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Sérgio Lazzarini

Serviço público e gestão privada sem tabu

Para 63%, áreas como educação e saúde podem ser supridas por organizações de ambos os setores, mostra Datafolha

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Sérgio Lazzarini

Professor titular da cátedra Chafi Haddad de Administração do Insper e autor de "Capitalismo de Laços" e "Reinventando o Capitalismo de Estado"

Para além do debate sobre a privatização de grandes estatais (como a Petrobras ou o Banco do Brasil), há também a possibilidade —igualmente polêmica, mas relativamente menos estudada— de atrair organizações privadas para serviços públicos essenciais como educação, saúde e segurança.

No ano passado, gerou grande alvoroço um comunicado do Ministério da Economia prevendo o envolvimento de empresas privadas para gerenciar as operações hospitalares do SUS. Na mesma linha, em educação, grupos organizados (como sindicatos de professores) se opõem vigorosamente a qualquer tentativa de atrair organizações privadas para a gestão de escolas públicas.

Mas o que pensa a população a respeito?

O Datafolha realizou uma ampla pesquisa envolvendo 2.072 pessoas, entre os dias 8 e 19 de julho de 2021. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

Uma primeira pergunta indagava se serviços essenciais como educação, saúde e transporte deveriam ser ofertados somente por empresas públicas ou se empresas privadas poderiam ser também envolvidas. Longe de revelar opinião extremas e polarizadas, a maioria dos respondentes (63,16%) considerou que esses serviços poderiam ser supridos por organizações públicas e privadas.

Trata-se de uma visão plural que contrasta com declarações simplistas na linha de que "tudo é público é mal gerido" ou, na direção oposto, de que "o privado só se interessa por lucro e não pelo bem-estar da população."

Já se sabe que muitos países adotam uma diversidade de formas de entregas de serviços públicos. Alguns experimentam com maior envolvimento privado e têm bons governos monitorando o desempenho dos serviços. Outros seguem com entrega pública e cuidam para que a burocracia estatal tenha alta produtividade e qualidade.

Esse apoio a serviços plurais acaba sendo mais concentrado em segmentos de maior renda familiar e maior escolaridade. Segundo o Datafolha, 45,45% das pessoas com escolaridade até o ensino fundamental declaram que serviços essenciais devem ser supridos apenas por governos, um percentual que cai para 15,81% no segmento com ensino superior. Uma possível explicação é que pessoas de camadas mais vulneráveis têm maior receio de que empresas privadas possam negligenciar esses segmentos da população (um ponto muito válido, que retomarei à frente).

A mesma pergunta foi feita para diferentes tipos de serviços públicos. Em atividades como ensino e saúde, há apoio majoritário para formas plurais de entrega pública e privada. Porém, em serviços envolvendo "uso da força" (para usar a expressão de Max Weber), houve apoio majoritário para entrega estatal: 57,48% em prisões e 62,41% em atividades de policiamento.

De fato, são serviços cuja regulação por meio de contratos é mais difícil, aumentando o risco de operadores privados possam negligenciar direitos básicos buscando menores custos ou maiores lucros. Porém, esse risco pode ser mitigado por meio de atenta supervisão pública. Em um trabalho com Sandro Cabral e Paulo Furquim, por exemplo, examinamos o caso de prisões no Paraná, que utilizaram, com sucesso, uma combinação de operação privada monitorada por atores públicos competentes.

É curioso que os respondentes declararam, em média, preferência por entrega pública em serviços como água e esgoto, energia elétrica e habitação. É possível que os entrevistados tenham em mente uma preocupação com altas tarifas ou menos acesso caso empresas privadas assumam esses serviços. Novamente, é uma preocupação que pode ser atenuada por meio de monitoramento e metas de entrega estabelecidos por agências reguladoras.

Um bloco final da pesquisa lança mais luz especificamente em educação. Foram apresentados aos respondentes diversas possibilidades de engajamento de empresas privadas em escolas para baixa renda.

Em geral, a maior parte da população considera os serviços poderiam melhorar muito com maior envolvimento privado. Porém, a proposta que foi menos apoiada foi justamente aquela mais propagada por defensores do livre mercado em serviços públicos: repassar recursos diretamente às famílias para que, elas próprias, paguem as mensalidades dos seus filhos. São os chamados vouchers.

O menor apoio a esse arranjo tem, curiosamente, suporte em pesquisas acadêmicas. O Chile implementou vouchers educacionais durante a ditadura de Augusto Pinochet, mas teve de posteriormente rever o modelo pois as escolas privadas passaram a cobrar maiores mensalidades e excluir alunos de menor renda. Para evitar essas distorções, os vouchers passaram a ser progressivamente mais regulados.

Nessa linha, a proposta que recebe maior apoio –com 72,85% dos respondentes declarando que melhoria muito o ensino– é a contratação pelo governo de escolas privadas para acomodar alunos de baixa renda. É o modelo conhecido como "charter schools". Diferentemente dos vouchers, muitos estudos em charter schools demonstram efeito positivo sobre desempenho dos alunos e inclusão. Porém, há também casos reportados de charters que excluem alunos mais vulneráveis e entregam serviços de baixa qualidade. Reforçando meu ponto anterior, o modelo parece funcionar melhor com atenta supervisão pública.

Nesse sentido, é curioso que ocorra uma percepção positiva, porém ligeiramente menos intensa, a iniciativas onde o governo contrata escolas e realiza pagamentos com base em metas de desempenho. Talvez a população não confie que esses pagamentos serão realizados de forma idônea e coerente com os interesses das famílias.

Há, portanto, grande espaço para o envolvimento de atores privados em serviços públicos. Para a população, não se trata de um tema tão tabu quanto possa inicialmente parecer. Fundamental que o tema seja tratado de forma ampla e imparcial no debate público, e que os governos desenvolvam competências para que a entrega pública siga, ao final, os mais rigorosos parâmetros de interesse social.

O autor lançará um novo livro sobre o tema deste artigo, com o título de "A Privatização Certa: Por que Empresas Privadas em Iniciativas Públicas Precisam de Bons Governos".

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