Só um quinto dos 'filhos' do Bolsa Família continuava no programa depois de 14 anos

Estudo inédito acompanhou saída e permanência de 11,6 mil de dependentes no CadÚnico, de 2005 a 2019

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São Paulo

​Entrar para o Bolsa Família em 2008 mudou a vida de Iva Mayara dos Santos, 30. Moradora de uma favela em Aracaju (SE), ela se tornou mãe na adolescência e achava que estaria fadada a viver sem ter o mínimo —até se cadastrar no programa. "Com o básico garantido, pudemos cuidar dos nossos filhos, mudamos de casa e ainda fiz uma faculdade."

Em 2017, mesmo podendo permanecer no programa, ela pediu desligamento e passou a trabalhar com o cadastramento de outros moradores do bairro. Chegou a devolver o cartão do benefício ao ex-presidente Lula, durante uma caravana do petista pelo Nordeste.

"Antes, a gente tinha de decidir entre comer, estudar ou trabalhar. Depois do programa, meu marido fez cursos profissionalizantes e evoluiu no trabalho, e acredito que meus filhos (hoje com 15 e seis anos) nunca mais vão precisar de um programa de transferência de renda. Nossa vida é outra e hoje sou assessora administrativa."

Iva Mayara dos Santos, que deixou o Bolsa Família, com um dos filhos
Iva Mayara dos Santos, que deixou o Bolsa Família, com um dos filhos - Marlene Bargamo/Folhapress

Histórias como a da família de Iva Mayara não são isoladas. Um estudo do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social) ​divulgado com exclusividade para a Folha aponta que apenas 2 em cada 10 dependentes do Bolsa Família, ou 2,373 milhões de pessoas, continuavam em lares inscritos no programa após 14 anos, seja como dependentes ou como chefes de domicílio.

O estudo, comandado pelo economista Paulo Tafner, considera dados cadastrais da folha de pagamento da Caixa Econômica Federal e do CadÚnico (Cadastro Único).

"O ideal seria, como política pública, que todos aqueles que receberam o benefício saíssem quando virassem adultos, pois teria sido cumprido o papel do programa de alívio da pobreza e eles teriam adquirido competências para não precisar mais dele, mas o resultado já é impressionante", diz Tafner.

O estudo leva em conta a saída ou permanência dos beneficiários dependentes, que tinham de 7 a 16 anos entre 2005 e 2019, o equivalente a 11,628 milhões de pessoas que estavam em situação de pobreza e extrema pobreza.

Os pesquisadores também estimaram que 1,5% desses jovens morreram no período e que 14% continuavam cadastrados, mas não estavam mais em lares que recebiam o Bolsa Família.

Nesse período, 7,451 milhões (64,1%) deixaram de aparecer no CadÚnico por terem se tornado jovens adultos com renda familiar mensal superior a R$ 3 mil ou meio salário mínimo por pessoa ou mesmo não terem atualizado o cadastro —o que significa que deixaram de ser considerados vulneráveis pelo governo.

Entre os que saíram do Bolsa Família por aumento de renda, estão os que, de fato, tiveram uma emancipação do programa e têm baixa probabilidade de voltar à pobreza e aqueles que estão temporariamente fora dessa faixa, mas que podem voltar a ficar elegíveis no primeiro obstáculo, como a perda de um emprego, por exemplo.

Há também uma etapa intermediária da vida, em que alguns desses jovens adultos conseguem um emprego e ainda não têm filhos, ficando fora dos critérios do Bolsa Família. Mas ao se tornarem pais, sem uma melhora considerável da renda, eles podem voltar ao programa, diz Tafner.

"Embora ainda não esteja claro até que ponto o Bolsa Família atuou na mobilidade social de longo prazo, há indicativos de que ele funcionou nesse sentido, ao menos para uma parcela dos beneficiários", complementa o economista.

A maioria dos que permaneceram no Bolsa Família após 14 anos era composta por mulheres (64%). Os dependentes que se identificavam como brancos também tiveram uma taxa de saída maior (65%) do que a de negros (54%).

Os dados também apontam um impacto positivo no aumento da escolaridade dos responsáveis pelo domicílio. Entre os que tinham no máximo o ensino fundamental incompleto, a taxa de saída de dependentes do CadÚnico é de 56,1%; para os que completaram o ensino médio ou fizeram faculdade, essa taxa sobe para 62% e 62,2%, respectivamente.

"O aumento da escolaridade dos pais faz crescer em 68% as chances de sucesso escolar de uma criança, segundo uma pesquisa do professor Naércio Menezes. Esse levantamento, da primeira década do século 21, já mostrava que o sucesso escolar dos pais aumenta a renda dos filhos e isso continua sendo uma realidade", avalia a colunista da Folha e especialista em educação Cláudia Costin.

Segundo Tafner, apesar de os resultados a partir do CadÚnico também considerarem os dependentes com dificuldades de cadastramento, os mecanismos dos municípios para identificação de famílias vulneráveis foram se aperfeiçoando ao longo dos anos.

"O que sempre foi um problema foi a fila do Bolsa Família, pelo excedente de pessoas que tinham direito ao benefício, mas não conseguiam receber, por falta de orçamento."

Para evitar distorções, o estudo do IMDS se concentrou no período anterior à pandemia, que chegou oficialmente ao Brasil no primeiro trimestre de 2020 e levou a uma explosão no número de inscritos do CadÚnico, requisito para o recebimento do Auxílio Emergencial.

Um estudo posterior do instituto irá cruzar os dados atuais com outros cadastros administrativos, como o de MEI (microempreendedor individual) e a Rais (Relação Anual de Informações Sociais), para observar com mais detalhes o destino dos filhos do Bolsa Família com o passar dos anos.

Pesquisas posteriores também devem estudar o efeito da pandemia na permanência ou saída dos dependentes do Bolsa Família e do Auxílio Brasil.

"A pobreza durante a infância é muito impactante, e muitos investimentos que deixam de ser feitos nessa fase da vida não podem ser compensados lá na frente. Por ter focado em lares com crianças, o Bolsa Família teve potencial de resgate da pobreza em uma idade crítica", diz Cecilia Machado, que é economista-chefe do Banco Bocom - BBM e professora da EPGE/FGV (Escola Brasileira de Economia e Finanças, da Fundação Getulio Vargas).

Machado, que também é colunista da Folha e uma das colaboradoras do estudo do IMDS, ressalta que o contexto familiar é importante para a formação dos dependentes do benefício. "Crianças e jovens que vivem em lares em que a mãe está preocupada se vai ter comida no dia seguinte largam em desvantagem", diz.

Em novembro de 2021, após 18 anos, o Bolsa Família foi substituído pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) pelo Auxílio Brasil. A troca de bandeira atualizou o valor dos benefícios e serviu para instituir benefícios complementares —como incentivos ao desempenho escolar e de esporte, para as crianças.

A mudança também foi considerada um movimento político importante para o presidente —que deve tentar a reeleição este ano enfrentando o ex-presidente Lula— e precisava fincar bandeira em uma área que se tornou marca dos governos petistas.

Segundo Tafner, embora o novo programa tenha gerado incertezas, pelo grande número de novos benefícios propostos, alguns deles podem ser muito bons, como um incentivo maior à formalização e ao desempenho escolar, "mas isso não substitui a necessidade de iniciativas municipais e estaduais e a efetividade desses novos benefícios ainda precisa ser verificada".

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