Descrição de chapéu tecnologia Banco Central

Garçom, pastor, faraó: a vida do suspeito de criar um império de pirâmides de bitcoin

Glaidson Acácio, que nega acusações, foi preso em agosto por suposto esquema de pirâmide em Cabo Frio (RJ)

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Ilustração mostra homem, com chap´ú de faraó, usando camisa e colete sentado em um trono dourado. AO lado dele, dois homens com trajes egípcios o abanam. Eles estão em cima de uma montanha de moedas douradas. Ao fundo, diversos rig que servem para minerar bitcoins. Abaixo à direita, um homem carrega uma moeda e coloca na pirâmide.

Ilustração de Carolina Daffara Carolina Daffara/Folhapress

Rio de Janeiro

Elaborado em 2017, o primeiro alerta sobre as movimentações financeiras de Glaidson Acácio dos Santos, o "faraó dos bitcoins", não se limitou a descrever o entra e sai de R$ 18 milhões de sua conta no Banco do Brasil de Cabo Frio (RJ) naquele ano, segundo a Polícia Federal.

"Cliente demonstra um comportamento suspeito, sempre agradável ao extremo. Nunca se altera (mesmo que insatisfeito com alguma situação), tenta demonstrar uma educação acima do normal", afirma o comunicado enviado ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Aquele ano era uma espécie de transição para Glaidson. Seria o último ainda vivendo na Praia do Siqueira, bairro pobre de Cabo Frio (RJ), endereço que, para o banco, reforçava as suspeitas sobre suas atividades.

O empresário Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como "faraó dos bitcoins", faz apresentação sobre sua empresa - Reprodução

"Segundo alegações do cliente, sua movimentação provém da atividade como intermediador financeiro no mercado de bitcoins, ainda que o analisado resida em região conhecida como um dos pontos mais ativos de tráfico de drogas no município", diz o alerta.

Em agosto daquele ano, ele adquiriu por R$ 380 mil um apartamento num moderno edifício da cidade. O novo alerta ao Coaf em 2018 destacou a ascensão.

"Foi observado uma súbita elevação no padrão de vida do cliente no último ano, tendo recentemente mudado para um prédio de apartamento em bairro nobre."

Àquela altura, Glaidson já era o dono da GAS Consultoria, por meio da qual passou a oferecer a investidores um rendimento mensal de 10% supostamente a partir de compra e venda de criptomoedas.

Ao longo de nove anos, a estrutura criada pelo ex-garçom e ex-pastor da Igreja Universal e seus colaboradores atraiu mais de 67 mil clientes em 13 estados do Brasil e em outros sete países.

Para o Ministério Público Federal, trata-se de uma organização criminosa para cometer os crimes de manutenção de instituição financeira sem autorização, gestão fraudulenta e negociação irregular de valores mobiliários.

A suspeita é que o rendimento dos investimentos em criptomoedas não era suficiente para suportar o retorno prometido por Glaidson. O esquema, segundo o MPF, dependia do depósito de novos clientes para cumprir o acordo com os antigos. A prática é conhecida como pirâmide financeira.

O empresário foi preso em agosto na Operação Kryptos. Ele e outras 16 pessoas se tornaram réus na Justiça Federal.

Mensagens encontradas no celular de Glaidson, apreendido pela PF no dia da prisão, mostram uma outra face do homem "agradável ao extremo". Elas indicam um empresário irritado com os concorrentes na cidade, que passou a ser chamada de "Novo Egito", em razão dos diversos esquemas de pirâmides.

"Foda-se eles e todos que entra [sic] no caminho. Não quero 15%. [...] Quem paga 15% paga 10% e tem uma melhor gestão. Agora vir querer fazer sacanagem de retirar clientes não vai dar certo", escreveu Glaidson a um colaborador sobre um concorrente.

Para a polícia, as mensagens mostram também ordens para que ao menos dois concorrentes fossem mortos.

Ele foi denunciado sob acusação de encomendar a morte do empresário Nilson Alves da Silva, que sobreviveu ao atentado, e do youtuber e trader Wesley Pessano, que não teve a mesma sorte, em março e agosto de 2021, respectivamente. Glaidson é investigado por uma outra tentativa de homicídio, ocorrida em junho do mesmo ano.

Do cliente com "educação acima do normal" descrito ao Coaf em 2017 ao suposto mandante de assassinatos em 2021, passaram-se quatro anos de enriquecimento súbito e alertas sucessivos que encurralaram o "faraó dos bitcoins".

De origem pobre, Glaidson atuou como pastor da Universal na Venezuela, onde conheceu a mulher, Mirelis Zerpa, atualmente foragida.

Ela é suspeita de ser a mentora intelectual do esquema, por ter atuado no mercado de criptomoedas na Venezuela e ser mencionada em fóruns na internet como articuladora de pirâmides financeiras.

Ao retornar ao Brasil, Glaidson trabalhou como garçom em quiosques de Cabo Frio e num resort em Búzios, balneário vizinho. Ele afirma que iniciou em 2012 os investimentos em criptomoedas e a captação de clientes —boa parte colegas de trabalho, ex-pastores e fiéis da Universal.

O primeiro registro de transações nesse mercado observado nas investigações é de dezembro de 2014, quando abriu uma conta na Foxbit, corretora de criptomoedas.

Foi também em 2014 seu último vínculo empregatício, como garçom. Naquele ano, sua movimentação financeira foi modesta: R$ 62.091 em créditos e R$ 62.966 em débitos. O volume se multiplicou por 12 no ano seguinte, caiu 20% em 2016 e, a partir de então, não parou mais de crescer.

Até 2017, Glaidson assinava como pessoa física os contratos com seus clientes. O esquema se profissionalizou em junho de 2018, diz o MPF, ao criar a GAS.

Àquela altura, o "faraó" já havia recebido alertas de que suas atividades eram consideradas suspeitas.

A Foxbit encerrou sua conta em fevereiro de 2018 por ausência de comprovação de renda para justificar a movimentação com criptomoedas.

Em maio daquele ano, o empresário também foi avisado por um escritório de consultoria jurídico-contábil sobre a necessidade de submeter sua atuação ao Banco Central.

Em abril de 2019, mais um alerta, feito por um contador, classificou a estrutura legal do negócio como "extremamente frágil", "exposta" e com "erro absurdo". Em resposta, Glaidson se queixou das exigências para se regularizar.

"São coisas que são impossíveis de se ter. Isso que a gente tá conversando aqui por esses áudios [é] para se chegar no melhor cenário. Se a gente for conversar com mais três ou quatro pessoas, aí deve-se pedir a identidade de Pedro Álvares Cabral, ou, pelo menos, a do Satoshi Nakamoto [pseudônimo da pessoa ou grupo que criou o bitcoin]", afirmou Glaidson em áudio enviado a um colaborador da GAS sobre as críticas feitas pelo contador.

Dias antes desse alerta, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) recebeu a primeira denúncia sobre as atividades da GAS. Elas se acumularam ao longo daquele ano.

Um dos denunciantes se tornou testemunha do MPF na investigação. Ele descreveu como a equipe da GAS respondia aos seus questionamentos sobre o negócio.

"Mostrei um cálculo para eles [apontando] que, se eu tivesse investido R$ 100 [mil], R$ 200 mil, em questão de cinco ou dez anos eu teria mais que o PIB dos Estados Unidos ou PIB global por conta dos efeitos dos juros compostos", disse a testemunha.

"A resposta era: ‘Confia, você precisa estudar mais. Estamos há oito anos. Vem conhecer’, era a resposta", contou ela.

A testemunha exagerou ao comparar o retorno de um investimento de R$ 200 mil em dez anos com o PIB norte-americano, de US$ 20,9 trilhões em 2020 (cerca de R$ 115,5 trilhões). Contudo, o valor alcançaria R$ 18,5 bilhões no período caso os rendimentos de 10% mensais fossem sempre reinvestidos, como permitia a GAS, segundo a testemunha.

A CVM viu indícios de uma pirâmide financeira, mas não atuou porque não viu interferência no mercado de valores mobiliários. As denúncias foram encaminhadas para o Ministério Público.

A investigação começava enquanto bancos encerravam contas da GAS por suspeita de irregularidades. Os informes de agências e corretoras de bitcoins se acumulavam no Coaf. O relatório do órgão federal sobre Glaidson, a mulher e duas empresas do casal tem 318 páginas com 172 comunicações sobre suspeitas.

Enquanto os alertas seguiam sob sigilo, o "faraó" divulgava seus serviços pelo país. Com uma linguagem simples e uma fala mansa, atraiu para o negócio motoristas, servidores públicos, advogados e empresários.

Numa de suas apresentações, ele definiu assim os criptoativos: "Eles são o Pelé fazendo xixi na cama. Com um grande talento, mas, lá na frente, vai parar uma guerra."

Entre seus clientes estiveram o ator Rafael Portugal, do Porta dos Fundos, o ex-superintendente do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro, Jonas Roza, e até um acusado de integrar uma milícia no estado.

Em 2020, o patrimônio declarado de Glaidson à Receita chegou a R$ 60 milhões. De acordo com o MPF, ele ainda omitiu do fisco contas mantidas em Portugal e nos Estados Unidos.

O ex-garçom passou a fazer uma série de ações sociais em Cabo Frio, o que alimentou comentários na cidade de que ele planejava candidatar-se a deputado. O vínculo político mais próximo de Glaidson, porém, era a irmã, ex-assessora da Assembleia Legislativa no gabinete de Dr. Serginho (PSL-RJ), atualmente secretário estadual. Ele disse que não sabia do parentesco.

As suspeitas sobre as atividades de Glaidson se tornaram públicas em outubro de 2020, quando o Portal do Bitcoin publicou uma reportagem mostrando que as atividades da GAS se assemelhavam a uma pirâmide financeira. Semanas depois, o mesmo site publicou a análise da CVM sobre o caso.

Nilson, o concorrente que sofreu atentado em março, passou a dizer na cidade que o ex-garçom seria preso a qualquer momento. A denúncia contra o empresário e outras cinco pessoas pela tentativa de homicídio afirma que Glaidson mandou matá-lo porque ficou contrariado com os boatos e o efeito sobre seus negócios.

No período em que, segundo a denúncia, planejou o assassinato, o empresário doou R$ 21 milhões à Universal. Ela recebeu no total R$ 72 milhões de Glaidson e da GAS entre 2020 e 2021. A igreja entrou na Justiça pedindo que Glaidson apresentasse a origem do dinheiro e afirmou que pediu a interrupção das doações.

O cerco contra Glaidson continuou a se fechar. Em abril de 2021, a PF apreendeu R$ 7 milhões em dinheiro vivo com um casal que trabalhava para a GAS. O empresário prestou depoimento e negou comandar uma pirâmide financeira. Afirmou que sua empresa prestava serviço de "terceirização de trader".

Em junho, a Receita Federal apreendeu joias e dinheiro com Glaidson e Mirelis no aeroporto de Guarulhos. A PF passou a seguir os passos do casal.

Em agosto, ele foi mencionado em reportagens do programa Fantástico, da TV Globo, como um dos integrantes do "Novo Egito". Escutas telefônicas mostram que ele reclamou de seus seguranças por não terem amarrado a jornalista que o procurou na sede da empresa.

Glaidson gravou um vídeo após as reportagens. Afirmou que não "compactua com pirâmides financeiras" e negou envolvimento no atentado contra Nilson, com quem disse manter um "relacionamento excelente".

Ofereceu-se também para ajudar as autoridades a investigar empresas que, para ele, participavam de fraudes na cidade.

"A GAS é um livro aberto para as autoridades. Estamos aqui inclusive para ensinar esse mercado para que as autoridades possam prender todo golpista e estelionatário existente em nosso país", afirmou.

Em nota à imprensa na ocasião, afirmou que o fechamento de suas contas nos bancos foi uma reação "provocada pela concorrência que a GAS Consultoria impõe aos produtos oferecidos pelas instituições financeiras".

A empresa disse também que "possui sólidos argumentos jurídicos para refutar as acusações formuladas, aptos a evidenciar a absoluta licitude e regularidade de suas atividades, e a inexistência de lesão a quem quer que seja".

Glaidson foi preso dias depois de publicar o vídeo de defesa. Sua empresa mantinha em dia, até então, o pagamento aos clientes.

Manifestações em Cabo Frio e no Rio de Janeiro, em frente à Justiça Federal, foram organizadas pedindo sua soltura. Os protestos fecharam uma rua em cada cidade, mas não há estimativa de público. Eles perderam fôlego após as acusações de homicídio.

Centenas de clientes inundaram a Justiça com pedidos de restituição do dinheiro investido, atualmente bloqueado por ordem da 3ª Vara Federal Criminal. O advogado Paulo Nicholas, que representa uma associação criada por clientes da GAS, afirma que a entidade tem cerca de 2.000 filiados e outros 8.000 buscam recursos para se associar.

Da cadeia, Glaidson divulgou em dezembro do ano passado uma carta na qual lamenta não poder cumprir com seus compromissos.

"Escrevo essa carta com o coração quebrado por saber que praticamente há três meses vocês estão sem receber os seus rendimentos", afirma ele.

"Nunca, nem em meus piores pesadelos pude imaginar que isso poderia acontecer. Que eu estaria preso injustamente, que seríamos proibidos de pagar um dinheiro que contratualmente pertence a vocês, que veríamos uma história de quase uma década de muito trabalho ser jogado na lama, sem jamais termos causado dano algum a ninguém."

Procurado, o advogado Nélio Machado, que defende Glaidson, não retornou o contato da reportagem.

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