Casais brigam por criptomoedas em divórcios

Advogados descrevem casos em que marido foi acusado de mentir sobre ativos

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David Yaffe-Bellany
Nova York | The New York Times

O processo de divórcio se arrastou por oito anos, quase tanto tempo quanto o casamento durou. O casal endinheirado de San Francisco brigou pela guarda dos filhos, pela divisão dos lucros com a venda da companhia de software do marido, e pelo controle de sua casa de US$ 3,6 milhões.

Mas a batalha judicial mais importante entre Erica e Francis deSouza envolvia uma disputa amarga sobre milhões de dólares em bitcoins que tinham desaparecido.

Francis DeSouza, um executivo de tecnologia, tinha comprado pouco mais de mil bitcoins pouco antes de se separar da mulher em 2013, e perdeu quase metade desses fundos quando uma proeminente bolsa de criptomoedas faliu.

Depois de três anos de disputa judicial, um tribunal de recursos de San Francisco decidiu em 2020 que ele não havia revelado devidamente alguns elementos de seus investimentos em criptomoedas, cujo valor havia disparado. O tribunal ordenou que ele entregasse a Erica deSouza mais de US$ 6 milhões de seu saldo em bitcoins.

Em uma mesa de madeira estão várias chaves, cartões e pendrives
Carteiras de hardware de criptomoeda usadas para armazenamento, em Nova York - Joshua Bright/The New York Times

Nos círculos jurídicos, o caso dos deSouza se tornou conhecido como talvez o primeiro grande divórcio do bitcoin. Disputas conjugais como essa estão se tornando cada vez mais comuns. À medida que as criptomoedas ganham aceitação mais generalizada, a divisão das reservas familiares se transformou em grande causa de disputa, e casais em dissolução trocam acusações de trapaças e má gestão financeira.

Um divórcio hostil tende a gerar disputas sobre virtualmente tudo. Mas a dificuldade de rastrear e avaliar criptomoedas, um ativo digital negociado apenas em redes descentralizadas, está criando novas dores de cabeça. Em muitos casos, dizem advogados de divórcio, cônjuges reportam valores em criptomoedas inferiores aos que realmente detêm, ou tentam ocultar fundos em carteiras online às quais o acesso pode ser difícil.

"Originalmente o dinheiro era escondido embaixo do colchão, depois veio a conta bancária nas Ilhas Cayman", disse Jacqueline Newman, advogada de divórcio em Nova York que trabalha com clientes de alto patrimônio. "Agora são as criptomoedas".

A ascensão das criptomoedas oferece um meio de troca útil para os criminosos, criando novas oportunidades de fraude. Mas ativos digitais não são impossíveis de localizar. As transações são registradas em livros-caixa públicos conhecidos como blockchains, o que permite que analistas habilidosos rastreiem o dinheiro.

Em entrevistas, quase uma dúzia de advogados e peritos forenses descreveram casos de divórcio nos quais um dos cônjuges —usualmente o marido— foi acusado de mentir sobre transações com criptomoedas ou de esconder ativos digitais. Nenhum dos casais envolvidos quis conceder entrevista. Mas alguns dos divórcios deixaram trilhas de documentos que iluminam de que maneira essas disputas se desenrolaram.

Os deSouza se casaram em setembro de 2001. Naquele mesmo ano, Francis deSouza fundou uma empresa de mensagens instantâneas, a IMlogic, que ele mais tarde vendeu em uma transação que lhe rendeu mais de US$ 10 milhões, de acordo com registros judiciais.

Os investimentos de Francis DeSouza em criptomoedas datam de abril de 2013, quando ele se encontrou em Los Angeles com Wences Casares, um dos primeiros empreendedores do ramo das criptomoedas, que o convenceu a investir em ativos digitais. Naquele mês, adquiriu US$ 150 mil em bitcoins.

O casal deSouza se separou mais tarde no mesmo ano, e Francis deSouza revelou logo em seguida que ele detinha os bitcoins. Quando o casal estava pronto para dividir seus ativos, em 2017, o valor desse investimento havia subido para mais de US$ 21 milhões.

Mas havia um problema. No mês de dezembro daquele ano, Francis deSouza revelou que ele tinha deixado pouco mais de metade do valor depositado em uma bolsa de criptomoedas, Mt. Gox, que faliu em 2014, e que por conta disso o dinheiro não estava mais ao seu alcance.

Em documentos encaminhados à Justiça, os advogados de Erica DeSouza disseram que era "ultrajante" que seu marido não tivesse mencionado antes que uma porção tão grande dos bitcoins tinha desaparecido, e argumentaram que o sigilo dele na gestão desse investimento havia custado milhões de dólares ao casal. Os advogados também especularam que ele talvez estivesse retendo fundo adicionais.

"Francis foi menos que sincero, em suas histórias sempre mutáveis sobre o que aconteceu", afirmaram os advogados de sua mulher em uma petição.

Nenhum dinheiro escondido foi localizado. Um representante de Francis deSouza disse que ele havia revelado plenamente as suas posições em criptomoedas, no começo do divórcio. "Tão logo Francis soube que o bitcoin ficou retido na falência da Mt. Gox, ele informou à sua ex-mulher", disse o representante. "Se a falência da Mt. Gox não tivesse ocorrido, a divisão da criptomoeda teria ocorrido sem qualquer controvérsia".

Erica deSouza, por intermédio de seu advogado, se recusou a comentar.

Mas o tribunal de recursos decidiu que deSouza, 51, hoje presidente-executivo da Illumina, uma empresa de biotecnologia, havia violado as regras processuais do divórcio ao não manter a mulher completamente informada sobre seus investimentos em bitcoin.

O tribunal ordenou que ele transfira a Erica deSouza cerca de metade dos bitcoins que detinha antes da falência da Mt. Gox, o que reduziria sua posição a 57 bitcoins, o equivalente a US$ 2,5 milhões, ao preço atual. Os bitcoins transferidos a Erica deSouza têm valor superior a US$ 2 milhões.

Nem todos os divórcios que envolvem criptomoedas incluem valores tão elevados. Alguns anos atrás, Nick Himonidis, perito forense em Nova York, trabalhou em um caso de divórcio no qual uma mulher acusou o marido de reportar um valor abaixo do real quanto aos seus investimentos em criptomoedas. Com autorização do tribunal, Himonidis foi à casa do marido e fez uma busca em seu laptop. Nele, encontrou uma carteira digital que continha cerca de US$ 700 mil na criptomoeda Monero.

"Ele disse algo como ‘oh, aquela carteira? Eu nem lembrava que a tinha’", relembrou Himonidis. "E eu: ‘Fala sério, rapaz’".

Em outro caso, contou Himonidis, ele descobriu que um marido havia transferido US$ 2 milhões em criptomoeda de sua conta na bolsa Coinbase, uma plataforma na qual qual pessoas compram, vendem e mantém depósitos de criptomoedas. Uma semana depois que sua mulher pediu o divórcio, ele transferiu o dinheiro a carteiras digitais e deixou os Estados Unidos.

Um tribunal pode ordenar que uma bolsa de criptomoedas transfira fundos. Mas as carteiras online nas quais muitos investidores armazenam suas criptomoedas não estão sujeitas a qualquer controle centralizado; o acesso requer uma senha única criada pelo dono da carteira. Sem essa chave digital, os fundos do ex-marido na prática estariam fora do alcance de sua ex-mulher.

Em alguns divórcios, a pilha de criptomoedas prova ser minúscula ou mesmo inexistente. Diversos advogados descreveram casos nos quais as suspeitas de uma cônjuge eram infundadas. Mas muitas vezes, disse Kelly Burris, advogada de divórcio em Austin, Texas, que usualmente representa maridos, homens chegam ao seu escritório e revelam planos detalhados para esconder criptomoedas.

"O estranho é que muitos deles não são nem um pouco criativos", disse Burris. "Dizem coisas como ‘ vou transferir tudo para o meu irmão por US$ 1’, ou coisa assim, e eu tenho de explicar que não podem fazer isso".

Burris é uma presença frequentemente no circuito de palestras da indústria do divórcio, e costuma falar sobre os desafios de rastrear ativos digitais. Em alguns casos, ela disse, seus clientes homens propuseram fraudes ligeiramente mais sofisticadas, como usar um caixa automático que realize transações em criptomoedas para adquirir bitcoins em dinheiro.

"Eles imaginam que não há maneira de suas mulheres rastrearem aquilo", disse Burris. "Não há maneira de elas conseguirem acesso".

Tradução de Paulo Migliacci

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