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Diferença entre dólar oficial e paralelo na Argentina alcança nível de hiperinflação

Crescente demanda por moeda forte segue espiral de inflação e brigas no governo

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Lucinda Elliott Michael Stott
Buenos Aires e Londres | Financial Times

A confiança na economia argentina está evaporando à medida que o governo se debate com lutas políticas internas, uma pilha cada vez maior de dívida interna e a inflação que se aproxima de 90%.

O dólar americano disparou para novos picos no mercado negro, já que os argentinos, limitados a comprar US$ 200 por mês, correm para os cambistas para livrar-se de seus pesos em rápida desvalorização. Na sexta-feira (22), o dólar era vendido nas ruas de Buenos Aires por 337 pesos, um aumento de 15% em apenas uma semana.

A rápida deterioração do sentimento público e a crescente dificuldade do governo em se financiar estão levantando temores de uma crise econômica generalizada semelhante às que assolaram periodicamente o país exportador de grãos durante o último meio século.

"O risco de uma aceleração do ritmo de agravamento da economia argentina é significativo", alertou o Citi neste mês.

Argentinos protestam contra o governo do presidente Alberto Fernandez na região da Casa Rosada, sede do governo, em Buenos Aires
Argentinos protestam contra o governo do presidente Alberto Fernandez na região da Casa Rosada, sede do governo, em Buenos Aires - Luis Robayo - 9.jul.2022/AFP

A diferença entre o dólar no mercado negro e a taxa oficial artificialmente controlada aumentou para mais de 150% —nível visto pela última vez durante a hiperinflação no país em 1989-1990, segundo a corretora Portfolio Personal Inversiones.

A Argentina está basicamente excluída dos mercados de dívida internacionais desde seu calote em 2020. Em vez disso, o governo se financia por meio de emissão de moeda e dívida interna, a maior parte vinculada à inflação e com taxas de juros cada vez mais altas.

O presidente Alberto Fernández descartou a perspectiva de uma desvalorização pontual. No entanto, muitos argentinos e economistas de bancos temem que a economia piore muito antes de melhorar.

"As vendas de dólares estão mais loucas que nunca", disse Adán, 28, que troca dinheiro ilegalmente no centro de Buenos Aires e preferiu não dar seu nome completo, ao Financial Times. "A única coisa que os clientes não querem são pesos... muitos fazem perguntas sobre o que vai acontecer agora."

A súbita renúncia do ministro da Economia Martín Guzmán em 2 de julho, se seguiu a meses de disputas internas na coalizão peronista no poder. Isso aumentou a preocupação com a capacidade do governo fraco e impopular de Fernández de lidar com a situação em rápida deterioração.

"Decidi fazer uma grande compra que estava adiando porque sabia que os mercados ficariam malucos quando o ministro renunciasse", disse Paige Nichols, consultora de marketing de 35 anos, enquanto fazia compras em Buenos Aires.

Guzmán saiu apenas três meses depois de negociar um acordo de reestruturação da dívida de US$ 44 bilhões com o FMI. Mas suas promessas de conter o déficit orçamentário foram fortemente contestadas pela poderosa vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner e seus aliados radicais. Kirchner acredita que os peronistas deveriam gastar mais para proteger os eleitores do aumento da inflação antes da corrida presidencial de 2023.

Apesar da saída prematura de Guzmán, funcionários do FMI acreditam que as metas econômicas que o fundo acertou com a Argentina ainda podem ser cumpridas por sua sucessora, Silvina Batakis, se ela agir rapidamente.

Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI, disse que Batakis entendeu "o propósito da disciplina fiscal" e descreveu uma primeira ligação "muito boa" com a ministra.

Mas os acontecimentos correm o risco de ultrapassar Batakis, figura pouco conhecida que poucos acreditam ter influência política para efetuar os cortes nos subsídios à energia e reduções na impressão de dinheiro que seu antecessor não conseguiu. "Nenhuma medida será eficaz até que fique claro que a vice-presidente Cristina e seu grupo não vão sabotar Batakis", disse o grupo de risco político Eurasia, em nota.

A inflação, por sua vez, atingiu 64% ao ano em junho e deve acelerar além de 90% até o final do ano, segundo o Morgan Stanley.

Apesar dos altos preços mundiais das commodities, as reservas líquidas em moeda estrangeira da Argentina pairam em torno de apenas US$ 2,4 bilhões. As dispendiosas importações de energia são parcialmente culpadas, mas os exportadores de grãos do país também estão acumulando sua colheita porque temem uma desvalorização iminente, em vez de embarcar e receber o pagamento em pesos à taxa oficial desfavorável.

A dívida soberana da Argentina com credores privados, que só foi reestruturada em 2020, está sendo negociada em território arriscado. E espera-se que o país entre numa breve recessão este ano, com contrações no segundo e terceiro trimestres, de acordo com uma pesquisa do banco central.

Ignacio Labaqui, analista sênior da Medley Global Advisors em Buenos Aires, disse que os fatores econômicos são apenas parte do problema. "Apesar de o governo ter anunciado um plano econômico coerente, Fernández não tem credibilidade", disse ele. A coalizão governante não conseguiu tranquilizar o público, "é uma questão de quando eles desvalorizam, não uma questão de se".

Dois pilares do acordo do FMI são reduzir o déficit fiscal em três anos e conter a emissão de dinheiro pelo banco central para financiá-lo. Buenos Aires concordou com essas condições de aperto de cinto em troca de um período de carência de quatro anos e meio nos pagamentos ao FMI, com reembolso total até 2034.

A Argentina está limitada a imprimir 765 bilhões de pesos (US$ 5,8 bilhões) durante todo o ano para financiar seu déficit. Mas o banco central já imprimiu 630 bilhões de pesos este ano, mais da metade deles no último mês e meio.

Em uma tentativa de incentivar os investidores a comprar notas do Tesouro, na semana passada o banco central prometeu que, se os preços caíssem, o banco protegeria os investimentos. Analistas disseram que isso poderá levar a instituição a imprimir ainda mais pesos para respaldar a nova garantia.

Estima-se que 900 bilhões de pesos (US$ 6,8 bilhões) de dívida em moeda local vençam só em setembro. A confiança na capacidade do governo de rolar esse empréstimo está diminuindo em meio a preocupações sobre sua capacidade de pagamento e uma possível desvalorização iminente, apesar das negativas oficiais.

Reduzir o déficit fiscal antes do pagamento de juros de 3% do PIB no ano passado para 2,5% em 2022, conforme descrito no acordo com o FMI, também parece difícil de cumprir. Os subsídios à energia, uma das principais razões para os números vermelhos, quase dobraram nos 12 meses até junho, de acordo com Julian Rojo, analista do General Mosconi, um grupo de pensadores local.

No topo da economia em deterioração está a política turbulenta antes das eleições do próximo ano, que os peronistas provavelmente perderão. "O risco de um colapso do governo não é desprezível na Argentina, dada a atual crise econômica. A capacidade do governo de completar o atual mandato presidencial é uma preocupação", disse Labaqui.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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