Consumidor da periferia reclama que empresas aprofundam segregação urbana

Mesmo com dinheiro, morador não é atendido por apps de transporte e comida e empresas de entrega

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Porto Alegre , Salvador , São Paulo e Rio de Janeiro

A ausência do Estado em comunidades mais pobres nos grandes centros urbanos alimenta um antigo debate no Brasil e não faltam estudos sobre esse tema. Com o avanço da digitalização, a prestação de serviços entre áreas mais centrais e periféricas se torna ainda mais desigual, agora também pela distorção no atendimento de empresas privadas.

A dificuldade de acesso a bens de consumo e serviços oferecidos por aplicativos e sistemas de entregas digitais por delivery é uma queixa crescente, especialmente entre os mais jovens. Não basta ter trabalho, formação acadêmica e dinheiro para pagar. O endereço gera o que os próprios moradores dessas áreas chamam de segregação urbana e preconceito de CEP.

O publicitário Samuel Souza, 21, conhece na prática a face moderna dessa segregação. Morador de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, ele diz que já perdeu as contas de quantas vezes foi expulso de carros de aplicativo.

Em uma única noite, lembra que quatro motoristas diferentes da Uber pediram para ele sair dos veículos, alegando que o jovem vive em área perigosa. “Mesmo explicando que o lugar onde moro é tranquilo, eles sempre vêm com esse discurso de que é muito violento e não passam por lá de jeito nenhum.”

Os problemas em carros de aplicativo são tão recorrentes que ele já até declinou convites para sair com os amigos. “Eu me sinto até impotente por não ter liberdade de fazer tudo o que eu gostaria por esses empecilhos.”

Dé pé, segurando um celular, Beatriz Menezes, moradora de São João Meriti na Baixada Fluminense
Beatriz Menezes, moradora de São João Meriti na Baixada Fluminense - Ricardo Borges/Folhapress

Beatriz Menezes, 26, vive situação semelhante. Moradora de Vila Tiradentes, em São João Meriti, também na Baixada Fluminense, ela diz que já ficou quase uma hora tentando chamar um Uber no centro do Rio, porque as viagens eram canceladas de forma sucessiva.

A jovem se sente à parte do resto da cidade. "É uma segregação. O sentimento que tenho é que cabe à população exigir uma mudança de cenário", diz ela. "A Baixada é uma potência, e enquanto a gente não enxergar o nosso valor, vamos continuar à mercê, porque a gente normalizou isso."

O que mais a incomoda é a dificuldade para receber o que compra pela internet. Ao realizar o pedido, a universitária passou a colocar endereços de amigos que moram na zona sul e, quando a encomenda chega, ela precisa ir até a casa deles para retirá-la.

Se informar o próprio endereço, é um problema atrás do outro. Transportadoras, por exemplo, não fazem entregas onde ela mora. Ela conta que, uma vez, comprou um celular, mas a transportadora contratada pela empresa se negou a enviar o aparelho, alegando não atender a Baixada.

Beatriz diz que nem os Correios fazem entrega onde ela mora. Para ter esse serviço público, precisa ir até um centro de distribuição e esperar de duas a três horas para retirar as encomendas. “Eu me sinto humilhada. Sou culpada por morar onde eu moro?”

A justificativa das empresas costuma ser que essas regiões não são seguras o bastante para contarem com esses serviços, mas isso muitas vezes é mais um estigma do que a realidade, afirmam os moradores.

Danilo França, sociólogo e pesquisador do grupo Afro do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), lembra que as favelas e bairros periféricos não são igualmente violentos, mas há estereótipos que pesam sobre determinados territórios e contribuem para moldar as visões do poder público e da sociedade.

"O acesso a itens e serviços é limitado por causa do estigma que pesa sobre determinados locais", diz França, que considera crucial a adoção de políticas públicas urbanas para equalizar o acesso ao consumo.

"Muitos motoristas e entregadores evitam trabalhar em regiões próximas de favelas. E as empresas não podem obrigar o motorista a ir para o lugar, é um dos problemas desse tipo de transporte", diz Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e colunista da Folha.

"Isso acontece em outros serviços, como de bicicletas compartilhadas, que não têm na periferia. Há uma série de serviços modernos que ainda não chegam para todos, e a tecnologia se tornou um elemento adicional de segregação urbana."

Bonduki ​diz que poderiam ser criadas regras municipais que façam com que as empresas se comprometam a prestar serviços em toda a área do município, e que isso seria positivo também para as empresas, que acabam deixando de lado um mercado consumidor enorme ao não operarem em determinadas regiões.

Acesso restrito a serviços e entregas cria consumidor de segunda classe

Empresas que investiram em vendas, serviços digitalizados e logística de entrega costumam apresentar boas estatísticas para mostrar a expansão dos negócios via internet no Brasil, especialmente durante a pandemia, quando atividades presenciais foram restringidas.

No ano passado, as vendas digitais mais que dobraram e chegaram a R$ 115 bilhões. No primeiro semestre deste ano, foi registrada uma alta de 31% e o faturamento chegou a R$ 53 bilhões.

Quem mora na periferia da capital paulista tem convicção que está fora dessas estatísticas. Felipe Freire Silva, 28, morador do Jardim Maria Estela, no distrito do Sacomã, na zona sul de São Paulo, por exemplo, coleciona histórias sobre a deficiência dos serviços digitais. “Você quer começar por qual empresa? Aqui tem história de empresas de entrega, de comida, Uber”, lista Felipe.

Graduado em ciências contábeis e em processo de migração para a área de tecnologia, ele vive em um apartamento da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) e está acostumado a ter de driblar a falta de entregas na região.

“O entregador da Netshoes já me ligou perguntando se eu podia ir buscar a encomenda na rua de cima e eu fui porque, quando você não vai, eles mandam para os Correios”, conta.

A distância da casa de Felipe até a agência mais próxima é de cerca de 700 metros. Uma caminhada de 15 minutos, “mas, às vezes, a pessoa nem tem o bom senso de ligar para gente e já manda direto."

Felipe conta que já fez até a entrega para terceiros. Uma vez, quando foi retirar o seu pedido em uma rua vizinha, o entregador pediu para que ele levasse um produto para outro cliente que mora no mesmo condomínio. “Ele até comentou que não podia arriscar, porque a responsabilidade era dele. Os produtos não tinham seguro e se algo sumisse, ele teria de pagar.”

Mesmo com problemas, Felipe continua comprando pela internet. A cada pedido, tenta se programar, pois sabe que os prazos vão ser maiores do que os anunciados pelos sites.

“Quando a empresa bota um serviço no mercado, tem que entregar, e nunca fala que não entrega. Eu pago até mais caro no frete de Sedex para receber rápido, mas acaba demorando mais. 15 dias para receber um produto que na casa de um colega de outro bairro ou na rua de cima chegaria em dois dias”, afirma.

Felipe Freire Silva, que mora em um conjunto habitacional na zona sul de São Paulo, de pé, ao lado de um prédio da região
Felipe Freire Silva, que mora em um conjunto habitacional na zona sul de São Paulo - Bruno Santos/Folhapress


No bairro de Vargem Grande, no extremo sul da cidade de São Paulo, a rotina com o digital é bem parecida. A agente de saúde Uyara Lourenço, 32, conta que, no começo de setembro, quis adotar a comodidade de pedir comida pronta. Tentou comprar pelo celular uma marca de congelados que foi anunciada nas redes sociais. Não deu certo.

“Quando coloquei o CEP, já apareceu que não entrega aqui na região", diz. “A gente se sente excluído. Já moramos distante e ainda temos acesso restrito a algumas coisas que gostaríamos de ter”, afirma.

Vargem Grande fica no distrito de Parelheiros, a 40 km do centro de São Paulo. Por lá, sinal de internet também é um problema para os moradores. O acesso é deficiente. Também falta transporte —público e privado. O morador precisa fazer longas caminhadas ou contar com a solidariedade de vizinhos para conseguir se locomover em casos de emergência.

“Por aqui, é difícil conseguir carro por aplicativo até por causa da qualidade do sinal de celular. Quando a gente vem para cá por aplicativo, o motorista precisa usar o wi-fi de algum morador para conseguir concluir a corrida”, diz ela.

Na favela de Heliópolis, o produtor musical Kaique Pereira Martins, 27, diz passar por situações semelhantes. Ele e a namorada só conseguem retirar produtos adquiridos pela internet indo até a agência dos Correios. "Compramos algumas roupas para os nossos filhos e tivemos que ir lá retirar, não teve jeito”, afirma.

Andar com um carro por aplicativo nas favelas também é complicado, por conta das ruas estreitas e a recusa de motoristas.

Kaique Pereira Martins, que mora na comunidade de  Heliópolis, na zona sul da cidade, de pé, na varanda
Kaique Pereira Martins, que mora na comunidade de Heliópolis, na zona sul de SP - Bruno Santos/Folhapress

Morador de uma favela na zona sul de São Paulo e presidente estadual da Cufa (Central Única de Favelas), Marcivan Barreto diz que a pandemia ressalta a desigualdade de acesso a diversos serviços, quando eles se tornaram ainda mais necessários.

"O home office é uma opção que não chegou na favela. Os moradores de outros bairros puderam trabalhar de casa e contar com aplicativos de entrega e transporte, em grande parte feito por moradores da periferia. Mas a favela não conseguiu contar com muitos desses serviços", diz.

A Cufa tentou minimizar o problema transformando empresa em parceira. Tem um projeto com a Uber, que completou dois anos, e surgiu como uma forma de tentar reduzir esse "apagão" de serviços em determinadas áreas das cidades.

Foram instalados 12 pontos de embarque e desembarque para que os moradores de Heliópolis fossem atendidos pelo aplicativo.

"Nos becos e vielas, os motoristas não conseguem entrar com o veículo, mas o morador não precisa mais sair da favela para pegar um carro", diz Barreto, da entidade. O ponto principal também conta com uma rede de wi-fi, para facilitar o acesso.

Na segunda maior favela da cidade, em Paraisópolis, o líder comunitário Gilson Rodrigues, 36, vê o preconceito como principal impeditivo para que a população tenha acesso a serviços do tipo. “Chamamos de preconceito de CEP, pois basta informar onde moramos que, automaticamente, temos o serviço cancelado”, explica.

“Muitas empresas ignoram o fato de que aqui na favela existe, sim, um potencial de consumo considerável e que nós também temos o direito de realizar as nossas compras e recebê-las em nossas casas”.

Gilson conta que as favelas estão se organizando para resolver os problemas de logística que dificultam o acesso dos moradores aos produtos. Entre os exemplos, cita que para suprir a demanda de carros por aplicativo, um grupo de motoristas se uniu para oferecer o serviço de transporte.

“Contamos também com o mercado Brasileiríssimo, que tem aplicativo de compras próprio com serviço de entregas em favelas”, afirma. Para entregas, outro exemplo é o Favela Brasil Xpress, que tem feito parceria com empresas para que o morador que tenha comprado um produto pela internet, possa recebê-lo em casa “independente da viela em que mora”.

Desigualdade no atendimento ocorre no Nordeste e no Sul

A questão é que a deficiência ocorre não apenas no eixo Rio-São Paulo, onde estão as maiores favelas do Brasil e também entidades mais organizadas para tentar dirimir o problema. Marca também a vida nas periferias de outras grandes capitais.

Em Salvador, Liliane Dantas, 33, convive com a mesma realidade. Moradora da localidade do Queimadinho, no bairro Liberdade, a auxiliar administrativa reclama da dificuldade para conseguir motoristas, pelo aplicativo Uber.

Para contornar o problema, ela passou a utilizar serviços de mototáxi, depois que condutores por aplicativo passaram a rejeitar seus chamados. “Não sei se os motoristas não querem ir para bairros populares ou se eles acham que o valor da corrida não compensa.”

Na mais recente tentativa que fez, na segunda-feira da semana passada, tentou ir do Bairro Guarani —também na periferia— para casa, em um trajeto de poucos mais de 2 km. “Dei boa tarde ao motorista, ele respondeu, mas depois pediu que eu cancelasse a viagem.”

É a mesma realidade em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. No bairro Rubem Berta, um dos mais populosos, a cerca de 17 quilômetros do centro da capital, também são diversas as dificuldades para conseguir corridas por aplicativos ou serviços de entrega. A solução muitas vezes é se afastar de determinada rua e andar algumas quadras para conseguir que o motorista aceite a corrida.

“Uber demora mais que o normal e, quando aceitam, logo cancelam ou passam reto, muitas vezes, para a pessoa ter que cancelar. O iFood diz que não tem área de entrega, mas se vamos na esquina com o [bairro Jardim Dona] Leopoldina, chega, e não tem nem um quilômetro de distância”, conta o músico Arthur Nunes, 31.

Amigo dele, o cantor e compositor Cesar Marchel Barcelos de Oliveira, 33, conta que cancelamentos alegando endereço não encontrado ou sem maiores explicações são comuns.

“[Outro dia], a gente pediu um Uber e dois cancelaram ao ver que éramos quatro negros vestidos a rigor do rap. Os caras dão ré na nossa frente, vão embora e cancelam a corrida, porque moramos naquela zona ali”, diz ele. “Me sinto preso no que já conhecemos como racismo estrutural”, avalia Marchel, que acha que a falta de informação prejudica a imagem do bairro.

Plataforma não opera com exclusão de áreas geográficas, dizem empresas de aplicativos

Em nota, a Uber afirma que, para aumentar a segurança dos motoristas e usuários, “pode impedir solicitações de viagens de áreas com desafios de segurança pública em dias e horários específicos''. E que através de análise de dados bloqueia viagens consideradas potencialmente mais arriscadas.

A nota também diz que os “motoristas são independentes e têm autonomia para aceitar ou recusar viagens”.

Sobre o relato de Samuel Souza, de Belford Roxo (RJ), que disse ter sido expulso dos carros, a Uber afirmou que não é possível identificar se isso de fato aconteceu com o aplicativo da empresa, por não terem sido fornecidas informações para identificar o caso.

A empresa diz também que o aplicativo conta com recurso que permite cancelamento de viagens pelos motoristas parceiros, com a possibilidade de sinalizar motivo de segurança. A Uber afirma, porém, que dispõe de equipes e tecnologias que revisam as viagens e os cancelamentos para identificar uso indevido ou abusivo desse recurso.

Já a 99 diz que o acesso à mobilidade é um compromisso da empresa e que não exclui locais da plataforma. E que para manter os motoristas em segurança avisa os condutores sobre locais considerados de maior risco com base nos dados da Secretaria de Segurança Pública da cidade de São Paulo.

A empresa completa dizendo que, de acordo com dados internos, o número de cancelamentos tem índices semelhantes entre as áreas de risco e as demais regiões da cidade. A Netshoes não respondeu até a publicação desta reportagem.

Por meio de nota, os Correios disseram que não há endereços registrados como área de risco para entrega em Porto Alegre, mas ressaltam que o endereço deve obedecer regras definidas por uma portaria de maio deste ano, com critérios como numeração de forma ordenada e única e caixa de correspondência instalada.

Sobre a reclamação da moradora da Baixada Fluminense, a empresa respondeu que diz lamentar a situação e que, para garantir a segurança dos empregados, podem ocorrer alterações nos serviços prestados. Os Correios afirmam, porém, que as entregas em São João de Meriti estão normalizadas.

Com Agência Mural

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