Governo apresenta a líderes do Congresso proposta que cria fundo para pagar 'dividendo social'

Pacote inclui pagamento de precatórios em dez parcelas para ampliar bolsa família; analistas veem pedalada e calote

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Brasília

O governo apresentou a líderes do Congresso uma proposta que dribla a regra do teto de gastos em 2022. A ideia é adiar o pagamento de dívidas reconhecidas pela Justiça —chamadas de precatórios— e usar os recursos para elevar o valor do Bolsa Família. O pacote de medidas busca, desde já, melhorar a popularidade do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na campanha presidencial do próximo ano.

A proposta também cria um fundo com ativos de estatais e imóveis da União. A ideia da equipe econômica é inserir recursos oriundos de dividendos e venda de ações para expandir a área social e fazer outros gastos.

O fundo a ser criado pela PEC teria algumas funções. Ele seria usado para repassar a pessoas de baixa renda o que Guedes vem chamando de dividendos sociais, uma espécie de bônus. Além disso, a verba do fundo poderá ser usada para também pagar precatórios. Nesse caso, o pagamento não seria contabilizado no teto de gastos.

Apesar de ainda esperarem os detalhes do texto, economistas criticam a ideia. Lembram que adiar desse maneira o pagamento de dívidas é considerado calote e até pedalada.

Hoje, as dívidas são quitadas integralmente todos os anos, conforme um calendário estabelecido pela Justiça. Com a medida, haverá um limite de pagamento. Dessa forma, abre espaço para despesas em ano eleitoral.

A proposta adia o pagamento de quase metade de dívidas reconhecidas pela Justiça, que teriam de ser cumpridas em 2022. Atualmente, a demanda projetada para o ano que vem é de R$ 89,1 bilhões —um crescimento de 60% em relação ao projetado para 2021.

A ideia do governo é utilizar uma PEC (proposta de emenda à Constituição) com um aval para que o pagamento dos precatórios possa ser parcelado em até dez anos, o que geraria uma folga no espaço orçamentário de 2022 para outras ações.

De acordo com integrantes do governo, a PEC vai servir para que o espaço do teto de gastos não seja inteiramente consumido pelo crescimento dos precatórios. Um instrumento à parte, uma MP (medida provisória), vai definir o formato do novo Bolsa Família.

O novo programa social vem sendo desenhado na equipe econômica para ter um valor próximo a R$ 300.

A manobra foi discutida pelo titular da área econômica Paulo Guedes com os ministros Ciro Nogueira (Casa Civil) e Flávia Arruda (Secretaria de Governo) e com os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Após o encontro, o ministro da Cidadania, João Roma, disse que a reestruturação do Bolsa Família ocorrerá por meio de MP e não tratará de valores. O texto, segundo Roma, deve ser entregue ao Congresso ainda nesta semana.

“A discussão é acerca de uma modulação, acerca dos precatórios. De alguma forma, isso impacta o Orçamento do próximo ano que, por sua vez, poderia impactar no programa social, mas o programa social não visa de forma nenhuma sair do teto”.

O governo segue com a ideia de ampliar o número de beneficiários do Bolsa Família, de 14,7 milhões para 17 milhões no novo programa social.

Pacheco afirmou que foram discutidas alternativas para se compatibilizar o pagamento de precatórios pela União e um programa social que atenda a população vulnerável "com a responsabilidade fiscal necessária".

"Envidaremos os esforços para essa solução, com especial destaque ao fato de que a população carente precisa ser assistida com uma renda mínima que minimize a fome e a miséria no Brasil", afirmou em rede social.

Em nota, a Casa Civil disse, após o encontro, que a PEC “faz um ajuste nas regras de parcelamento dos precatórios, ampliando a possibilidade de parcelamento já prevista na Constituição Federal.”

De acordo com técnicos que participam da formulação do texto, o primeiro eixo da proposta terá como alvo os chamados superprecatórios, dívidas judiciais do governo com valores acima de R$ 66 milhões (60 mil salários mínimos).

A medida deve prever um alongamento desses débitos, com pagamento de entrada e parcelamento em nove anos. Esse ponto traria um alívio de aproximadamente R$ 20 bilhões aos cofres do Tesouro Nacional em 2022.

Cálculo interno do Ministério da Economia aponta que os precatórios com valor superior a R$ 66 milhões, que serão alvo do parcelamento, representam 3% do total desses passivos.

Outro mecanismo estabelece que o gasto total do governo com precatórios será limitado a 2,6% da receita corrente líquida anual (somatório da arrecadação tributária, deduzidas as transferências constitucionais). O potencial de economia com esse dispositivo ultrapassa R$ 20 bilhões.

O texto ainda estabelece um sistema especial para dívidas entre entes da federação. Se um estado, por exemplo, tem um precatório a receber do governo federal, ele poderá usar esse valor para abater outra dívida com a União.

Segundo fonte da pasta, uma das versões formuladas da PEC previa que o governo pagasse de imediato os precatórios com valor de até R$ 66 mil, o que reduziria o impacto da medida sobre pessoas que não possuem renda alta. Ainda havia dúvidas se o dispositivo estaria na versão final do texto.

O analista do Senado e especialista em contas públicas Leonardo Ribeiro discorda da proposta do time de Guedes. Para ele, a medida sinaliza que o governo não pretende honrar suas dívidas e pode ser lida como uma espécie de calote.

“Cumprir o teto dessa forma, criando espaço fiscal para um novo programa social, é uma medida fiscalmente irresponsável”, disse.

Na avaliação do economista, o parcelamento de precatórios faz sentido apenas para estados e municípios quando há forte dificuldade em caixa para manter a prestação de serviços públicos básicos.

“A União pode emitir dívida, via emissão de títulos públicos no mercado, para pagar os precatórios em vez de dar calote”, afirmou, ressaltando que os governos regionais não têm essa prerrogativa.

O economista Marcos Mendes, um dos pais do teto de gastos e colunista da Folha, diz considerar a proposta de adiamento dos precatórios equivocada por vários motivos. “Já tentaram isso antes e houve uma reação muito grande, porque disseram que seria calote e pedalada. É empurrar despesa para a frente, é um artificio que você está usando para burlar a regra do teto”, disse.

Mendes afirma que o governo não está sendo surpreendido por uma conta que apareceu de repente porque vários órgãos, como a AGU (Advocacia-Geral da União) e a PGFN (Procuradoria-geral da Fazenda Nacional), fazem o acompanhamento de decisões judiciais contra o governo.

Mendes diz que a medida não resolve o problema fiscal, apenas posterga as dívidas, e que o país vai pagar mais caro pelas sentenças judiciais graças à correção monetária. Além disso, há margem para contestações judiciais. Em sua visão, a proposta se soma a outra medida em discussão que afeta as contas públicas –a reforma tributária, que tira pelo menos R$ 30 bilhões dos cofres públicos anualmente (e também viabiliza juridicamente o Bolsa Família).

“Tudo isso com objetivo claro de aumentar despesa em ano eleitoral. Tem um discurso otimista de que vão cumprir o teto, quando estão empurrando despesas para outros anos”, afirma.

Caio Megale, economista-chefe da XP, pondera que o nível de precatórios já está elevado e considera que a proposta pode ser discutida. "Do ponto de vista legal, não tem dúvida. Tem que ser pago e ponto. [Mas] faz sentido debater", afirma.

Ele afirma, no entanto, que a flexibilização deve ficar restrita somente aos precatórios que cresceram em relação a 2021 e que, caso o texto vá além disso, a credibilidade da proposta ficará comprometida.

De qualquer forma, ele considera arriscado lançar a proposta em um ambiente de proximidade do calendário eleitoral. O maior receio é que o texto seja flexibilizado durante a tramitação no Congresso e abra mais brechas para gastos.

"A gente está num momento particularmente delicado para essa discussão. Acho que pode existir uma discussão mais aberta e fora de hora sobre flexibilizar o arcabouço fiscal", afirma ele.

A proposta agora colocada à mesa de negociação por Guedes já foi apresentada e descartada em 2020 após reações negativas do mercado.

Em setembro do ano passado, após reunião com o presidente Jair Bolsonaro e Guedes, parlamentares apresentaram o plano de limitar o pagamento de precatórios. A sobra de recursos seria usada para bancar um programa social mais robusto do que o Bolsa Família.

O anúncio gerou uma onda de críticas de especialistas e criou uma disputa de versões, com parlamentares e membros da equipe econômica alegando que não eram os autores da ideia.

O plano acabou descartado. Guedes passou a dizer que defendia a revisão dos precatórios, conta que crescia fortemente. Ele negava, no entanto, que a medida seria vinculada ao novo programa social.

Entenda

O que são precatórios?
O precatório é emitido no caso de condenações da Justiça contra o Estado em valores acima de 60 salários mínimos (ou seja, R$ 66 mil).

O que são RPVs?
As RPV (requisições de pequeno valor) são condenações abaixo desse limite.

Hoje, quando esse pagamento deve ser feito?
Os precatórios devem ser quitados até o final do exercício seguinte à sua expedição. No caso da RPV, esse prazo é de até 60 dias após a expedição da requisição de pagamento

O que o governo planeja fazer?
Adiar esses pagamentos. No caso dos RPVs, a execução é mantida. Mas os precatórios seriam parcelados em até 10 anos.

Qual o objetivo?
Abrir espaço no teto de gastos para turbinar o Bolsa Família em 2022. O teto impede o crescimento real das despesas do governo.

O projeto resolve o problema fiscal?
Não, apenas joga a despesa para anos seguintes.

Qual o valor total de precatórios previsto para 2022?
Serão R$ 69,2 bi de precatórios e mais R$ 19,8 bi de RPVs, totalizando R$ 89,1 bi

Se a proposta do governo for aprovada, qual o valor postergado?
Caso a ideia vá adiante, a estimativa é que R$ 41,3 bi serão adiados (o equivalente a 46% do total previsto)

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