'A indústria da mudança social perpetua a pobreza ou a faz tolerável', diz chefe de inovação social do Fórum Econômico Mundial

François Bonnici defende em livro visão sistêmica para solucionar problemas como miséria

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São Paulo

François Bonnici ocupa posição-chave nas discussões em torno da resolução de problemas complexos, como pobreza e mudanças climáticas.

Chefe de inovação social do Fórum Econômico Mundial, ele acaba de lançar o livro “The Systems Work of Social Change” (Trabalho Sistêmico para Mudança Social, em tradução livre), pela Oxford University Press, em coautoria com a pesquisadora Cynthia Rayner.

François Bonnici, homem branco, de óculos, fala em um painel com um backdrop escrito Fórum Econômico Mundial ao fundo
François Bonnici, chefe da área de Inovação Social do Fórum Econômico Social e diretor-executivo da Fundação Schwab, em painel no reunião anual em Davos em 2020 - Boris Baldinger/World Economic Forum

O livro oferece uma abordagem nova e esperançosa de como superar os desafios de uma verdadeira transformação socioambiental.

“O pensamento que nos trouxe até aqui não nos levará aonde precisamos chegar”, diz o médico sul-africano, que é também diretor-executivo da Fundação Schwab, uma das maiores redes de empreendedorismo social do mundo, parceira da Folha na realização do Prêmio Empreendedor Social.

Experiências que somadas à de sanitarista e pesquisador nas universidades de Oxford e da Cidade do Cabo levam Bonnici a fazer uma reflexão crítica sobre a chamada “indústria da mudança social”.

Refere-se às 10 milhões de ONGs em todo o mundo, que representam 4,5% do PIB global e empregam 7,4% da força de trabalho mundial, à frente de setores como transporte e finanças.

“Se queremos uma mudança sistêmica, precisamos abordar os problemas sociais de uma maneira radicalmente diferente”, afirma.

A seguir os principais pontos da entrevista por videoconferência de Genebra.

Como se traduz esse conceito de mudança sistêmica?

Mudança sistêmica é um termo útil, mas pode confundir. Por isso, o livro se chama “Systems Work of Social Change”. É mais sobre o como fazemos, o processo, do que sobre resultados. É através do processo que empoderamos e capacitamos pessoas para criar os resultados.

Estava bastante frustrado com as discussões em torno de mudanças sistêmicas. As pessoas estavam falando de coisas muito diferentes. Alguns diziam que as políticas públicas tinham de mudar, outros afirmavam que todos os atores tinham que fazer as coisas de forma diferente. Quando perguntávamos aos ativistas, tudo se resumia a poder.

O livro apresenta oito estudos de caso. Que exemplos pode citar de organizações que promovem mudanças sistêmicas?

A Fundación Escuela Nova [da Colômbia] empodera famílias e alunos para que façam parte do processo de definição do currículo escolar. Isso muda o sistema de ensino. É extremamente poderoso. Um modelo que inspirou reformas educacionais em todo o mundo.

Já a Nidan, uma organização da Índia, ampliou a participação dos trabalhadores informais na busca de seus próprios direitos, como a primeira legislação para vendedores ambulantes no país.

Os beneficiários se organizaram para definir o que queriam e se tornaram líderes das ONGs e cooperativas criadas para atender às suas necessidades. Isso é uma grande mudança na forma de prover a prestação de serviços em saúde, trabalho e educação.

Empreendedores sociais se tornam cada vez mais agentes de suporte em comunidades, abrindo espaço para que os próprios cidadãos determinem o seu futuro.

Que características são comuns a organizações que atuam de forma sistêmica?

Identificamos três princípios nestas organizações: elas abraçam o contexto em que atuam, fomentam colaboração e identidade coletiva, além de reconfigurar o poder.

Na Fundação Schwab, temos colocado nossas lentes sobre mudanças sistêmicas para entender o que funciona ou não no campo social.

Esse debate vem da própria comunidade. Das nossas preocupações como profissionais que estão trabalhando para resolver os grandes desafios sociais ao longo dos últimos 20 anos em um sistema que ainda é o mesmo.

Nós não mudamos as regras do jogo, não chegamos à raiz dos problemas, embora tenhamos tirado quase 1 bilhão de pessoas da linha de pobreza. Medimos esse avanço, ao mesmo tempo em que pobreza e desigualdade crescem.

A própria comunidade disse que era preciso pensar de forma sistêmica, para além da escala.

Como o Fórum Econômico Mundial e a Schwab estão promovendo essa agenda?

A fundação em certo grau representa poder, pelo fato de estar dentro do Fórum Econômico Mundial. As grandes corporações e o setor público também devem mudar, e passaram a ter representantes como parte da comunidade de inovadores sociais da Schwab.

É importante colocar todos juntos ao redor de uma mesa em Davos. Isso é o que temos tentado fazer. Um trabalho difícil, em progresso.

Apoiamos também o Catalyst 2030 [movimento global para aceleração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável], que tem colaboração em sua raiz.

E ainda temos realizado um trabalho profundo para reconhecer mais lideranças locais.

Historicamente, sempre houve muitos experts atuando no campo, empreendedores sociais iguais a mim. Precisamos de mais líderes que atuam na ponta e realmente entendam o contexto.

Reconfigurar poder é fazer junto. O setor de negócios tem seus lobbies. O terceiro setor não tem o mesmo poder. Então, uma forma de ter é por meio desse poder colaborativo, de uma atuação intersetorial.

Descentralizar a tomada de decisão e colocar as pessoas na posição de resolver os seus problemas é o contrário da visão que no livro é chamada de indústria da mudança social?

Exato. Nossa mentalidade industrial diz que há uma maneira certa de fazer as coisas, muitas vezes sem levar em conta o contexto em que as pessoas vivem. Experts estão posicionados no topo do processo decisório, enquanto aqueles que estão vivenciando os problemas são relegados a beneficiários ou clientes.

Uma das histórias do livro é o dilema de uma organização que tem de demitir um funcionário para poder apoiar famílias.

Temos ainda a reflexão de Ela Bhatt, fundadora da Self-Employed Women’s Association, sindicato que deu voz para mulheres pobres que trabalham por conta própria na Índia.

A empreendedora social e ativista repete um ensinamento de Gandhi, de que é preciso deixar as pessoas decidirem por elas mesmas como princípio de organizações modernas. Lição que precisamos reaprender a cada geração.

Uma das críticas a essa indústria no livro está no fato de que programas sociais focados na assistência social mascaram a pobreza em vez de eliminá-la?

É tempo de tentarmos ser honestos sobre o que fazemos e como. Fiz minha carreira nesse espaço. Temos forças que dependem do capitalismo. É difícil fugir dessa lógica, mas o primeiro passo é reconhecer que somos uma indústria.

O que não é necessariamente ruim, pois essa indústria continua a servir aos pobres, mudando a vida das pessoas. Por outro lado, perpetua a pobreza ou a faz tolerável. Pressupõe uma revolução, mas acaba por impedir uma mudança completa no sistema.

A complexidade é desculpa para respostas ineficazes ou lentas à pobreza?

Esta é a minha preocupação sobre a conversa em torno de mudanças sistêmicas. Dizer que é uma tarefa muito grande e complexa pode ser paralisante.

Precisamos acreditar que é possível fazer progressos e por essa razão a ênfase é como trabalhamos, no processo de mudança.

Como limitar as consequências negativas não intencionais de “fazer o bem” e aprender com as falhas?

É ter autoconsciência, abrir mão de poder e da necessidade de “fazer o bem”. Ao invés disso, capacitar aqueles que vivenciam os problemas e atuam na ponta para que tomem as decisões sobre o que é “bom”. Ao criar espaços de diálogo, provavelmente, reduziremos consequências indesejadas.

Como empreendedores sociais, formuladores de políticas e investidores brasileiros podem usar as lições do livro? 

Isso requer uma mudança de mentalidade, que já começou. Usamos narrativas pessoais no livro e tiramos lições práticas de como fazer, para que os aprendizados sejam aplicadas em diferentes contextos e realidades.

Podemos ter uma conversa diferente com financiadores. Não falar apenas sobre resultados, mas como construir novas práticas. Isso é muito importante para uma transformação profunda e de longo prazo.

Enfrentamos com a crise da Covid-19 uma tempestade perfeita de vulnerabilidade social, fúria cívica e degradação ambiental. Como ser otimista neste cenário?

Eu tenho três filhos. Tenho de ser otimista. É paralisante pensar que não há o que fazer enquanto todo o sistema não mudar. Como fazer se é um desafio tão grande e além das minhas forças? O livro nos deu ânimo, por vermos mudanças acontecendo.

Claro que o tempo é curto. E corremos o risco de ao acelerarmos políticas e leis globais para conter as mudanças climáticas aumentarmos ainda mais a desigualdade. A estimativa é de 20 milhões de pessoas a mais na linha de pobreza por causa das novas regulações para a indústria e uso de novas tecnologias.

Precisamos de uma mudança radical, mas incluindo as pessoas nesse processo. Caso contrário será uma mudança sistêmica para alguns e não para todos.

Irá emergir uma nova ordem social no mundo pós-Covid?  

Isso requer uma liderança muito forte. Não creio que teremos um novo arranjo como o que surgiu após a Segunda Guerra Mundial. Os governantes não têm mais o mesmo poder de então. Temos outros atores, como as companhias de tecnologia e de dados, é um outro mundo.

Temos que incluir os pobres nos planos de retomada. Precisamos nos pressionar para atingir um outro patamar de civilização.

Como vamos usar esse momento para o setor social se transformar no Brasil e no mundo? É difícil, porque não se trata apenas de modificar a indústria da mudança social, mas o capitalismo em si. O que vai requerer novos marcos legais e muita ação da sociedade civil.

É um momento de chamada à ação, de construir relações mais fortes com novos pares e ganharmos poder para realizar as mudanças necessárias.


François Bonnici, 46

O médico sul-africano é chefe de Inovação Social do Fórum Econômico Mundial e diretor-executivo da Fundação Schwab para o Empreendedorismo Social desde 2019. Atuou por 17 anos em programas humanitários e de saúde pública em vários países africanos. É o fundador do Bertha Centre for Social Innovation na Universidade da Cidade do Cabo, com MBA pela Universidade de Oxford e mestrado em saúde pública pela London School of Hygiene and Tropical Medicine.​

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