Causou repercussão nesta semana a notícia de que o governo anunciaria o pagamento médio de R$ 400,00 para os beneficiários do Auxílio Brasil, programa substituto do exitoso Bolsa Família.
A reação negativa dos mercados deveu-se ao fato de que parte do benefício extrapolaria o teto dos gastos, regra fiscal considerada por muitos âncora da estabilidade econômica. Ao final, o novo Programa foi lançado, mas permanecem incertezas quanto ao seu fi nanciamento, favorecendo a visão que a responsabilidade fiscal se opõe à responsabilidade social.
Nada mais equivocado. Talvez este seja o momento oportuno de reaprender as velhas lições aprendidas a muito custo.
Há menos de três décadas, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997), inspirava o movimento da ONG Ação da Cidadania com a frase "Quem tem fome tem pressa". Ao mesmo tempo em que o país lutava para controlar a inflação galopante e organizar as finanças públicas, a fome crônica estava naturalizada na paisagem brasileira.
No início dos anos 2000, com planejamento, transparência e esforço estatal, marcos fiscais importantes foram aprovados, a transparência no processo orçamentário avançou e políticas sociais bem desenhadas foram implementadas no sentido de concretizar os direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Em 2014, foi anunciado que o país saíra do Mapa da Fome da ONU. Em 2016, o teto de gastos foi aprovado.
Não existem regras fiscais perfeitas para qualquer tempo e situação. Trabalhos do IPEA mostram que a primeira geração de regras fiscais, que prevaleceu no mundo na década de 90 e no início dos anos 2000, gerou pouco espaço para ajustes a choques, distorceu a composição das despesas públicas e prejudicou os investimentos. Pior, minou a transparência devido a incentivos à contabilidade criativa.
Pensando no Brasil, o teto só resiste até hoje graças a inúmeras manobras. De nada adianta manter o Teto e contorná-lo com a emissão de créditos extraordinários para despesas previsíveis, em desacordo com a Constituição. Tampouco, adianta controlar as despesas primárias, mas manter intactas renúncias fiscais que somam mais de R$ 300 bilhões ao ano. A propósito, a proposta de reforma do Imposto de Renda, em tramitação no Congresso Federal, pode prejudicar ainda mais a situação.
Esses fatos não parecem gerar o mesmo nível de preocupação.
Quanto ao orçamento e ao valor do novo benefício, o foco da discussão também precisa ser ampliado.
Ao se limitar apenas ao valor nominal do benefício para pessoas vulneráveis, deixam-se de lado aspectos cruciais para a superação da atual crise social agravada pela pandemia. Além de soluções para zerar a fila e a manter o poder de compra, é fundamental garantir espaço fiscal para políticas sociais na área de saúde, educação e assistência social, que são capazes de levar serviços públicos para quem está com fome, sem emprego e vivendo em condições precárias.
A transferência de renda por si só não trará solução para a complexidade da pobreza. Isso já foi demonstrado em 18 anos de Programa Bolsa Família, que, além do benefício, tinha nas condicionalidades de saúde, educação e assistência social, uma forma de apoiar as famílias vulneráveis na superação da pobreza intergeracional.
Há que se garantir orçamento adequado para essas políticas sociais.
A responsabilidade fiscal será alcançada, como foi antes, com regras exequíveis que gerem previsibilidade e confiança, com salvaguardas que impeçam a ampliação de gastos desnecessários.
É chegada a hora de repensar nosso emaranhado fiscal com embasamento técnico e escolhas políticas transparentes, tal como tem sido feito em diversos países do mundo, como resposta às novas necessidades de atuação governamental.
A preocupação com a responsabilidade fiscal deve ser semelhante ao nosso comprometimento com a responsabilidade social. É preciso priorizar a vida e o futuro da parcela da população mais vulnerável. Já fizemos isto antes, podemos fazer de novamente. Que seja urgente, pois quem tem fome tem pressa.
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