação no documentário

Sim, o mundo é bem mais complexo, como Soros aprendeu com Popper. Pena que o filme vá em sentido oposto, ao deixar a história do investidor num plano tão secundário.

Além de familiares e colaboradores, que enaltecem Soros, o diretor apresenta vozes dissonantes, mas elas são uma caricatura, caso dos representantes da Fox News.

Podemos imaginar que, daqui a 50 ou 100 anos, os livros de história vejam Soros, entre erros e acertos, de modo mais positivo. Mas daí a canonizá-lo, como tenta Jesse Dylan, existe um oceano, o Atlântico, que separa a Europa, onde ele cresceu, da América, onde fez fortuna.

Soros

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